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“Escandaloso”: maior crítico do STF elenca os maus hábitos dos togados

Conrado Hübner Mendes, que se tornou o maior crítico do STF no país, lançou livro em que aborda a “magistocracia” brasileira

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O professor de Direito Conrado Hübner Mendes
1 de 1 O professor de Direito Conrado Hübner Mendes - Foto: Metrópoles

O professor Conrado Hübner Mendes se tornou o maior crítico do STF no Brasil. Ou, para ser mais preciso, do mundo judicial e do direito. O título foi conquistado aos poucos, desde 2018, quando começou a colaborar semanalmente, na extinta revista Época, com artigos em que apontava erros e incoerências de juízes, ministros, procuradores e, mais tarde, advogados.

O rentismo, as festas e encontros forçados entre juízes e julgados, o nepotismo advocatício, o filhotismo nos tribunais superiores, a Lava Jato: nessa entrevista à coluna, Hübner Mendes passa por diversos pontos que explora em “O discreto charme da magistocracia” (Todavia), coletânea desses artigos e de outros publicados desde 2011.

No livro, sobra para todo mundo, de Gilmar Mendes a Luís Roberto Barroso, de Sergio Moro a Deltan Dallagnol. As críticas, na maioria das vezes mordazes, são quase sempre precisas. Algumas, porém, às vezes parecem estar ali para o autor mostrar independência ao criticar a tudo e a todos. Para o papel a que se dispõe, é em parte saudável, mas arriscado, sob pena de não reconhecer acertos em meio a um Judiciário tão complicado como o nosso.

Leia a entrevista abaixo, assista no YouTube ou ouça no Spotify:

Em que momento, como professor, entendeu que era importante tirar da academia e levar ao grande público as críticas que enxerga necessárias ao Judiciário?

Comecei a me interessar por publicar textos eventuais na imprensa há bastante tempo, uma vontade pessoal de contribuir para certos debates. O que não imaginava era a intensidade que isso tomou, alguns anos mais tarde. Publiquei textos esporádicos a partir de uma vontade. Um tema surgia na minha cabeça, eu escrevia com calma, submetia a algum jornal, às vezes levava uma semana, às vezes um mês para ser publicado. Em 2018, fui convidado para ser colunista semanal. Hesitei um pouquinho, porque coluna semanal é algo que exige um tipo de concentração, rotina e linha de produção muito constante, mas acabei aceitando, na revista Época. Fiquei na Época de 2018 a 2019 e aí comecei na Folha. Então, já se passaram seis anos e eu diria que é o período que coincide com mais acadêmicos se manifestando, novos veículos, blogs jurídicos. O jornalismo jurídico, propriamente dito, também vem se aperfeiçoando, há o protagonismo de tribunais e dos tribunais superiores. Uma série de fatores contribuiu para isso. Nesse período fui ganhando fôlego e interagindo com essa audiência, muito diferente da audiência acadêmica.

Nos seus artigos e no livro, você fala de vários sintomas e problemas do Judiciário. Uma das coisas que mais incomoda as pessoas são os encontros sociais, às vezes festas, em que se veem juízes e ministros de tribunais superiores com empresários e políticos, que eles encontram no sábado e julgam na segunda-feira. Como isso afeta, para o cidadão comum, a percepção sobre seriedade, isonomia e credibilidade do Judiciário?

Esse tema, de fato, afeta muito. Tem outro que afeta um pouco mais, os mecanismos pelos quais os juízes acumulam renda, salário e penduricalhos. Essa é uma das características mais importantes desse estamento que eu estou chamando “magistocracia”. Sobre a promiscuidade, claro que não é uma convivência social entre pessoas que têm relação antiga e de caráter pessoal. Há juízes, advogados e, eventualmente, empresários, que foram amigos de infância ou de faculdade. Mas não é desse tipo de convivência privada que se trata. Estamos falando de uma grande indústria de lobby jurídico. São os encontros nas salas de jantares, nas grandes casas de Brasília, São Paulo e outras capitais, são os congressos com patrocínio das empresas interessadas nas decisões. São os eventos de lobby empresarial, como Lide e Esfera. Sabemos da variedade desse mosaico. Nos princípios mais elementares de promoção da imparcialidade judicial, aos juízes não se exige uma vida privada monástica. Ninguém está pedindo eles sejam antissociais, monges ou santos. Mas a carreira judicial exige certas coisas que não se exige de cidadãos comuns, porque ela envolve responsabilidades e inúmeros benefícios. É importante ser imparcial, mas é ainda mais importante parecer imparcial. Então, que isso tenha sido normalizado é muito grave. É muito escandaloso que não haja nenhum recato, nenhum decoro, que ninguém perceba a impropriedade disso.

O que é o conceito de “magistocracia”, que você cunhou no livro?

Magistocracia é um neologismo provocativo. Mas o conceito por trás desse termo é sociológico. É uma referência à ideia de uma aristocracia judicial, aristocracia togada ou aristocracia do sistema de justiça. Quando uso magistocracia, não estou fazendo uma generalização, como se 100% dos membros do Ministério Público, do Judiciário e da Procuradoria se encaixassem perfeitamente na forma como eu a defino. Há múltiplos juízes virtuosos e corretos, que se incomodam com esses problemas. Eu sempre tomo o cuidado de me referir à magistocracia como uma fração hegemônica de membros do sistema de justiça, que o determina e governa.

No ano passado, o STF decidiu contra uma mudança que o novo Código de Processo Civil tinha implementado, sobre o impedimento do juiz quando um familiar, cônjuge ou companheiro trabalhasse no escritório de advocacia de uma causa a ser julgada por ele. Como viu essa decisão?

Vi essa decisão, para ser moderado no adjetivo, como equivocada, basicamente errada. Ela traz prejuízos e chancela uma prática profundamente problemática no Judiciário: permitir que parentes vendam o fato de serem parentes como parte do preço do seu trabalho e, com isso, tenham esse trunfo na captação de clientes. Afinal, independentemente da esposa de um ministro ter realmente influência ou não, o fato é que, para alguém interessado num caso do Supremo, contratá-la é um grande fator de captação de clientes. O legislador brasileiro não foi um ignorante em direito. Essa proposta aprovada no Código de Processo Civil veio da reflexão de membros do próprio Poder Judiciário, como por exemplo, o ministro do STJ Herman Benjamin.

O ministro do STF Luiz Fux também era da comissão de juristas, não?

Sim, o que também é um pouco maluco: o ministro do STF participa da elaboração do código e depois sai para julgá-lo. Esse artigo criou – e foi esse o argumento abraçado pelo STF para jogá-lo lata do lixo – uma complexidade grande. A regra era tão exigente que, de fato, criaria situações difíceis de operacionalizar e controlar. Por exemplo: uma empresa “X”, que contratasse um escritório “A” para advogar numa causa no STF, mas também tenha relação com o escritório “B”, onde advoga o filho de ministro, tornaria o ministro suspeito. Acontece que o Supremo, a todo momento, faz interpretações que adequam à Constituição eventuais dificuldades de operacionalização de normas. Neste caso, o STF se recusou a fazer essa interpretação e anulou a norma. Assim, passou a permitir as situações mais estapafúrdias, de a esposa do ministro advogar para a empresa e então ele dar uma liminar monocrática que suspende a multa de bilhões dessa empresa [referência à decisão do ministro Dias Toffoli, do STF, que suspendeu o pagamento da multa de R$ 10,3 bilhões do acordo de leniência do Grupo J&F, que tem como advogada a mulher de Toffoli, Roberta Rangel]. Não estou fazendo nenhuma acusação e não estou, necessariamente, apontando algo que seja novo.

Muitos defendem a tese de que, se não fossem os hiperpoderes conferidos pelo plenário do STF, e até pelo Congresso, ao ministro Alexandre de Moraes, não teria sido possível frear as tentativas golpistas de Bolsonaro. Existia alguma outra maneira institucional, sem que houvesse inquéritos esdrúxulos, como das fake news, para esse objetivo?

Podemos partir de uma premissa factual, histórica, de que, independentemente de críticas e das responsabilidades que o tribunal tem por termos chegado aonde chegamos, é verdade que o Supremo teve papel importante na contenção da ameaça e do abismo bolsonarista. Ele não esteve sozinho, é importante não exagerarmos seu heroísmo e protagonismo, mas teve um papel importante, assim como vários atores, não dá para negar – tendo feito da maneira correta ou não. O Supremo tem muita responsabilidade por termos tido o Bolsonaro na presidência, mas é verdade que, uma vez na presidência, Bolsonaro fez ataques absolutamente inéditos à ideia de tribunal constitucional. Não só o tribunal como instituição, mas a ministros específicos. Além de Bolsonaro, também muitos dos seus ministros, as Forças Armadas e uma militância bolsonarista miliciana das redes. Então, é óbvio que isso configura uma circunstância absolutamente extravagante.

Como as omissões da PGR contribuíram para esse protagonismo do STF?

A PGR foi trancada por Augusto Aras. Isso já era claro na época e está ficando cada vez mais claro e evidente com estudos acadêmicos que estão quantificando as omissões de Aras. A autoridade monocrática que mais concentra poder no desenho institucional brasileiro, e isso é um defeito, é o procurador-geral da República. Do arquivamento dele não tem recurso para ninguém. Havia uma PGR colaboracionista, trancada, um tribunal sendo atacado e, aos poucos, as Forças Armadas esticando a corda a qualquer decisão do Supremo que desagradasse, invocando o artigo 142 para falar de intervenção militar. É um contexto absolutamente excepcional, e não é juridicamente equivocado dizer que, numa circunstância assim, uma inovação jurídica pode aparecer. E essa inovação jurídica o STF criou, por meio do estabelecimento de inquéritos. Não é inédito, não é ilegal. É excepcional. Temos que discutir como foi feito: o ministro Toffoli designou um relator, que não foi sorteado para esse inquérito, e os inquéritos vão se multiplicando, vão se tornando muito mais do que inquéritos, mas instituições permanentes. Inquérito precisa de um fato determinado para ser investigado e de um prazo para terminar, é um procedimento investigatório disciplinado. Nada disso aconteceu no Supremo. Foi uma forma de gestão do conflito com um Poder Executivo que queria calar, fechar, neutralizar o STF. Ainda que se pudesse imaginar formas e procedimentos jurídicos mais cuidadosos para lidar com isso, a ideia de o Supremo reagir com ferramentas excepcionais não me parece errada. O STF foi importante para conter a ameaça bolsonarista, mas o contexto já mudou significativamente.

Como está o processo que Augusto Aras moveu contra você após críticas a ele? Como encara esse tipo de reação?

Pessoalmente, eu lido tentando me manter ativo, são e focado na crítica. E saber que é um ato autoritário, que as ações são infundadas. Mas, apesar de serem infundadas e terem pouca chance de sucesso, tenho consciência de que a intenção de quem entra com uma ação contra mim não é ganhar lá no final, mas me intimidar. Porque a canseira psicológica e financeira que isso dá é um fator intimidatório. Já se passaram quase três anos que essa história começou. O processo, especificamente, Aras perdeu na segunda instância. A decisão, até onde eu sei, não transitou em julgado. Não consigo imaginar, nas entranhas do sistema recursal brasileiro, que tipo de recurso ele pode apresentar. Mas, em princípio, ele perdeu na segunda instância, o que é uma boa notícia. Mas Aras não foi o único caso, ele foi a primeira porteira que abriu. Eu vinha há anos criticando membros do sistema de justiça e nunca tinha sofrido algo parecido. A coisa aconteceu quando vieram as autoridades jurídicas bolsonaristas, como Aras, visceral, pública e judicialmente vinculado a Bolsonaro. A segunda pessoa que me processou criminalmente foi ninguém menos que um ministro do STF, Kassio Nunes Marques. É uma ação muito parecida com a de Aras, com base numa outra coluna. E essa ação foi mandada para o arquivo pelo Ministério Público. Ele entrou com mandado de segurança e isso está nas gavetas do TRF. É uma ação com possibilidade muito baixa de prosperar, porque, se o Judiciário respeita o princípio acusatório de que se deve arquivar quando o Ministério Público manda arquivar, acho que esse caso não vai ter maiores consequências.

Houve advogados também que tiveram iniciativa jurídica de reação a artigos seus?

A novidade em 2023, de fato, foi que eu fui ameaçado de processo supostamente pelo outro lado do espectro político, certamente não por uma força bolsonarista. Veio de uma advocacia que se declara publicamente como progressista, porque surfou a onda do antilavajatismo.

Qual a sua opinião sobre o projeto em tramitação no Congresso que tenta restringir as decisões monocráticas dos ministros?

É importante limitar, porque ministros passaram não só a abusar de um poder que eles têm. Eles passaram a violar a lei com isso. A lei da década de 90 já não permite medida cautelar monocrática em ação de constitucionalidade. O STF passou a ignorar esse artigo, alegando muito trabalho, muita urgência. A gente sabe que não é isso, apenas. Limitar a possibilidade de decisão monocrática não é limitar o poder do Supremo, é reforçar o poder do Supremo. Limita, sim, o poder individual do ministro para obstruir e conduzir sozinho a agenda constitucional do país. Isso serve para decisão monocrática e para pedido de vista. São dois mecanismos estapafúrdios e distorcidos para possibilitar a individualização e a fragmentação do Supremo. Dá muito poder para o ministro individual. O epicentro do poder no Supremo, e é dali que ele traz sua legitimidade, é o colegiado. A imprensa comprou o grito dos ministros que se contrapõem a isso, com manchetes de que é “limitar o poder do Supremo”. A proposta não limita o poder do Supremo, reforça o poder Supremo. Agora, claro que tem um contexto político que precisa ser discutido. Essa proposta não é nova e não vem de mentes bolsonaristas, mas renasceu de alguma forma nesse Congresso, no seio da oposição, que quer fazer alguma coisa contra o Supremo. Esse é um detalhe importante que precisa ser interpretado e ponderado politicamente, para saber que tipo de uso se poderá fazer de uma decisão como essa. Mas, em resumo, teoricamente, conceitualmente, o problema é o poder monocrático. Ele precisa ser limitado.

Você enxerga ter sobrado algum legado positivo da Lava Jato?

O “legado” da Lava Jato é uma expressão perigosa, porque a Lava Jato é muita coisa ao mesmo tempo. Quanto mais simplificamos, reduzindo a Lava Jato a um ou dois atores e a meia dúzia ou dezenas de atos arbitrários, mais perdemos capacidade de olhar para o que aconteceu efetivamente. Foram muitos legados da Lava Jato – e múltiplos e, em muito maior quantidade, os legados trágicos ao país. É trágico que o Judiciário tenha embarcado numa causa messiânica. E, quando eu digo “Judiciário”, é o Judiciário inteiro, liderado lá de baixo por Sergio Moro, mas lá de cima pelo STF – e, dentro do STF, por ministros que hoje se apresentam como muito antilavajatistas, como Gilmar Mendes. A maior decisão lavajatista da história da Lava Jato foi a liminar de Gilmar Mendes que impediu Lula de ser nomeado como ministro, com base numa tese inédita e espúria do direito administrativo: a presidente não poder nomear ministro, porque ele estava sendo investigado. Os manuais de Direito Administrativo nunca cogitaram isso. O ato discricionário mais clássico é o poder do chefe do Executivo de nomear o seu cargo de confiança. A canetada de Gilmar foi monocrática, no apagar das luzes da véspera da Páscoa, sendo que dias depois haveria um grande encontro da sua faculdade de Direito em Lisboa, com as grandes lideranças partidárias do país. Nada é mais lavajatista que aquilo, nem mesmo a sentença de condenação à prisão de Lula por Moro. Essa decisão de Gilmar pavimentou a prisão de Lula e o impeachment, depois do qual Gilmar mudou de lado e, curiosamente, se tornou um herói antilavajatista. É preciso olhar para o legado da instrumentalização do direito, de o Judiciário embarcar numa espécie de causa institucional salvacionista, independentemente de uma discussão de legalidade. Falar em legado positivo, depois disso, fica inapropriado. Não teve propriamente um lado positivo diante da imensidão das consequências trágicas que trouxe. Sobre os fatos de corrupção que a Lava Jato iluminou e conseguiu desencadear processos de acordos de leniência, negociações, repatriação de dinheiro, pagamento de multas, não se deve deixar de dizer que nada disso foi feito com base em ficção pura e simples. Foi feita com base em instrumentalização do direito e abuso investigatório? Em parte, foi; em outra parte, menos. A Lava Jato de São Paulo e a Lava Jato do Rio de Janeiro não têm nada a ver com a Lava Jato de Curitiba. Aceitaram o rótulo “Lava Jato” porque, naquele momento, era interessante ganhar esse status institucionalmente, como marketing, como ferramentas práticas e de recursos. Eu não gosto de falar de legado positivo, porque isso induz a “sopesar” o lado bom e o lado ruim. Foi muito trágico. Mas não dá para jogar embaixo do tapete certos fatos incontroversos de corrupção. E, nesse sentido, a irresponsabilidade de atores jurídicos que não souberam estar à altura daquilo que estava ali, inclusive em perceber os limites do direito sancionatório e penal para lidar com uma corrupção sistêmica. Não apaga o fato de que houve corrupção.

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