A lenda do palhaço brincante do Velho Chico
Uma homenagem poética do “Metrópoles” ao grande ator Domingos Montagner
atualizado
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Gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens
Guimarães Rosa
Há uma lenda no Rio São Francisco
Uma lenda poética que não acende o medo
Não é como a do Nego d´água, um duende sapeca que vira as embarcações e espanta os peixes
Nem a do Surubim-rei, um peixe capaz de devorar de uma única vez dois homens
Nem tampouco da Serpente-marinha de duas cabeças, que vasculha silenciosa às margens para engolir os que se divertem com as águas
Para ficar diante dessa lenda poética, é preciso um desprendimento de alma
Que se olhe para o Grande Opará, o rio-mar que os índios veneravam como um deus, e balbucie uma oração.
Uma oração desprendida de dogmas e religiões
Uma oração de permissão
Um pedido de licença para entrar em suas águas, molhar os pés
É necessário ainda que se perca a vista diante do Velho Chico de longas datas,
O rio-mar de muitas vidas geradas, de tanta morte tragada pelas correntezas de sangue.
Dizem que para se entrar em contato com essa lenda poética é preciso encarar o Rio São Francisco com os olhos da alma
Perder o “eu”, as referências cotidianas, a consciência do aqui e agora
Só assim seremos capazes de testemunhar essa aparição fantástica
Assim…
Surgirá à flor d´água um palhaço
Um palhaço marinho emergirá do Grande Opará
Eu o vi
Parece um sonho
O palhaço grandão dança como uma bailarina,
Lança-se ao ar como um peixe-trapezista
Mergulha como um brincante garboso
Nos faz rir
Nos faz chorar
O leito do rio transmuta-se num picadeiro de circo
É um palhaço que nos conduz à paz
É um palhaço-rio-mar que nos enche de esperança
Ele boia com suas vestes coloridas e lança um jato de água pela boca
Divertido, produz o som do sax
Ao seu redor, sempre há um cardume de peixinhos que colore as águas turvas
De longe, ouvimos a voz do poeta que ecoa de uma terceira margem imaginária
A dizer que o rio-mar agora é rio-homem-mar
Dizem que esse palhaço foi tragado pelo Grande Opará para que suas águas se enchessem de mais vida
Doou-se para que os homens entendessem que sem rio não somos nada
Quem vê esse palhaço-peixe é tocado para os restos dos dias
Torna-se um defensor do Velho Chico
Um índio do Grande Opará
Fica encantado pela poesia do rio São Francisco
Rio de lendas, rio de poetas
Agora, rio do palhaço peixe poético brincante
Para Domingos Montagner, para os extintos índios Caetés, para Guimarães Rosa e todos que amaram e amam o Grande Opará
Assista aos versos cortantes de “Domingos”, compostos pela poeta Maria Rezende, no calor da hora da notícia da morte desse grande ator e humano.