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Romance gráfico de Seth é jornada impressionista pela memória

A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar tornou-se uma marco na autobiografia em quadrinhos

atualizado

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1 de 1 Metropoles_Seth_capa - Foto: Divulgação

O quadrinista canadense Seth é uma figura altamente idiossincrática. Vestido como um legítimo mad man do século 20 (sempre alinhado e nunca deixando faltar seu chapéu estilo Homburg), ele pode ser considerado um dos maiores herdeiros do grande Robert Crumb no mundo dos quadrinhos autorais contemporâneos.

Isso se dá não só porque ambos se comportam como homens dos Roaring Twenties, cultuam jazz dixieland e cartunistas das famosas daily strips das primeiras décadas do século passado, mas também pela vinculação ao gênero da autobiografia em quadrinhos – Crumb, com seu jeito devasso e neurótico; Seth, por meio da timidez, pessimismo e altos graus de neurose existencialista.

Seth vem realizando, desde os anos 1990, a série Palookaville, uma devassa sentimental de sua própria existência, explorando detalhes pitorescos de suas andanças e observações, experiências na adolescência e (des)encontros amorosos. Pode parecer uma fórmula banal para os dias de hoje, nos quais a autobiografia em quadrinhos ganhou tons e proporções muito diferentes, mas esse autor é um dos pioneiros do gênero.

Daí a boa notícia com o lançamento, pela editora Mino, de A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar, um romance gráfico publicado na Palookaville entre 1993 e 1996, considerado o melhor produzido pelo autor canadense. Até então, o único trabalho de Seth que havia saído no Brasil havia sido Wimbledon Green – O Maior Colecionador de Quadrinhos do Mundo (pela Bolha editora), muito especializado e não tão abrangente.

A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar é uma jornada íntima, com cores ficcionais, da vida de Seth em Ontario, no Canadá, durante os anos 1980. Obcecado pelos artistas das famosas comic strips, que povoaram o imaginário e os jornais do mundo no século 20, ele descobre um tal de Kalo, cartunista obscuro da New Yorker nos anos 1950, desaparecido sem deixar rastros. A obsessão o leva a ir ao encalço do paradeiro desse homem.

 

A busca por Kalo (um personagem fictício) é o fio condutor para o devanear passageiro do autor por suas questões e obsessões. Seu interlocutor é o também quadrinista canadense Chester Brown, o mestre por trás do excelente Pagando por Sexo.

A relação da ficção com a realidade e a memória surge como a verdadeira tônica que traz sentido ao quadrinho. Andarilho, cheio de monólogos e pensamentos nos episódios recordatórios (muitas vezes intercalando duas narrativas, uma textual e outra imagética), Seth alcança o zênite dessa forma de arte com potente melancolia e poesia pulverizada em seu livro sobre tudo e nada ao mesmo tempo.

Isso torna sua escrita propriamente proustiana. Em sua busca por Kalo, emergem memórias de sua infância, de sua relação com a família, de ex-namoradas, de lugares por que passou e até da natureza das lembranças em si. Sonhos, devaneios e minimalismo adentram neste íntimo impressionismo.

Para os padrões atuais, este tipo de fenomenologia em quadrinhos pode parecer um pouco antiquado (chamariam, levianamente, de white people’s problems), mas é fato que ele foi revisitado em obras máximas como Fun Home, de Alison Bechdel, no quadrinho jornalístico de Joe Sacco ou nas incursões surrealistas de Charles Burns.

De fato, Seth está a meio caminho entre a primeira onda do quadrinho indie – que inclui os impropérios escritos por Crumb e Shelton, passando pela coolness dos irmãos Hernandez – e a sua multifacetada era contemporânea, na qual escrever e ilustrar a si próprio se tornou modus operandi e emancipação de toda uma geração de quadrinistas.

Além de tudo, Seth ilustra num traço charmoso e cartunesco, devedor da linha clara americana (Pafúncio e Marocas) e europeia (Tintim), utilizando com igual habilidade o poder do texto (seus pensamentos são interessantes) e das imagens. Não são raras longas e tristes passagens mudas, devidamente decupadas como no cinema, imitando movimentos de câmera.

Um passeio de trem, uma ida ao museu de história natural, uma visita a uma casa há muito esquecida. Mais do que a procura e obsessão por cartunistas da velha-guarda, A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar trata do remanejo da memória, das passagens involuntárias da vida, do caráter incompleto que cerca a tudo e a todos. Poderia não ser somente a história de Seth, mas sim até mesmo a sua.

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