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“Dunkirk” não é só pirotecnia e fisga o espectador de várias maneiras

Inspirado em Griffith, o diretor Christopher Nolan entrega a experiência mais íntima da guerra

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“Dunkirk”, o tão falado e controverso filme de guerra Christopher Nolan, tem sido reduzido a um espetáculo técnico de “som e fúria”. O cineasta de “A Origem” e “Interestelar” tem fama de produzir obras obsessivamente engendradas narrativamente, mas estéreis do ponto de vista do conteúdo. Para parte da crítica, o atual longa seria a mesma coisa: pirotecnia e clichês.

Acredito que isso seja uma injustiça com Nolan, até mesmo nos outros filmes, mas especialmente em “Dunkirk”. Por três razões: em primeiro lugar, leva a escola griffthiana de cinema a um paroxismo. Refiro-me, é claro, ao grande D.W. Griffith, cineasta pioneiro na formulação e entrecruzamento de narrativas.

Ele costumava realizar filmes com quatro ou cinco histórias paralelas (às vezes, distantes no espaço e no tempo, como em “Intolerância”) e ir aproximando-as por meio de recursos de linguagem, fosse na tonalidade das cenas, na emoção dos eventos ou por necessidade da própria trama. O clímax ocorre quando essas narrativas atingem seu zênite, na ação e na emoção. Recurso muito usado em séries como “Game of Thrones”.

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“Durkirk” é perfeitamente griffthiano. Apenas a cabeça matemática e obsessiva de Nolan seria capaz de aperfeiçoar, em 2017, um modelo formulado entre 1908 e 1914. O filme apresenta três momentos, igualmente dramáticos, na situação de resgate dos soldados britânicos na praia de Dunquerque, no norte da França, em 1940.

“Intolerância”, de Griffith (1916)

Nolan usa e abusa de encavalamentos temporais, flashbacks e flashfowards. O filme funciona como um dínamo de tempo e espaço, em sofisticadas abordagens do ponto de vista cinematográfico, e constrói cada pedaço de emoção na mente do espectador. O sentido de um cinema griffthiano é aspirar à ubiquidade, ou seja: estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Nolan alcança sua ubiquidade por meio da linguagem do cinema, mas também por meio da tecnologia atual, e este é o meu segundo ponto. “Dunkirk” foi filmado em grandiosos 65mm e, se visto em um cinema IMAX (e com as cadeiras vibratórias que são capazes de adicionar, surpreendentemente, mais uma camada de linguagem), se aproxima dos procedimentos de imersão em games e filmes VR. Sim, o recurso deve envelhecer, como ocorreu com o cinemascope e o 3D, mas, neste filme em particular, a tecnologia cria uma espécie de griffthianismo que ocupa todos os sentidos, uma montagem tridimensional. O impacto sobre a experiência da guerra é notável.


Até aqui, som e fúria em escala galopante. Isso poderia aprisionar o longa em uma montanha-russa sensitiva, se fosse uma coisa ignóbil como “Transformers”. Em um filme de guerra, no entanto, a potência e o caráter eletrizante da ação não são meros jogos formais, mas também compõem a semântica do que está sendo apresentado.

É esta a terceira razão para um olhar mais generoso com “Dunkirk”: ele parece compreender que o front é a essência da guerra, e estar entre os soldados não é apenas perceber o conflito com os sentidos, mas compreendê-lo em sua versão mais interna.


O estilo de Nolan se adapta perfeitamente a esse princípio. A guerra é movimento, montagem, potência. A angústia do deslocar das tropas, de intermináveis situações barra-pesada de altíssimo risco, da proximidade inalienável com a morte. Cada situação nas três narrativas de “Dunkirk” nos leva a esta circularidade. São desafios labirínticos, com resoluções rápidas e desesperadas, sempre com a vida em aposta. Daí a eficiência da trilha de Hans Zimmer, sempre em sua função mais física, quase um duplo da ação, elevando o tom em geral.

Seja militarmente, politicamente ou estrategicamente, a guerra está no âmbito desse labirinto de desespero em que “Dunkirk” nos prende. De alguma maneira (e pra não dizerem que não falei de quadrinhos), o procedimento lembra as clássicas histórias na guerra da Coreia que o lendário Harvey Kurtzman (criador da Revista MAD) realizou para a EC Comics no começo dos anos 1950. Em um período antes da censura e de esplendor do quadrinho de guerra, Kurtzman criou inúmeras situações semelhantes às de “Dunkirk”: circulares, planejadas, irônicas. Um homem será morto pela arma que construiu. Outro morrerá nas mãos de um irmão.

“Corpse on the Imjim”, Harvey Kurtzman

A diferença é que, estando muito próximo ao ambiente de guerra, era impossível para um niilista como Kurtzman sustentar entusiasmo e otimismo como vemos em Nolan. Nestas histórias, a morte é o único denominador comum, única saída do labirinto. Nesse sentido, talvez “Dunkirk” não seja a mais fatalista das narrativas de guerra, mas é sólido na forma que representa a maneira como elas são erigidas. Um filme que vivifica o núcleo duro da tradição estética hollywoodiana e ao mesmo tempo a percepção mais íntima da guerra.

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