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Medo e delírio no Museu Nacional: aventura por 4 séculos de gravura

A mostra segue em cartaz até 22 de julho

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Uma vasta coleção da gravura europeia pertencente ao Itaú Cultural está a se espalhar na mais ampla sala do Museu Nacional Honestino Guimarães. Programada para seguir em cartaz até 22 de julho, a mostra Imagens Impressas tem ambição à altura de seu calibre.

Adquirida quase que inteiramente num só lote pela instituição financeira, numa compra feita há um par de décadas, essa coleção vem sendo identificada, catalogada e preservada desde aquela época pela equipe do Itaú Cultural – até tomar a forma dessa mostra, que partiu de São Paulo, percorreu Santos, Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto, antes de bater cá em Brasília.

Sob curadoria de Marcos Moraes, a coleção traz alguns nomes mui caros à história da arte e de apelo imediato ao grande público, como Rembrandt van Rijn (1606–1669) e Edvard Munch (1863–1944). Ainda que esses dois queridos camaradas sejam atualmente mais lembrados em relação à pintura do que necessariamente à gravura, ambos desenvolveram em suas trajetórias importante trabalho em gravação.

E os quase três séculos que separam Rembrandt de Munch mostram tanto a desenvoltura e a permanência da gravura como linguagem autônoma na história da arte europeia como o fôlego dessa exposição, que não se intimida sob seu largo panorama cronológico (do século 16 à beirada do 20) e, dentro dele, ainda busca variadas técnicas de gravação, seja em metal, seja em madeira.

Desse modo, cá neste texto, longe da intenção de esgotar essa exibição, tratamos de apontar alguns pontos de inflexão dentro duma mostra que bem merece duas ou três visitas…

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Mais célebre e mercurial pintor holandês de seus dias, Rembrandt desenvolveu uma técnica de gravação que lhe permitiu transpor da pintura para a gravura um gestual semelhante ao encontrado por ele no pincel. A chamada água-forte. Para tanto, usava uma chapa de metal, como a gravura tradicional já vinha fazendo desde a Idade Média.

A manha de Rembrandt era que, em vez de tomar um objeto pontiagudo, como um buril, e inscrever no metal as linhas da imagem, ele revestia a placa com uma cera e desenhava com uma agulha nessa superfície lambrecada, de maneira muito mais livre e desembaraçada, a imagem pretendida. Onde a agulha riscava, a cera era removida, o metal ficava exposto. Em seguida, a placa seria levada a um banho de ácido para corroer tudo o que a cera não estivesse protegendo. Estaria pronta, então, a matriz de obras como Velho com Chapéu de Pele Fendido (1640).

Contemporâneo, conterrâneo de Rembrandt e dono de semelhante mestria, porém espírito mais afável, Anthony van Dyck (1599–1641) se tornou o pintor da corte de Carlos I, rei de Inglaterra, Escócia e Irlanda. Esmerou-se, assim, no retrato da nobreza e levou para a pintura a óleo uma carga de luminosidade e sinestesia que se tornou a essência do barroco aristocrático – tal e qual Diego Velázquez na Espanha. Aqui, nessa mostra, encontramos um par de gravuras feitas por outros artistas a partir de originais de van Dyck, que naquela época já vivia em Londres e mantinha na Holanda um bom mercado para sua obra gráfica.

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Giovanni-Batista Piranesi (1720–1778) foi um dos artistas mais conhecidos e bem-sucedidos da Itália ao se dedicar a um gênero que seus conterrâneos chamavam de veduta – e assim passaram a ser tratadas, na história da arte, as “vistas”, as paisagens apreendidas em mínimos detalhes arquitetônicos e topográficos.

No século 17, as paisagens já tinham se tornado um gênero consolidado na Holanda, tanto aquelas de cenário urbano quanto as de panoramas rurais. E a Itália era um centro de evidente interesse, graças ao seu passado, suas antiguidades e as ruínas dos tempos romanos, atraindo visitantes de todo o continente europeu, intelectuais, pensadores, humanistas, escritores e, claro, pintores.

Nascido e criado em Treviso, na República de Veneza, Piranesi logo se filiou à escola veneziana de vedutas, na qual despontavam mestres como Canaletto (1697–1768). Mas ele percorreria toda a península atrás de paisagens, estudando arquitetura e dominando a perspectiva, embrenhando-se na ainda incipiente ciência da arqueologia e passando longas temporadas em Roma, metendo-se em catacumbas e escavações. Após a morte do artista, suas obras perduraram em muito, sendo impressas mais e mais, através de gerações. Numa época anterior à fotografia, as vedutas eram muito estimadas por se tornarem as memórias dos viajantes. Ainda hoje, de certa forma, fazem parte da memória coletiva – e não apenas na Itália.

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As mesmas técnicas de reprodução em larga escala responsáveis por difundir a obra de Piranesi para além de seus dias fizeram Honoré-Victorin Daumier (1808–1879), um pintor que ganhava a vida como caricaturista político e cronista da vida moderna, tornar-se um dos artistas mais temidos pelos poderosos da França.

Daumier, afinal, pode ser entendido como um precursor de gente como a brasileira Laerte, o americano Robert Crumb e o francês Georges Wolinski (1934–2015) – lembremos dele, uma das vítimas do infame ataque ao semanário Charlie Hebdo. Em sua época, Daumier colaborava para uma série de publicações satíricas “avós” do Charlie, que se valiam da recém-inventada – e ainda tolerada – liberdade de imprensa.

Aqui, na mostra Imagens Impressas, uma série de trabalhos de Daumier feitos para o histórico jornal Le Charivari (1832–1937), de Charles Philipon, traz uma crônica do cotidiano parisiense. Entre os temas, encontramos alguns bem parecidos com o de nossa vidinha urbana do século 21. Um horizonte plúmbeo, risca Daumier em sua litografia, criado pela industrialização recente da França, com seus “caminhos de ferro”, marcando os campos e empestando o ar. Os trens abarrotados de pessoas. E a intolerância com os músicos na noite de Paris, pois sempre haverá quem prefira dormir.

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Se Daumier pode ser entendido como nervo exposto da consciência crítica francesa, naquele mesmo momento, meados do século 19, Eugène Delacroix (1798–1863) era o líder da escola romântica. Como tal, enxergava a história segundo um olhar idealista – como um longo caminho até a liberdade – e não seria outro o tema de seu mais famoso quadro, A Liberdade Guia o Povo (1830), um baita óleo sobre tela (2,6m x 3,25m) que ainda hoje repousa no Louvre – embora, de tão emblemático, já tenha até parado na capa de disco do Coldplay.

Como todo romântico, Delacroix, além de idealista e libertário, tinha certa prevenção contra a pequena burguesia, seu conservadorismo, sua arte confortável, sua vida tranquila. De tal modo, neste longo caminho para a liberdade que a arte romântica estava a prefigurar para a arte moderna, Delacroix foi fundamental no uso das cores e no pensamento para além da Europa tão conhecida.

Nessa mostra do Museu Nacional Honestino Guimarães, temos um par de obras que foram produzidas a partir de originais de Delacroix. Se, por óbvio, as cores se perderam, a temática romântica permanece numa aventura de espadachins. Ao lado de Delacroix, como convém, encontramos também uma peça de Theodore Gericault (1791–1824), que serviu a ele não apenas como uma de suas influências mais diretas em anos de juventude mas também como um dos interlocutores mais frequentes. Ainda nessa parede da exibição dedicada ao romantismo, o espanhol Francisco de Goya (1746–1828) merece a menção por uma pequena e atormentada gravura em metal, a acenar para a vertente mais obscura de sua produção – que pôde ser recentemente apreciada pelo brasiliense na Caixa Cultural, com a série Disparates (1815–1820).

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A vizinhança do fantástico, que se pressente em Goya, incendeia a imaginação de Gustave Doré (1832–1883), talvez o mais entusiasmado leitor de Dante no século 19. Mas, enquanto Goya teve que trabalhar a vida inteira para o rei Fernando VII da Espanha e dedicava à gravura o “lado B” de seu tempo e de sua obra, Doré entrou nessa história quando o mercado editorial europeu e suas artes gráficas já estavam desenvolvidos o bastante para que recebessem um artista em potencial e o fizessem atingir a plenitude poética. Ou quase.

Ainda adolescente, o francês Doré se engajara nas publicações satíricas de Charles Philipon e depois destrinchou em desenhos as obras completas de Rabelais. Diante do maior desafio que poderia impor a si mesmo – descer à Divina Comédia, de Dante Alighieri, e superar o que Botticelli havia atingido séculos antes –, Doré não encontrou editor para bancar a empreitada. Não seja por isso. Bancou ele próprio seu trabalho, que hoje perdura como uma das mais pungentes leituras de Dante. No auge de seus esforços editoriais e artísticos, Doré mantinha pequeno exército de ajudantes, artistas como François Pannemaker (1822–1900), ao lado de quem assina esta xilogravura aqui, no Museu Nacional, exibida em reprodução.

Ao lado de Doré, encontramos uma obra do inglês Aubrey Beardsley (1872–1898), sujeito de vida curta e impacto duradouro. Amigo pessoal de Oscar Wilde, ele se faz presente nessa coleção com uma gravura inspirada no texto da peça Salomé (1894), de Wilde. Está clara a filiação de Beardsley a esta temática fora do tempo atual e simultaneamente versando sobre ele, que vem desde os românticos. Também percebe-se o impacto da arte japonesa, em voga na Europa daqueles dias, essencial para o movimento conhecido como art nouveau.

E fechando esse percurso histórico, uma gravura recém-adquirida do norueguês Edvard Munch (1863–1944). Conhecido por sua obra-prima O Grito (1893), mui pasteurizada, porém jamais trivializada, aqui o encontramos com a xilogravura The Girls on the Bridge (1918).

O impacto d’O Grito é tamanho que Munch estará para sempre associado à pintura. Mas, ao longo de toda a vida, como explica o curador Marcos Moraes, trabalhou também com gravura em madeira, assim como boa parte dos artistas filiados ao chamado expressionismo alemão. Um interesse que tem a ver com a estética. É bacana notar como uma linguagem conversa com a outra: a pintura de Munch carregando no óleo o mesmo dilaceramento, a mesma agressividade de uma incisão feita em madeira. A linha dura, muito marcada, as camadas de cor sobrepostas na tela como se fossem os veios da madeira.

Apesar de ter sido feita duas décadas após a pintura, The Girls on the Bridge, em sua placidez de panorama visto da ponte, soa como o instante de silêncio que precede O Grito.

 Bernardo Scartezini/ Especial para o Metrópoles
Giovanni-Batista Tiepolo (1697–1770): Ascensão da Virgem (sem data), água-forte

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