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“Reabilitação é essencial na Covid longa”, afirma presidente do Sarah

A neurocientista Lucia Willadino Braga está à frente de um estudo pioneiro sobre os impactos da Covid longa e a importância do tratamento

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Mulher de blusa preta, sorrindo de perfil - Metrópoles
1 de 1 Mulher de blusa preta, sorrindo de perfil - Metrópoles - Foto: Metrópoles

Há quatro anos, em 26 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde confirmava o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. De lá para cá, foram registrados mais de 38,4 milhões de diagnósticos da doença. Parte dessas pessoas convive ainda hoje com as consequências do quadro, em uma condição que ficou conhecida como Covid longa.

Estima-se que cerca de 10% a 20% dos infectados pelo coronavírus sejam acometidos pela Covid longa, que é caracterizada pelo desenvolvimento de novos sintomas três meses após a infecção inicial, com duração de pelo menos dois meses sem outra explicação.

“O vírus causa efeitos de longo prazo. É uma infecção sistêmica, que ataca vários órgãos tardiamente: pulmão, coração, cérebro, as articulações. Os sintomas da Covid longa permanecem bastante tempo depois da fase aguda da Covid-19″, afirma a neurocientista Lucia Willadino Braga, presidente da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, em entrevista ao Metrópoles.

A pesquisadora está à frente de um importante estudo sobre os impactos da Covid longa na vida das pessoas. Os resultados mostram que muitas sofrem com problemas de memória, de fluência mental, dificuldade de manter o foco, ansiedade e depressão até dois anos após a fase aguda da infecção.

A partir dessas descobertas, a Rede Sarah desenvolveu um programa de reabilitação neuropsicológica com grupos psicoeducativos. O tratamento é oferecido gratuitamente à população de todo o país com consultas presenciais ou de forma on-line com inscrição pelo site da Rede Sarah.

“O principal resultado desse estudo foi ver que a variável mais importante para a melhora foi ter participado dos grupos de reabilitação neuropsicológica”, afirma a neurocientista. Confira a entrevista completa:

Leia a íntegra da entrevista com a neurocientista Lucia Willadino Braga:

Metrópoles: Hoje, o Metrópoles entrevista a neurocientista Lucia Willadino Braga, presidente da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação. A pesquisadora está à frente de um importante estudo nacional sobre os impactos da Covid longa na vida das pessoas. Olá, doutora, tudo bom?

Lucia Willadino Braga: Tudo ótimo. É um prazer estar aqui com vocês.

Metrópoles: Prazer em recebê-la. Bom, após as grandes ondas da Covid-19 que a gente viveu nos últimos anos, os médicos começaram a falar que a gente deveria começar a se preparar para o pós-Covid, para o que viria depois dessas ondas. Essas consequências, as previsões, elas se concretizaram?

Lucia Willadino Braga: Se concretizaram. É impressionante. O vírus realmente causa efeitos de longo prazo. É uma infecção sistêmica, ataca vários órgãos do organismo, pulmão, coração, tardiamente cérebro, as articulações. Então, a Covid longa é realmente preocupante. Ela está aí. E ela permanece, os sintomas permanecem mesmo bastante tempo depois da fase aguda da Covid-19.

Metrópoles: Muita gente que está assistindo provavelmente está convivendo com a Covid longa e não sabe ou não teve um diagnóstico. A senhora pode explicar para quem está assistindo o que caracteriza a Covid longa e quais são os sintomas que as pessoas devem ficar atentas?

Lucia Willadino Braga: Na nossa área, que é a neurociência, chamam muita atenção os problemas de memória, muitas pessoas relatam problemas de memória, de planejamento, de faltar palavra. A fluência verbal, não vem a palavra que eu quero, tenho dificuldade de prestar atenção.

Então, o que aconteceu com a gente, a Rede Sarah, nós somos nove hospitais de reabilitação. A gente atende a quase 2 milhões de pessoas por ano. De repente, na porta de entrada da rede Sarah, 30% das pessoas buscavam uma reabilitação da memória, do raciocínio, do planejamento. Então, isso nos chamou a atenção e a gente viu que era uma dúvida internacional.

Não tinha literatura no mundo: quando a gente fala de qualquer doença, tem artigos publicados, tem livros. E a Covid-19 foi um grande desafio internacional. O Brasil saiu na frente na pesquisa, isso foi muito positivo. Os nossos artigos estão sendo muito lidos.

Metrópoles: Falando em artigo, como eu falei no início, a senhora está à frente de uma pesquisa importante aqui no Brasil sobre a Covid longa que fala sobre como a doença impacta as pessoas dois anos depois do diagnóstico da Covid-19 e como o tratamento é importante. A senhora pode explicar um pouquinho?

Lucia Willadino Braga: O que a gente percebeu inicialmente: nós fizemos um primeiro estudo com 614 pessoas mostrando as dificuldades que tinham surgido no planejamento, na atenção, na memória, no raciocínio. Casos de ansiedade, depressão também. E aí buscamos criar tratamento, reabilitação neuropsicológica, grupos psico-educativos, e começamos a oferecer isso para a população.

E, dois anos depois, a gente chamou o grupo de volta, as pessoas que tinham interesse de voltar, para a gente ver o quanto elas tinham melhorado e a que atribuíam a melhora. Então, a segunda fase do estudo diz respeito a essa questão.

Metrópoles: E as pessoas realmente melhoram? Existe um tratamento para Covid longa, ou a gente naturalmente vai melhorando?

Lucia Willadino Braga: Não, tem um tratamento. A Rede Sarah inclusive oferece esse tratamento público, são os grupos psico-educativos. Basta pedir no site da rede Sarah, a gente atende todo mundo. A gente percebeu, percebemos, que o principal resultado desse segundo estudo é que a variável mais importante para a melhora foi ter participado dos grupos de reabilitação neuropsicológica.

Os grupos têm sido muito procurados por pessoas de alto nível de escolaridade que sentem falta dessa coisa do raciocínio mais rápido, da memória. De virem as palavras corretas ao dar uma aula para um professor universitário, um médico. Então, a gente tem uma procura muito grande por pessoas de alto nível de escolaridade e os resultados dos grupos são fantásticos.

Realmente, são muito bons, e as pessoas estão relatando hoje melhoras importantíssimas na memória e em todas as atividades, inclusive no controle da ansiedade. A pessoa aprender a controlar a própria ansiedade, trabalhar a depressão, isso tudo é muito positivo.

Metrópoles: E na prática, como é o tratamento?

Lucia Willadino Braga: São grupos que podem ser feitos presenciais onde nós temos hospitais da Rede Sarah, ou em outras instituições também brasileiras que acredito que ofereçam, e esses grupos podem ser remotos.

Inclusive, uma dúvida de pesquisa que a gente tinha era se o grupo remoto funcionava menos do que o presencial. A gente até acreditava que o presencial funcionaria mais, e foi um resultado surpreendente, porque foi o mesmo nível de melhora, os pacientes que participaram remoto ou presencial, o que permite uma expansão desse tratamento.

A gente faz quatro sessões de duas horas, uma vez por semana, coordenado por um psicólogo da nossa rede. E aí as pessoas vão discutir. Um ouve o outro, e a gente ensina estratégias de como superar os problemas, e isso ajuda também a exercitar o cérebro.

Metrópoles: E a senhora falou, tanto presencial quanto on-line, e está acessível para qualquer pessoa. Não tem um custo na Rede Sarah, por exemplo?

Lucia Willadino Braga: Não, o atendimento da rede Sarah é público. A rede é mantida com orçamento da União e basta pedir no nosso site. Não temos problemas de vaga, nós criamos um sistema para acolher todo mundo que precisa porque a gente sabe a importância do cérebro, do pensamento, do humor bom, de estar bem. Então, não poderíamos deixar de oferecer isso para a população brasileira.

Metrópoles: E a senhora que está à frente da pesquisa: ao longo dos anos, vários estudos foram saindo com sugestões do que poderia estar provocando a Covid longa. Já se chegou a um consenso?

Lucia Willadino Braga: Olha, a gente vê que o vírus ataca diferentes sistemas e de maneiras diferentes. Então, no cérebro, o vírus ataca os nossos astrócitos, que são células que alimentam os neurônios. Daí o que acontece: morrem neurônios e vem essa dificuldade que as pessoas sentem.

Então, com essas estratégias cognitivas, a gente vai trabalhando para criar caminhos. É o que a gente chama de neuroplasticidade, caminhos alternativos a novas redes neuronais para chegar aos mesmos resultados. E a gente vê que isso funciona.

Metrópoles: A senhora já comentou que várias pessoas continuam com as consequências, continuam sentindo os sintomas da Covid longa anos após a infecção. Como que isso impacta essas pessoas no cotidiano? O que eles têm relatado no estudo que está em andamento?

Lucia Willadino Braga: Impacta muito, a Covid longa, porque a pessoa antes tinha uma atenção muito boa, aí não consegue mais fazer duas coisas ao mesmo tempo, tem que fazer só aquela coisa. Lembravam-se de tudo, mas se esquecem. Começam a ler um texto, por exemplo, um jornal ou um livro, quando chegam no final, o que eu estou lendo mesmo? Volta para o início. Aí, lembro de ir no quarto pegar um objeto, chega no quarto, não lembro o que fui fazer no quarto. Então, isso afeta muito, e a gente percebeu isso.

Nós recebemos muitas professoras universitárias, a gente viu que a Covid longa atacou mais os cérebros de mulheres, e nós recebemos muitas professoras universitárias com essa dificuldade. Aulas, que elas tinham que dar, tinham que estar atentas, e de repente, sumia. Isso é bastante assustador e impacta na qualidade de vida, impacta no cotidiano, impacta nas relações interpessoais.

Então, nós realmente precisamos cuidar dessas pessoas e ajudar para que elas superem. E assim, tem sido bonito ver. Acho que essa é a mágica da reabilitação. É a coisa que nos dá muito prazer, é ver as pessoas realmente melhorando. Hoje, já a gente vê relatos assim: ‘Ah, com os grupos aprendi que consigo eu mesma controlar minha ansiedade, aprendi como usar estratégias’.

Então, eu sei que tenho que fazer um check list todo dia do que eu tenho para fazer. Sei que tenho que planejar minhas atividades, tenho que guardar as coisas no mesmo lugar. Então, são várias dicas que a gente vai dando nesses grupos. A pessoa vai incorporando no seu cotidiano e, com isso, melhora a qualidade de vida.

Nesse estudo, a gente viu, por exemplo, a gente aplicou o mesmo instrumento, que quem teve uma melhora neuropsicológica no planejamento, na memória, na percepção espacial, na fluência verbal, a gente vê uma melhora na qualidade de vida e um desaparecimento de sintomas de ansiedade e depressão. E é muito interessante que a impressão subjetiva de cada pessoa também tem uma relação direta com os testes.

Então, é muito bom saber que a gente pode sair. A Covid-19 realmente é muito impactante, né? É muito impactante porque é uma coisa que chega e atropela seu cotidiano, aquilo que era tão fácil fazer de repente se torna tão difícil ou tão complicado. Te tira o chão.

Metrópoles: E não são só as consequências se você enfrentar a doença, ainda tem o pós.

Lucia Willadino Braga: Exatamente, porque enfrentar a doença, assim, a gente tem uma gripe forte. No início, eu acho que não, antes das vacinas, as pessoas estavam morrendo efetivamente na fase aguda. Aquilo foi muito sério. Com a vacina, a gente vê que as pessoas não têm um quadro tão grave, mas não deixam de ter a Covid longa. Os quadros são mais leves e as consequência são interessantes porque nem sempre elas, e a gente mostrou isso inclusive em dados, estão relacionadas à gravidade da Covid-19.

Então, a pessoa às vezes esteve entubada em um hospital e apresenta sintomas neuropsicológicos leves, outros tiveram uma gripezinha à toa e tem sequelas importante, então, não tem essa relação tão forte.

Metrópoles: Perfeito, doutora. Alguns estudos sugerem fatores que podem levar à Covid longa. A senhora comentou que mais mulheres têm procurado o Sarah. Algumas pessoas desenvolvem a Covid longa, outras não. Sexo, idade, questão de saúde mental, gravidade da Covid-19, como a senhora bem falou, têm uma influência, eles vão determinar se o vírus vai levar uma Covid longa ou não?

Lucia Willadino Braga: Olha, a Covid longa pode acontecer em vários sistemas, como eu falei. Então, pode ser no pulmão, pode ser no coração. A gente não sabe. Em cada órgão, ela tem uma característica. No cérebro, o que a gente viu predominantemente foi em mulheres.

E o primeiro estudo que mostrou isso foi um estudo brasileiro nosso, depois, no mundo todo, isso se confirmou, que atinge principalmente a mulheres, provavelmente por uma questão hormonal. A mulher fica mais desprotegida do vírus com relação a essas regiões anteriores do cérebro, que é a parte da frente do cérebro, e a parte da memória lateral, então ficam mais desprotegidas as mulheres.

O nível de escolaridade alto protege, a idade jovem protege, e mesmo assim a gente teve pessoas jovens, com escolaridade alta, com dificuldades. Mas são fatores que protegem, a gravidade da Covid-19 não me parece ser muito importante.

Metrópoles: Alguns estudos já mostram que, assim como a Covid-19, o vírus sincicial respiratório causa uma consequência pós. Queria saber se existe alguma comprovação que outros vírus, como dengue, chikungunya, também poderiam causar um quadro prolongado nos pacientes.

Lucia Willadino Braga: Bom, a gente vê que no caso do zika, causa quadros prolongados no sentido de que afeta a formação cerebral da criança, do feto, do bebê. Então, é realmente esses vírus, a gente vê esses mosquitinhos que andam por aí são muito perigosos e têm consequências muito graves. Principalmente, nos preocupa muito nas gestantes.

Metrópoles: Bom, doutora, então pra quem está assistindo a gente que está com algum sintoma de Covid longa, isso que a senhora comentou, como o Sarah pode ajudar essas pessoas?

Lucia Willadino Braga: Nós podemos ajudar com grupos psicoeducativos, de reabilitação. A pessoa pode fazer remoto, a partir da sua casa, de qualquer lugar do Brasil. É gratuito. Basta entrar no site da Rede Sarah de hospitais de reabilitação, logo quando abre o site tem reabilitação pós-Covid. Aí pergunta onde a pessoa deseja ser atendida. Ela coloca Brasília, vamos supor, mas mesmo que ela esteja no Acre ou no Rio Grande do Sul, ela vai dizer que quer fazer por telereabilitação.

Nós oferecemos o serviço, são criados grupos, e esse grupo é muito bom porque as pessoas vão poder trocar com outras pessoas. Ter orientações profissionais de saúde sobre como se cuidar, como melhorar, e vão sentir os efeitos, a repercussão na sua vida cotidiana, na sua qualidade de vida.

Metrópoles: Obrigada, doutora, por ter vindo ao Metrópoles esclarecer as nossas dúvidas.

Lucia Willadino Braga: Eu agradeço. Foi um prazer estar novamente aqui no Metrópoles com você. Muito obrigada, Bethânia.

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