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Pequenos encontros, grandes tensões em cinco séculos de arte

A mostra “Entre Nós” segue em cartaz até 18 de setembro no Centro Cultural Banco do Brasil

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto de abre (1) - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Já entramos nos últimos dias da mostra “Entre Nós” no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Trata-se de uma alentada retrospectiva de arte figurativa, criada a partir do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Segue em cartaz na cidade até 18 de setembro.

Luciano Migliaccio e Rodrigo Moura, os dois responsáveis pela mostra, pescaram uma centena de obras entre as mais de seis mil peças que compõem a coleção da instituição paulista. Antes de chegar a Brasília, a exibição deu um giro pelos CCBBs de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Agora, ao fim da estrada, podemos dar conta do extenso trabalho a que os curadores se propuseram, guiando-se entre o didatismo para as massas e a intuição própria a um estudioso da arte.

Seis séculos de arte figurativa ocidental. Nada menos que isso. Até um pouquinho mais. Pois uma e outra peça são anteriores a esse período de tempo. Entrou um ícone medieval aqui, apareceu uma ancestral estatueta em terracota ali. Mas nada que mude a configuração geral do espetáculo. Pode-se dizer, portanto, que a grande aventura que aqui palmilhamos — a saber: o desafio de retratar a figura humana em traços e cores — tem origem no século 16 e chega aos dias atuais.

Para tentar amainar o desnorteio que um périplo de tal extensão causa, com seus inevitáveis saltos temporais e suas ainda mais inevitáveis omissões, é especialmente gratificante tomar a visita de “Entre Nós” aos bocadinhos, estar atento aos detalhes da distribuição das obras pelas galerias da casa, reparar nos pequenos encontros espaciais e emocionais que sua configuração realiza.

Aqui neste texto vamos espiar ligeiro alguns desses momentos…

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Com suas paredes em curva, o amplo salão principal do CCBB, dedicado a abrigar peças da virada do século 19 para o século 20, reserva alguns desses pequenos encontros. À direita de quem entra, temos duas figuras célebres das chamadas vanguardas europeias, duas das pinturas mais queridas do Masp.

O italiano Amedeo Modigliani e o espanhol Pablo Picasso se trombaram em Paris, capital mundial da arte na primeira metade do século passado, compartilharam mútua admiração e influência. Picasso, já sabemos, era o pop star máximo. Figura em torno da qual gravitavam aprendizes e amantes, marchands e oportunistas. Modigliani era menos descolado. Demorou para ganhar o reconhecimento que hoje desfruta. Morreu um tanto pobretão, diz a lenda, ainda jovem, vencido pela febre e pela sífilis.

De Picasso, dizia-se que invejava a elegância do amigo Modigliani. E a pintura de Modigliani que cá o representa entre nós, de fato, é das mais elegantes. Também sóbria, austera e um tanto melancólica. Seu retrato do poeta polonês Leopold Zborowski traz um volteio cubista no rosto do rapaz, à semelhança daquelas máscaras que vinham da África e da Oceania para revelar novos ângulos e feições aos pintores europeus. (Um abraço para Pablo Picasso.) Um olho de cada cor. E a figura é alongada, longilínea ao limite do anatomicamente impossível, numa provável influência, acreditam os curadores brasileiros, do escultor romeno Constantin Brâncusi, outro notável personagem dos cafés parisienses.

(Leopold Zborowski, vale saber, era amigo pessoal de Amedeo Modigliani e foi o primeiro mecenas que o italiano encontrou em Paris. Zborowski foi figura de uma série de retratos por ele encomendados, e também comprou outras tantas telas. Assim faturou um bocado após a morte de Modigliani, mas o próprio Zborowski, anos mais tarde, também morreria jovem e quebrado.)

Ali ao lado de Modigliani, também pendurada na parede da galeria, uma pintura de Pablo Picasso tem efeito semelhante ao silenciosamente comentar sobre seu autor. Pertinho do elegante desmazelo de Modigliani, o retrato de um atleta feito pelo espanhol, ainda nos anos de auge do cubismo (1909), parece transparecer a altivez e a postura impávida que foram características da imagem pública de Picasso por toda sua longa e bem-aventurada carreira, que ele viveria bem mais e bem melhor que o amigo italiano.

Picasso e Modigliani trazem nestes retratos a tensão — seja no longo pescoço do poeta, seja nos músculos hipertrofiados do atleta — que é tão característica da arte do final do século 19, início do século 20. Uma tensão entre o equilíbrio da forma clássica, estimada pelas academias de belas-artes, e o desequilíbrio dos rompantes de liberdade temática e ousadia formal que, de tempos em tempos, bafejam e balançam a norma constituída.

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Como as pequenas bailarinas do francês Edgar Degas (imagem que abre esta página), que elas, mesmo congeladas sob a forma rígida do bronze, parecem prestes a perder o equilíbrio, ou prestes a saltar no ar.

Saltar ou cair. Ou melhor: o clássico e o anticlássico. Talvez essa seja a única constante em cinco, seis, sete séculos de arte ocidental. Essa dialética não apenas está presente no trecho da exposição dedicada à arte religiosa, como talvez ali ela constitua a principal narrativa, o principal drama em três telas retiradas do inesgotável período do renascimento e do maneirismo (séculos 14 a 17)…

Um retrato de São Sebastião em pleno flagelo, amarrado e cravado de flechas, é a obra principal, em envergadura, desta sala da mostra. Esta tela de Pietro Perugino vale como uma amostra compacta do renascimento. Está ali a dimensão humana, seja na arquitetura em que se dá a cena, seja no martírio do santo. Está também a dimensão das ideias, a dimensão do divino, seja na natureza que a tudo assiste indiferente, seja na plácida fisionomia do santo, olhando para cima, talvez a esperar apenas pelo arrebatamento — que vem daqui pra pouco.

A cena de Jacopo Tintoretto é um pouco mais intensa. Cristo é apresentado por Pôncio Pilatos à multidão. Todos sabem no que vai dar. Os céus já estão mais escurecidos que aqueles de Perugino, com nuvens pesadas a se formarem. Pois mesmo os céus já sabem no que vai dar. E todos têm um papel a cumprir naquele episódio. Mesmo o cachorro, esparramado nos degraus, parece antever a desgraceira.

A se tomar por medida as datas atribuídas às pinturas, três ou quatro décadas separam a tela de Perugino da tela de Tintoretto na primeira metade do século 16. No entanto, mais do que isso, parece haver um mundo inteiro a separá-las. Todo um conceito sobre o que se pode pintar, o que é próprio de ser pintado, e o que nem tanto. Mesmo ao santo em pleno martírio, para Perugino, convém ter o corpo bem definido, a postura ereta, a face serena. Mesmo suas feridas são limpinhas e harmoniosas.

Subindo um tantinho mais pela linha do tempo e cruzando alguns metros pelo salão do CCBB, chegamos a El Greco. A anedota mais conhecida sobre esse pintor de origem grega, vivência espanhola e inabalável fé cristã, dá conta de que certa feita ele teria sido surpreendido em pleno processo criativo por um amigo que foi visitá-lo no meio da tarde. Domenikos Theotokópoulos estava de boa, entretido pensando sozinho, num quarto todo escuro. O visitante fez menção de abrir as cortinas. O pintor pediu que ele parasse e deixasse tudo como estava. Teria dito que: a luz lá de fora impede que enxergue a luz aqui de dentro.

Domenikos Theotokópoulos, mais conhecido como El Greco, aparece aqui com uma pintura entre as calculadas setenta (!) que ele dedicou a São Francisco, seu santo de devoção.

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São Francisco a receber as estigmas de Jesus Cristo. A tela de El Greco encontra o santo afastado de tudo, sozinho no que parece ser uma noite escura (uma caverna escura?). Apenas uma luz branca e mortiça ilumina a cena, ilumina o rosto do homem. Seus olhos transfigurados.

Luz e escuridão, uma tensão mui cara para toda a arte de origem religiosa. El Greco que não nos veja, mas Nelson Leirner deu um jeito nisso. Um tantinho distante da ilha de fé formada por Perugino-Tintoretto-Greco, como que erguido longe deles para não ofender as suscetibilidades, Leirner revisita à sua maneira a arte sacra.

Como num retábulo de igreja gótica, ele entroniza um retrato de Rei Roberto Carlos bem no centro da figura e, em seu entorno, vai espalhando uma série de imagens de santos menores, São Expedito, São Jorge, São Cosme e São Damião, Santo Antônio, São Francisco também. Uma luz néon contorna a cabeleira e os cachos de Rei Roberto Carlos, seu rosto e sua blusa de tempos de Jovem Guarda. Quando o néon azul acende — aos pouquinhos no começo — vai revelando o altar pagão de Nelson Leirner até que, de repente, poh! tudo explode em luz branca.

Uma catraca de ônibus completa a instalação.

(Nelson Leirner, vale lembrar, é aquele mesmo artista que submeteu um porco empalhado à apreciação do corpo de jurados do Salão de Arte Moderna do Distrito Federal no ano da graça de 1967. Deu um rolo danado. Além de empalhado, o porco de Leirner ainda trazia uma fatia de presunto pendurada no pescoço… Este altar para Roberto Carlos ele tinha feito um pouquinho antes, 1966.)

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Fechando esta breve visita a “Entre Nós”, e deixando claro que há outras dezenas de obras dignas de registro, seria indelicado sair agora sem nos despedirmos de Vincent Van Gogh e Paul Gauguin. Outro (re)encontro possibilitado pela exposição.

Assim como as pinturas dos demais mestres europeus envolvidos em “Entre Nós”, as telas de Van Gogh e Gauguin não são aquelas referendadas como obras-primas imorredouras pelo circuito de arte do primeiro mundo, aquelas arrematadas por xeques árabes em cifras quase abstratas de tão extraordinárias. Não são. Mas são trabalhos bem característicos de cada autor. Identificáveis logo ao bater o olho.

Paul Gauguin e Vincent Van Gogh foram bastante próximos durante certo tempo. Aproximaram-se por ação do irmão mais novo de Vincent, o mercador de artes Theo Van Gogh, que enxergava interesses e gestos comuns entre os dois artistas. Chegaram a morar juntos por alguns meses, na cidadezinha de Arles, perto de Paris. Gauguin naquela época já era reconhecido, e Van Gogh nada.

Assíduos frequentadores dos bares e bordéis da região, os dois pintores viviam às turras e, a se crer nas crônicas da época, aproximavam-se e afastavam-se ao sabor das bebedeiras. Até que, numa noite em que estava com os nervos especialmente atravessados, Van Gogh cortou fora a própria orelha com uma navalha — talvez por conta da paixão por uma prostituta, talvez por inveja do sucesso de Gauguin com os marchands e com as mulheres.

O certo é que os dois se separaram naquele episódio. Van Gogh morreria um par de anos mais tarde, entregue a surtos crescentes de sífilis e depressão. Gauguin, que já tinha apreço pelo mar e pela estrada, voltou a viajar e daquela vez foi longe de verdade, só parando na Polinésia Francesa, Oceania. É de se acreditar que morreu sentindo-se culpado pelo destino atroz do amigo. Tanto que, logo nos primeiros parágrafos de seu volume confessional “Avant et Aprés”, editado apenas duas décadas após sua morte, Gauguin se apressa a esclarecer sua versão para os fatos.

Filho de um francês com uma peruana, Paul Gauguin passou a infância no Peru e, de volta à Europa, saiu a viajar assim que pôde, alistando-se ainda adolescente na marinha mercante francesa. Mais tarde, casou-se com uma dinamarquesa para mais adiante largar a mulher, os filhos e a Dinamarca. Depois da breve temporada em Arles e do infame incidente, cogitou se mudar para América do Sul, mas acabou por dar com os costados no outro lado do globo. Não voltaria à Europa. Morreria na Polinésia, fazendo do povo daquele lugar o tema único de todos os seus últimos trabalhos.

Um século depois, Paul Gauguin e Vincent Van Gogh cá estão na América do Sul.

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