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“Doutora, eu não sei o que é viver um dia inteiro sem dor”

As novas possibilidades de tratamento da anemia falciforme trazem esperança aos pacientes

Autor Martha Mariana Arruda

atualizado

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“Doutora, eu não sei o que é viver um dia inteiro sem dor”

Esse é o relato da maioria dos portadores de anemia falciforme, doença hereditária que afeta cerca de 30 mil brasileiros, causadora de impactos deletérios profundos na função de todos órgãos do corpo humano.

Sua principal complicação é a crise dolorosa. A pessoa vive um sofrimento incapacitante, com muitos dias de duração e intensidade comparável à das piores dores que o ser humano pode experimentar.

A enfermidade também encurta a vida absurdamente: até 2005 quase 80% dos pacientes faleciam antes de completar 30 anos. Isso reflete sua gravidade e enorme impacto social.

Nos últimos anos, o arsenal terapêutico disponível melhorou e passou a incluir antibióticos, transfusões de sangue regulares com quelação de ferro, vacinação e medidas de suporte geral. Também surgiu a Hidroxiuréia, droga barata comprovadamente capaz de reduzir episódios de dor, complicações crônicas e mortalidade. A medicação, porém, tem efeitos colaterais.

A cura é possível apenas com transplante de medula, mas menos de um quarto dos pacientes possui doador compatível na família. E, apesar dos óbvios benefícios do tratamento, ainda se está longe de um controle de doença efetivo e eficaz.

Por tudo isso, a comunidade médica internacional recebeu com grande entusiasmo a notícia do sucesso em potencial de duas novas abordagens terapêuticas.

Em 1949, Linus Pauling, químico laureado pelo prêmio Nobel, sugeriu que o defeito na anemia falciforme era gerado por uma diferença que só poderia ser explicada no nível molecular. A observação da intrigante hemácia que assume a forma de foice permitiu o primeiro triunfo da genética molecular.

Isso levou ao entendimento de que genes imperfeitos causariam doenças por gerarem proteínas defeituosas. No caso, a hemoglobina, principal transportadora de oxigênio da hemácia, que naturalmente é fluida e solúvel, quando mutada em um único ponto passa a se chamar hemoglobina S, se torna densa e passa a formar fibras.

Essas fibras tornam a célula vermelha frágil e breve. Ela fica susceptível à destruição precoce, altera sua capacidade de circulação e, em última instância, gera inflamação, ativação da coagulação, estresse oxidativo e o entupimento dos pequeníssimos vasos que irrigam os tecidos, a chamada vaso-oclusão.

Todas as complicações da moléstia são causadas diretamente pela presença da hemoglobina S e pela ausência completa de hemoglobina normal. A mutação ocorre em homozigose. Portadores de apenas um gene S – chamados de heterozigotos ou “traço” falciforme – são praticamente assintomáticos porque produzem tanto hemoglobina normal quanto hemoglobina S. A hemoglobina normal dilui a hemoglobina S e impede a formação das fibras insolúveis.

Mais de sessenta anos depois desse grande avanço, eis que surge uma possibilidade de terapia gênica. Vírus são seres vivos capazes de transferir material genético próprio para células estranhas.

Pesquisadores franceses inseriram no material genético de um vírus o gene da hemoglobina normal e infectaram células-tronco da medula óssea de um paciente falciforme homozigoto. Na medida em que essas vão se multiplicando e se diferenciando em hemácias maduras, passaram a produzir também hemoglobina normal.

De certa forma, essa técnica transforma o doente em um portador de traço, tanto do ponto de vista genético quanto clínico. O difícil nessa abordagem é que a extração das células-tronco é cirúrgica e a devolução das células infectadas envolve um tipo de transplante de medula, procedimentos que não são isentos de risco e não estão facilmente disponíveis.

Por outro lado, o paciente que foi submetido a essa técnica segue praticamente assintomático e melhorando das complicações crônicas há mais de um ano. Esse sucesso seria impensável com as alternativas terapêuticas atuais.

A segunda abordagem resume a fronteira da farmacologia do século XXI: desenhar medicamentos que combatam as doenças pontualmente onde está o problema. Estudos em animais transgênicos haviam provado que o bloqueio farmacológico de determinadas proteínas de adesão celular protege contra a vaso-oclusão.

Isso possibilitou o desenvolvimento do Crizanlizumab, anticorpo monoclonal que impede a ação de uma proteína de adesão. Essa droga foi testada em quase 200 pacientes e se mostrou capaz de reduzir os episódios de crise de dor pela metade, além de reduzir sua frequência.

Interessante notar que seus efeitos benéficos se somaram aos benefícios da Hidroxiuréia. Porém, até 10% dos pacientes tratados apresentaram alguma complicação adversa relevante. A experiência atual mostra que medicações com essas características são muito caras, o que reduz enormemente o acesso, especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil.

Quem tem mais experiência sabe que a ciência médica não é capaz de gerar soluções. Ela se limita a permutar problemas mais difíceis por problemas menos difíceis

Todavia, no que tange às implicações e à gravidade da anemia falciforme, qualquer esforço capaz de mitigar as complicações, aumentar a sobrevida e, principalmente, melhorar a qualidade de vida dos seus portadores constitui esperança sem precedentes.

*Martha Mariana Arruda é médica hematologista do Hospital Sírio Libanês (Brasília) e do Hospital Regional do Gama, professora de Medicina da FACIPLAC, doutora em Medicina (Hematologia) pela Escola Paulista de Medicina.

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