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Denise Fraga faz teatro que cutuca o retrocesso político do Brasil

Em “Galileu Galilei”, atriz põe diante do espectador as fragilidades humanas diante do jogo de interesses similar ao que marca o questionável processo de impeachment

atualizado

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Denise Fraga está no centro do poder. No palco, descobre que a Terra não é mais o centro do Universo e descarrega uma profunda discussão metafísica sobre o homem. As suas palavras foram escritas por Bertolt Brecht, o dramaturgo das revoluções que foi perseguido cruelmente pelos nazistas. Ao apresentar a montagem, “Galileu Galilei”, neste fim de semana, no Teatro Unip (913 Sul), a atriz lança metáforas que colidem com este triste cenário de tramamoias em que se tornou Brasília.

Vai ser impossível não pensar na deprimente sessão em que os deputados federais votaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff (em 17/04) a partir de uma ótica ordinária do âmbito privado (família, religião, propriedade). Numa entrevista exclusiva ao Metrópoles, a atriz, que tem desenvolvido uma carreira singular no teatro, conversa sobre o país, a política, a arte e suas expectativas.

Como é fazer um Brecht num momento de ebulição política como este?
Queria montar este texto há tempos. Ele será atual em qualquer época que for montado. Somos todos Galileus.

Vivemos embrenhados em jogos de poder numa sociedade na qual as decisões são pautadas pelo que é mais rentável

Como Galileu, estamos acostumados a negar o que nos parece verdade. Tudo para não evitar as muitas possibilidades de fogueiras cotidianas. A perda do emprego, do poder, a ameaça ao leite das crianças. A peça sempre será atual pois fala de um dilema intrínseco ao homem moderno.

Ganha força em conexão com a crise brasileira…
Diante do que estamos vivendo, ela deixa de ser só atual para ser propícia, parece feita por encomenda. Tenho esse projeto há cinco anos! A peça foi fazendo mais e mais sentido durante os ensaios. Talvez, pela própria crise, o texto nos ajuda a entender o que estamos vivendo e nos dá esperança. Nos lembra que somos autores da história da humanidade. Nos recruta a comprometer-nos com o coletivo. A achar brechas para manter-nos em dia com os nossos ideais.

“Galileu Galilei” tem montagem histórica de Zé Celso num momento político, o golpe de 1964, que, infelizmente, está sendo revisitado hoje de diversas maneiras. Essas leituras das ruas realimentam o entendimento do espetáculo?
Tudo o que estamos vivendo realimenta o entendimento do espetáculo. Creio que a nossa montagem é bem diferente do que sei sobre o que foi a histórica montagem do Oficina. O espetáculo do Zé Celso tinha um link direto com a ditadura. Mas o texto é o mesmo. Brecht o escreveu porque também foi subjugado a esquemas de poder por várias vezes em sua vida. Não é à toa que Galileu é sua única peça biográfica, da qual ele fez três versões durante a vida. Era quase uma obsessão. É obvio que ele se identificava com Galileu.

Em que sentido…
Ele se faz valer da história do cientista italiano e abre uma árvore de reflexões na qual a grande raiz é o poder.

João Caldas Filho/Divulgação

Galileu achou que, com o telescópio nas mãos, ninguém mais poderia negar o que parecia óbvio porque agora ele podia provar a verdade. Mas percebe que não existe verdade, existe a verdade que interessa ao poder vigente

Conhecemos bem esta história, vivemos a ditadura militar, a tortura, a censura. Graças a Deus, isto é passado. O triste é que não deixamos de negar verdades. Vivemos muitas ditaduras fragmentadas e ocultas nesse modo de vida que inventamos viver. A ditadura do poder econômico, por exemplo, do que rende mais, da necessidade de fazer tudo por dinheiro. Mas nada que se compare ao que vivemos naquela época, porque a liberdade de expressão é algo muito, muito valioso.

E como politicamente a cidadã Denise Fraga se vê dentro desse contexto político?
Me sinto triste. Muito triste. Acho que vivemos uma crise moral que abala nossa esperança. Me sinto desrespeitada. Já me sentia desrespeitada antes pelo rumo que o governo tinha tomado. Mas agora me sinto ultrajada. Ultrajada em minha inteligência. É como se eu estivesse me afogando e quem me salva do afogamento são tubarões enormes.

Pegaram carona na insatisfação de muita gente com o governo e se articularam de um jeito criminoso e despudorado. Dá vergonha. Vimos um espetáculo grotesco ao vivo pela televisão no último domingo (votação do impeachment). É um retrocesso com repercussão internacional. É incrível que tenhamos que engolir isso a esta altura do campeonato. É muito triste

Arriscaria uma saída…
Precisamos urgente de uma reforma política. Precisamos de uma atenção real, radical e qualitativa com a educação do país para que possamos evoluir como povo. Para recuperar nossa esperança em tempos melhores. Eles não pensam em nós. Não estão nem aí pra nós. Não pensam no nosso bem estar que, a princípio, era o que esperávamos de quem nos representa.

Apresentar em Brasília, cenário do impeachment x golpe, ganha outros sentidos?
Sem dúvida. Não há como não associar. Acho que dizer as palavras desse texto em Brasília terá carga redobrada para nós e para quem for nos assistir. Será inesquecível e creio que fará o ritual teatral potencializar-se em sua capacidade de comunicação e transformação.

Em “A Alma Boa de Setsuan” (de Brecht), que tive a oportunidade de assistir, chama a atenção a acentuação formal do espetáculo, sobretudo, na comicidade dos atores (potencial já existente no texto), o que ao meu ver tornou o seu Brecht atual, popular e ágil, sem ferir as linhas de força de conteúdo.

Nosso “Galileu” é, como o “Alma Boa”, um espetáculo também festivo. A encenação da diretora Cibele Forjaz, o que ela, com sua visão, ampliou no texto, fazendo um espetáculo altamente brechtiano, rico em variações, surpreendente, que nos comunicamos o tempo inteiro com a plateia, tudo isso faz valer a grande máxima de Brecht: “Divertir para comunicar.” Estou muito feliz de fazer este texto chegar às pessoas desta forma. Com um espetáculo grandioso, vibrante, com um elenco destes…

Com Denise Fraga, Brecht está perdendo a injusta fama de ser chato para os não iniciados?
Acredito na popularidade de Brecht desde que li o “Alma Boa”. Em várias de suas peças, ele se faz valer do humor, da ironia, de uma boa história, da música para nos levar deliciosamente pelo caminho da reflexão. Ele usa ingredientes clássicos do divertimento para nos inquietar. Estamos há um ano em cartaz. Lotamos um teatro de 700 lugares por meses a fio. Como dizer que Brecht não é popular? Como dizer que o público não quer pensar?

Como diz Galileu no texto: “Pensar é um dos maiores prazeres da raça humana.” E eu digo: pensar com divertimento é realmente um prazer enorme. E o público não sai do teatro de mãos vazias. Leva a peça pra casa, pros seus dias. Saem agraciados por ter visto algo nobre e que lhes deu prazer. E muita gente que nem sabia quem era o tal do Brecht

Alguma pontinha de medo em fazer um personagem masculino. Você teve dúvidas em assumir isso? 
Queria tanto dizer o que essa peça diz que achei que a estrela da peça não era um homem ou uma mulher, mas o grande embate de ideias. Um show de argumento e réplica rumo à reflexão. Como Galileu, eu queria mostrar o que tinha visto, o que tinha descoberto. Era maior que eu. Mas, muitas vezes, pensei em desistir achando que era muita ousadia de minha parte, que eu podia me dar mal, ser tosco, ridículo. Quando a Cibele topou fazer, me animei. E, aos poucos, ser uma mulher deu um sentido ainda maior a tudo.

Nada mais brechtiano do que uma mulher fazendo Galileu. Cibele sacou isto e sublinhou ainda mais essa condição no espetáculo. Tiro e ponho a peruca à toda hora na peça, passo de Denise a Galileu, de Galileu a Denise e, muitas vezes, caminhamos juntos em nossa vontade de dizer tudo aquilo

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