O futebol nos ensina a nascer e a morrer muitas vezes na mesma partida
A única missão é continuar: dos 76 mortos, entre eles jornalistas que cobririam a grande final, já não temos o talento, mas temos a história
Matheus Pichonelli
atualizado
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Vida e morte são palavras indissociáveis da linguagem do futebol. No campo simbólico, onde projetamos nossas ambições esportivas, jamais ganhamos ou perdemos. Matamos ou morremos. Seguimos. Lutamos contra o descenso. Salvamos.
Tragédia, para o torcedor, é perder por goleada e ou ser eliminado, com a certeza de que a vida segue – na temporada seguinte, em baixa, mas segue.Nos duelos-chave, não jogamos a partida. Fazemos o jogo da vida. Renascemos. Ressurgimos. Avançamos em jogos “finais” dos encontros dos pontos corridos ou em torneios do esquema “mata-mata”.
Por ironia, é essa linguagem importada da tragédia que permite transformar o esporte numa suspensão das agruras e expectativas muitas vezes frustradas da chamada vida real. A glória do domingo não nos retira dos compromissos da segunda, mas fortalece, inspira, educa.
É difícil explicar para quem não gosta ou não acompanha futebol por que torcemos tanto. Por que choramos. Por que torcemos por uma bola atravessar uma linha imaginária entre duas traves e um travessão como se nela coubesse nossa vida.
Talvez, mas só talvez, seja porque o esporte nos permite observar em tempo real, na duração de uma partida, o caráter consagrador dos valores que imaginamos dispersos fora do campo: a ajuda, a doação, a paciência, a espera, a confiança, o esforço, a superação, a solidariedade, a vontade.
Ou talvez porque o “lance”, por ser determinante, seja também elucidativo. Ele nos coloca diante da nossa fragilidade e vulnerabilidade. Mostra que tudo ou nada se resolve num instante, como a defesa do goleiro Danilo contra o San Lorenzo. O lance consagrador levou a Chapecoense a embarcar para o maior voo de sua vida. Não só o clube, mas os torcedores, a cidade, o estado, o país.
Em campo, o “lance”, não por acaso chamado “fatal”, determina as alegrias ou tristezas de atletas e espectadores, e para esses sentimentos emprestamos a linguagem da tragédia como se falássemos de uma peça. No limite podemos falar, também, em catarse.
Quando uma das paredes do espaço dedicado ao espetáculo se rompe, e a tragédia deixa o campo da linguagem, é a própria ideia da morte como um fim que é transgredida. No lugar dela entra em campo uma outra ideia de morte: a morte não como destino natural, mas como interrupção.
Essa é a que não se digere. Não se admira. Não se aprende. Serve apenas como lembrança de que o único jogo em que todos perdem chama-se vida, e é justamente isso que não queremos lembrar quando estamos ocupados fazendo outros planos – como definiu John Lennon antes de, ele também, ser interrompido.
No domingo, torcedores do Palmeiras tiveram uma das maiores alegrias da vida (a real e a esportiva) após um jogo contra a Chapecoense. Torcedores contam que, na saída, muitos esperavam o ônibus da equipe do lado de fora do estádio. Antes dela surgiu a delegação do time visitante. Ao vê-los, os palmeirenses bateram palmas a eles como uma espécie de reconhecimento. Pela lealdade do duelo entre as equipes, mas também pelo feito recém-alcançado pelos catarinenses: a classificação inédita para a Copa Sul-Americana, conquistada dias antes.
De dentro do ônibus, segundo os relatos, era possível ver o elenco batendo palmas para os torcedores, como que a devolver o reconhecimento aos rivais que acabavam de se sagrar campeões.
Após o “jogo da vida”, para os palmeirenses, a vida, aquela inominável, seguiria. Na quarta-feira o país inteiro pararia para assistir ao primeiro duelo entre a Chapecoense e o Atlético Nacional em Medellín.
Não assistirá mais.
Dois dias após o título, meu filho de três anos acordou com a camisa e os chinelos do Palmeiras e estranhou meu silêncio pela manhã, em contraste com a alegria das duas noites anteriores, quando fomos dormir cantando “é campeão”.
Ele é ainda muito novo para saber que a tristeza dessa vez não tem nome. Não tem muito como explicar que aquele time contra quem jogamos há dois dias não existe mais e que dessa derrota não temos qualquer lição a tirar.
A única missão é continuar: dos 76 mortos, entre eles jornalistas que cobririam a grande final, já não temos o talento, mas temos a história. Temos a lembrança. Temos o cuidado de fazer com que essas lembranças e essas pessoas não acabem.
O futebol nos ensina a nascer e a morrer muitas vezes no mesmo certame. Nada pode reunir tantos afetos numa mesma arquibancada como ele.
Hoje, longe dessa parede simbólica entre vitórias e conquistas para os quais emprestamos outros nomes, ele nos lembra que da dor é possível extrair o que parecia escondido nesta época em que a vida foi banalizada e desrespeitada em diversos sentidos e diversos exemplos pelo mundo. O nome disso é solidariedade. Ela pouco pode fazer pelas vítimas. Mas é determinante para que as histórias vividas e replicadas por todos os que amaram aquelas pessoas se tornem força e não se acabem jamais.
*Matheus Pichonelli é colunista do Yahoo, onde este texto foi publicado originalmente.