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Pastores transformam o transporte público do DF em templo de fé

“Metrópoles” pegou diversas linhas de ônibus para observar como funciona o mercado de fé que se instalou no transporte público de Brasília

atualizado

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Livro poeira sujeira
1 de 1 Livro poeira sujeira - Foto: iStock

É quase um milagre pegar um ônibus em Brasília e não ficar diante de “sermões” de fiéis que transformam o transporte público do DF numa espécie de templo sobre quatro rodas. Eles entram como passageiros comuns e, numa certa altura da viagem, posicionam-se no meio do veículo para iniciar a pregação.

Alguns pedem licença antes de iniciar a ladainha. Parecem ter consciência de que violam o direito ao silêncio e à diversidade de fé das dezenas de pessoas que seguem o trajeto.  Outros entram na missão sem qualquer cuidado. Estão firmemente imbuídos em levar a palavra do “Senhor” e converter mais uma alma ao “Evangelho”. Para estes, a lei da fé está acima do que é assegurado pela “Constituição”.

Nas duas últimas semanas, o Metrópoles cruzou o DF em linhas de ônibus diversas e observou a ida e vinda dos pastores de baús (ônibus na gíria candanga). A premissa era acompanhá-los sem nenhuma abordagem jornalística para preservar a naturalidade. Assim tudo que será transcrito aqui foi dito espontaneamente por cada um. Alguns, aliás, pregam e cobram um dízimo voluntário.

É o caso do missionário Batista que passa o dia saltando de ônibus em ônibus com a “Bíblia” debaixo do braço. Encontrei-o na 515 da W3 Sul com destino à Rodoviária do Plano Piloto. Dono de uma voz mansa, de locutor de programa da alta madrugada, ele se anuncia como um “ex-drogado”, “viciado em crack” e “no passado, bastante violento”. Conta que acalmou o espírito com a “Bíblia”.

Em seu discurso, mistura noções de autoajuda com versículos sagrados. Fala da importância da autoestima, da fé como motor de mudanças e do perigo da negatividade. Exalta a comunicação como ponte para o crescimento individual.

Tem irmão que me pergunta sobre o Facebook e o WhatsApp. Sempre digo. Se o homem criou, foi porque Deus permitiu. Então, use. Mas use para a salvação

Missionário Batista

No desfecho, ele pede uma salva de palmas para Jesus Cristo e puxa uma sacolinha de pano azul turquesa, que gira de cadeira em cadeira, recolhendo auxílio para que ele, como anuncia, possa continuar a sua obra de fé. Antes de descer com a sacola bem mais pesada, abençoa a todos e deseja “astúcia e fé” para vencer as artimanhas do “maligno”.

Em nome de uma desconhecida
Bem mais requintando, o missionário Elias se apresenta entre a linha Rodoviária Plano Piloto – L2 Sul com um microfone à altura da boca e um caixa de som com entrada para MP3 presa ao corpo, que serve para tocar uma trilha sonora gospel durante a pregação.

Assim como Batista, diz ter passado por “problemas de drogas e ter sido resgatado do crack em São Paulo”. Veio para Brasília fazer um tratamento numa fazenda missionária em Taguatinga e, como forma de pagamento, espalha a palavra do seu Salvador. Quando se empolga, Elias salta palavras de louvor enquanto avança correndo sobre o ônibus. Agarra-se nos corrimões superiores como um menino, atraindo olhares até dos distraídos.

O Senhor me alegra, apossa-se do meu ser. Aleluia!

Missionário Elias

Elias pede dinheiro em nome de uma menina com câncer. Mostra uma foto de uma garota “careca”, que ele anuncia como filha de uma desconhecida, uma mulher com problemas de locomoção, sem condições de tratá-la. Comovido, com a voz trêmula, revela que a viu sofrendo numa janela lá do Gama Leste. Após ouvir o drama, ele largou o emprego para peregrinar pelos ônibus do DF com a missão de custear o tratamento da “pobre enferma”.

Se alguém tiver dúvida, forneço o celular desta mãe tão sofrida

Missionário Elias

Elias desce na parada com a sacolinha cheia de moedas e notas de até R$ 10, dada por uma senhora que chorou durante o seu relato.

Apocalíptico
Sem tocar em dinheiro, um jovem de capa e roupa pretas, que não diz o nome irrompe o silêncio do ônibus Guará II – Taguatinga. De uma hora para outra, fala em tom forte e inquisitivo sobre o fim dos tempos, o apocalipse que se aproxima. Condena a juventude que se perde em desejos e anuncia que os anjos do inferno já dominam a Terra.

Usa o noticiário como exemplo para pontuar o discurso. Cita a guerra da Síria, o atentado de Orlando e a fúria da natureza como provas do desagravo de Deus. Revela que Jesus tem dia e hora para chegar. E poucos os seguirão. Para de pregar, de uma hora para outra. Volta a ficar em silêncio, olha para a paisagem que passa na janela e desce do ônibus como se nada tivesse acontecido.

As pessoas se entreolham assustadas. Tinha um tom ameaçador nos olhos daquele jovem.

Uma passageira murmura:

Há de se temer a palavra do Senhor

A volta por cima
Com a leveza de menino que descobre a vida, o missionário Davi deve ter entre 13 a 15 anos. Ele vende “pé de moça” a R$ 2 e “paçoquinha a R$ 1” durante o trajeto. Ele sai para trabalhar à noite (com a anuência dos pais, avisa) de Samambaia Norte para Rodoviária do Plano Piloto. Tenta pagar a passagem com o cartão, mas não tem saldo. Pede para que eu o ajude.

Minha mãe deve ter esquecido de abastecer meu cartãozinho

Missionário Davi

Pago com gosto enquanto ele oferece individualmente os produtos a cada passageiro e conta seu testemunho quase ao pé do ouvido de cada um. Diz que estava desenganado na U.T.I. quando pediu a Deus uma única chance.

E Deus me respondeu. Segura só um pouquinho

Missionário Davi

Não demorou muito para que os tubos e sondas fossem removidos e, Davi seguisse a sua sina de louvar todos os dias de vida ao Senhor. Estiloso, com óculos de aro colorido, ele estuda inglês e canto na igreja que frequenta. Quer gravar, ainda neste ano, o seu terceiro CD de louvores. Durante a viagem, arrisca interpretar hinos gospels norte-americanos como “Aleluia” e “Oh, Happy Day”. É afinado, mas não consegue empolgar muito os ouvintes. Não tem alcance na voz.

No meio da viagem, sobe um vendedor de CDs piratas oferecendo 180 músicas do Festival Promessas a R$ 3 o volume 10 e R$ 5, os 10 e 11. Ele tem uma caixinha de som e Davi pede para que toque “A volta por cima”, da cantora Floderlis. Nessa hora, o menino larga os pacotes de guloseimas no banco, ocupa o meio do ônibus e solta os pulmões, acompanhado de uma inusitada coreografia, estilo programa de auditório.

Algumas pessoas riem, outras aplaudem e ele se sente realizado.

O importante é que eu fiz você feliz

Missionário Davi

O recado é para mim, enquanto me refaço de uma sonora e prolongada gargalhada.

 

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