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Jaime Lerner, um político que criava soluções (por Cila Schulman)

Prefeito de Curitiba e governador do Paraná, o urbanista reconhecido internacionalmente foi um outsider na política que fez acontecer

atualizado

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Rovena Rosa/Agência Brasil
Jaime Lerner
1 de 1 Jaime Lerner - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Se não tivesse saído da vida partidária no início dos anos 2000 para se dedicar exclusivamente ao urbanismo, Jaime Lerner, sempre tão inovador, teria se tornado uma criatura ultrapassada na política.  O prefeito por três vezes de Curitiba e governador por duas vezes do Paraná, falecido aos 83 anos de idade, na última quinta-feira, era um humanista pacificador. Nada mais fora de moda no atual cenário eleitoral de ciberpopulismo movido a confronto.

“Na política, o último adversário é o único que vale”, dizia Jaime, exímio frasista. A falta de apetite para perseguir opositores lhe custava repetidas críticas dos aliados, que cobravam fidelidade e faca no dente. Mas Jaime não tinha essa paciência. Ele entrou na política para tirar suas ideias geniais das gavetas dos burocratas. E embora tenha sido vítima de haters e de fake news, antes mesmo de existirem as redes sociais, esquecia qualquer briga em troca de realizar um sonho coletivo.

Em meados dos anos 1960, Jaime participou da criação do IPPUC – o Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba-, até hoje  referência em desenvolvimento de cidades. No início dos anos 1970, aos 33 anos de idade, foi indicado prefeito biônico do município. Ousado, fechou a principal rua de comércio do centro para os carros. Construiu o calçadão da Rua XV a partir de uma sexta à noite, para escapar de medidas judiciais. Os comerciantes locais, indignados, viram a coisa pronta na segunda-feira. Foi incompreendido e atacado pela Rua das Flores, para anos depois ser copiado e aplaudido pela mesma obra.

Lula e FHC, parcerias impossíveis

Ainda na primeira gestão, transformou um antigo paiol de pólvora em teatro, batizado com um gole de uísque entornado no chão por Vinícius de Morais, que fez o show de inauguração com Toquinho, Marília Medalha e o Trio Mocotó. Em plena ditadura, o Paiol tornou-se um reduto da MPB, onde tudo era permitido. Na segunda gestão, novamente indicado pelos generais e filiado à Arena, Jaime foi anfitrião do Parcerias Impossíveis, um programa que reunia vozes divergentes, ou ao menos improváveis, no palco do Paiol. Um exemplo? Lula e Fernando Henrique Cardoso, uma década e meia antes de um deles tornar-se presidente e mais de quarenta anos antes de almoçarem juntos, outro dia, na casa do ex-ministro Nelson Jobim, para horror da turma do antagonismo.

O fato de Jaimer Lerner ser boa praça e extremamente bem humorado não significa que lhe faltasse coragem. Ao contrário. Enxergou o que ninguém via ao traçar eixos estruturais na cidade; criar uma Cidade Industrial num local inóspito para onde o adensamento cresceria um dia; priorizar  o transporte coletivo com a instalação de canaletas exclusivas; unir todos os bairros com mobilidade, trabalho, moradia e lazer; juntar mais de um ônibus, o Expresso biarticulado, pra caber mais gente nas principais linhas; pintar os veículos de cores inusitadas pra facilitar a escolha do passageiro e o tráfego; implantar uma tarifa única e um sistema integrado e, finalmente, criar um metrô de superfície na terceira gestão, quando foi eleito pelo voto direto, em 1988. “É subdesenvolvido o país que compra como novidade o obsoleto”, dizia, em defesa do sistema de estações tubo versus o astronômico, demorado e impossível investimento das capitais brasileiras em obras de metrô, em pleno fim do século 20. O seu BRT já foi adotado em mais de 250 cidades do mundo.

Lixo que não é lixo não vai pro lixo, se-pa-re

Jaime demorou para ser escolhido pelo voto direto, mas quando foi, virou assunto nacional. A campanha durou apenas 12 dias, mesmo número do seu partido da época, o PDT. Ele havia transferido o título eleitoral para o Rio pra ser candidato a prefeito do governador da época, Leonel Brizola. Acabou inviabilizado por tentar interferir no transporte coletivo da cidade, um vespeiro e fonte histórica de corrupção. O escândalo maior deu-se quando colocou pra rodar um sistema de jardineiras que ligava a periferia à zona sul. A classe média estrilou ao ver a favela descer para a praia. Quanta insegurança. Na reta final, venceu no TSE o direito a concorrer em Curitiba, substituiu o candidato do partido e ganhou de lavada.

Em 1989, em uma das primeiras reuniões da equipe (sempre decisões em equipe, um dos seus mandamentos), chegou na mesa o problema do lixão, esgotado. Foi quando Jaime, que fazia as perguntas certas e tinha sempre as respostas mais simples para as questões mais complexas (odiava os homenzinhos vendedores de problemas), questionou: mas por que tanto espaço para acumular lixo? Não dá pra separar? Assim nasceu a Curitiba, Capital Ecológica, uma cidade que passou a se-pa-rar o lixo reciclável em to-dos os bairros, nada de projeto piloto; a comprar lixo nas favelas; a ensinar educação ambiental nas escolas; a plantar árvores e mais árvores e a criar parques e mais parques. Tudo isso antes da ECO-92, o encontro que começou a colocar o meio ambiente na agenda mundial.

Na mesma gestão, ao ser informado que o governador da época havia vetado o aluguel do Teatro Guaíra a um grupo de jovens que pretendia fazer o primeiro Festival de Teatro de Curitiba, meramente por ter patrocínio do então banco Bamerindus, do  senador à época, José Eduardo Vieira, Jaime veio com a salvação, ao invés de alimentar uma crise de egos: a Prefeitura construiu um novo teatro para a cidade, a toque de caixa, e o inaugurou em 75 dias. O teatro em questão é a Ópera de Arame, um dos símbolos mais conhecidos de Curitiba.

Campanha em rede antes da internet

A primeira eleição estadual vitoriosa foi em 1994. Jaime, que nunca foi grande orador, apareceu no programa gratuito de TV atrás da prancheta e passou a rabiscar o mapa do Paraná com canetinhas coloridas. Assim surgiu o Anel de Integração, que ligava todas as regiões do estado com estradas, serviços e emprego; as perspectivas industriais para um estado até então essencialmente agrícola e desenhos claros e lúdicos como o das Vilas Rurais, destinadas a trabalhadores sem terra e volantes.  Fez de Curitiba o seu show room, levando eleitores de todo o estado pra conhecer as obras da capital. Ao voltarem para o interior, esses multiplicadores carregavam na bagagem um filme de videocassete sobre a vida do candidato e material para atrair mais eleitores para a campanha. Desse jeito, fez a primeira campanha em rede e formada somente por voluntários, sem que as estruturas partidárias tradicionais notassem seu movimento. Quem pensou em outsider, diferente de tudo o que está aí, acertou.

Com o Anel de Integração, chegaram ao Paraná mais desenvolvimento e riqueza, mas vieram também os pedágios e seus contratos mal feitos, que deram – e ainda dão – muita dor de cabeça. Se por um lado modernizou e conseguiu fazer do Paraná o segundo pólo automobilístico do país, algo jamais imaginado nem por ele mesmo, por outro atraiu resistências e acusações pelas privatizações mal conduzidas e mal faladas nos anos 1990. Suas duas administrações de vanguarda – foi reeleito em 1998 pelo PFL, depois DEM – lhe deram um bilhete premiado para a sucessão presidencial de 2002. Uma versão de Frente Ampla da ocasião, de concorrer com um “técnico”. Mas não rolou. A política dos tubarões predadores não era pra ele. A sua última obra como governador foi um museu desenhado por encomenda ao colega Oscar Niemeyer, o Museu do Olho.

Um dos urbanistas mais importante do mundo

Ao largar a política nacional pela vida de arquiteto internacional, Jaime brilhou. Foi reconhecido como o segundo urbanista mais importante de todos os tempos pela revista Planetizen, atrás somente da lenda americana Jane Jacobs; foi apontado como uma das pessoas mais influentes do mundo pela Times; cantou num dos TED Talks mais assistidos de todos os tempos; foi homenageado e convidado pra falar em todas as partes do planeta. Falava sobre programas sociais premiados e feitos em conjunto com a sua mulher, Fani, como o Vale Creche e o Da Rua para a Escola, falava de mobilidade, de sustentabilidade, de futuro, de um mundo melhor.

“Saí da política sem mágoas”, declarou há alguns anos. Mestre em separar as urgências das necessidades, Jaime insistiu até o final em seus ensinamentos mais profundos, como os de que a cidade é o cenário do futuro, do encontro, da diversidade e da solidariedade e que “a maior atração de uma cidade é a qualidade de vida de seus moradores”. ​E mesmo já doente, longe da caneta BIC escrita fina e dos seus inseparáveis Moleskines, deixou suas convicções mais inspiradoras, como numa de suas últimas entrevistas, para a Folha de S. Paulo, ano passado: “em termos políticos o que deveria existir é a boa convivência entre aqueles que não concordam, isso está difícil nesse país. O que eu gostaria de ver é uma visão mais humana, mais próxima, não antagônica, espero que isso aconteça”. A gente também espera, Jaime.

 

Cila Schulman é jornalista, com especialização em gerenciamento de campanha eleitoral pela George Washington University, vice-presidente do Ideia Instituto de Pesquisa e partner da Behup, empresa de tecnologia e inteligência de dados. Foi coordenadora das campanhas eleitorais e secretária de Comunicação do Paraná no  governo  Jaime Lerner.

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