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Medo de voar? Curso promete resolver seu problema em 2 dias

Do riso ao choro, tudo acontece no treinamento de neuropsicólogas para pessoas com fobia de voo

atualizado

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Cícero Lopes/Metrópoles
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1 de 1 ilustra-medodevoar - Foto: Cícero Lopes/Metrópoles

Numa manhã fria de sábado em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, 11 pessoas aguardam tensas a chegada das instrutoras à sala de aula. O cenário é o maior centro de treinamento de voo da América Latina. Pilotos e copilotos das principais companhias aéreas do país entram e saem apressados com malas de bordo. Estão chegando de algum lugar e indo a outro, por certo. Falam a língua da aviação. Coisa de briefing e debriefing, latitude, graus a oeste, plano de voo. Aparentemente, não estão ofendendo ninguém. Para aquele grupo reunido em umas das salas no primeiro piso, no entanto, estar ali já é uma grosseria.

Para alguns, a palavra “avião” causa arrepios na espinha. Para outros, qualquer coisa além disso já dispara uma série de reações que vão da suadeira ao enjoo. Não foi exatamente um plano de voo o que as tirou da cama mais cedo naquele dia. Um plano de voar, quem sabe.

Ao contrário dos funcionários das aéreas que frequentam o lugar a torto e a direito, não seria nenhum figurão da aviação o instrutor que iria guiá-las pelos próximos dois dias. Desprovidas de mapas ou uniformes pomposos, caberia às neuropsicólogas Fernanda Queiroz e Paola Casalechi, pioneiras no Brasil no tratamento de fobia de voo, lidar com frustrações que, às vezes, se acumulam por décadas até que empacam um cidadão diante de um portão de embarque.

“Quem está aqui já tem bastante coragem. É o primeiro enfrentamento do medo”, anuncia Paola nos minutos iniciais da aula. Bastante coragem e algum dinheiro. O curso para tratamento de fobia de avião em fórmula a jato (dois dias) foi trazido de Portugal pelas duas, em 2016, depois de um treinamento no centro Medo de Voar. A turma em questão era a quarta da dupla no modo coletivo. Mas, há cinco anos, elas acumulam experiência em consultório com fóbicos de viagens, atendendo individualmente. “A gente percebeu a demanda, e a gente tinha as ferramentas para ajudar essas pessoas. Então, por que não?”, comenta Fernanda Queiroz.

Igo Estrela/Metrópoles
O curso começa com uma apresentação da metodologia e estatísticas de segurança de voos

A terapia coletiva sai a R$ 3 mil por pessoa e acontece por demanda. Neste ano, por maior medo ou coragem de vencê-lo, terá datas todos os meses, até novembro. Por ironia do destino, mesmo em território paulista, o projeto atrai gente do Brasil todo – de carro, claro. Naquele final de semana, um dos alunos dirigiria do nordeste a São Paulo só para dar chance a uma trégua, pelo menos, na fobia. A greve dos caminhoneiros adiou os planos para o mês seguinte.

Não é preciso ter graduação em psicologia para perceber a tensão na sala. Os pés sacudindo sem parar por debaixo das cadeiras falam sozinhos. “As pessoas sentem vergonha do próprio medo. Elas mesmas taxam como ‘besteira’ ou ‘coisa de caipira’”, comenta Fernanda.

A fobia de avião, aparentemente, não tem cara. A maioria dos alunos é jovem, mas isso não é uma regra. A maioria é mulher, mas isso também não é regra – os homens, em geral, preferem os atendimentos individuais, segundo Fernanda e Paola. Sentados ali estão um jornalista que já tinha medo e viu a coisa degringolar após noticiar a tragédia da Chapecoense, em 2016. Uma jovem mãe que confessa ter medo de avião, metrô e elevador. Uma menina que pulou a lua de mel não por falta de dinheiro, mas pelo terror de fazer o trajeto pelos ares. Outra que, de viajante frequente, passou a se incomodar até com o barulho dos aviões decolando e pousando nas proximidades do aeroporto. Por aí vai.

Ninguém entra ali com a promessa de perder a fobia de voar em dois dias “ou o seu dinheiro de volta”. “Cada um tem um resultado. Há quem diga que ‘zerou o medo’. Mas a gente considera sucesso quando a pessoa consegue usar o aprendizado para viajar com menos desconforto, sem sofrimento”, sublinha Paola.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 83 milhões de brasileiros (40% da população) têm algum nível de medo de avião. Esse dado é um dos primeiros apresentados pelas especialistas, em um slide. A parte burocrática também inclui estatísticas: dados americanos de 2013 mostraram que a média de acidentes aéreos, na época, era de um para cada 2,8 milhões de voos. Entram nessa conta desde turbinas em chamas até pessoas que tropeçam no corredor do avião e acabam com o pé enfaixado. “Meio de transporte mais seguro do mundo”, se lê no datashow, com a foto de uma aeronave ao fundo.

Nada disso convence o público presente. A única estatística válida para eles é a das catástrofes. “Alguém aqui assiste ‘Mayday! Desastres Aéreos?’”, quer saber uma moça sentada no fundo da sala, se referindo ao programa de TV paga que apresenta os casos mais escabrosos da aviação. “Já viram aquele sobre Congonhas, o aeroporto mais perigoso do mundo?”, emenda outra aluna. Fossem baseadas no diálogo ali, as estatísticas seriam o oposto do visto nos slides e a aviação seria praticamente uma sentença de morte.

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Vocabulário de profissional: arremeter, trem de pouso, despressurização e reverso saem da boca dos medrosos com naturalidade


Seja uma zebra

A aula segue com uma série de conteúdos teóricos e um sem-número de metáforas. Fica mais fácil assim entender a engenharia mental que culmina num ataque de pânico quando o comandante anuncia “portas em automático”. Em doses, as psicólogas explicam que o medo de avião é como um bolo numa vitrine de confeitaria: a base, o pão de ló, é a ansiedade. O avião é a cereja, um detalhe. Poderia ser a barata, por exemplo. Mas calhou de não ser.

Paola, então, pede que cada aluno procure no material recebido um balão azul e o encha até um volume considerável. Depois, segurando o objeto, eles devem dizer a primeira coisa que vem ao pensamento se avisados que precisariam pegar um avião no dia seguinte. “Eu vou morrer amanhã”, é a primeira resposta dada, sem titubeio. “Se vai estar chovendo”, emenda outra. A lista de preocupações continua: em qual fileira ela estará sentada, qual o horário do voo, medo, medo, e, de novo, medo.

“Agora repitam isso em voz alta, todos ao mesmo tempo”, pede a especialista. Balbúrdia. Uma horda de frases catastróficas prenunciando o caos iminente toma conta da sala. “Viram? É assim que a mente de vocês está funcionando no momento da crise [de medo]”, compara a psicóloga. Em outras palavras, é como se a cabeça gerasse uma série de pensamentos ruins e sem fundo lógico que leva a uma emoção pior ainda: o medo.

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O que você sentiria se fosse encarar uma viagem de avião amanhã?

 

A turma cala e entra em cena o primeiro ensinamento do fim de semana. “Sejam uma zebra”, aconselha Fernanda. As pessoas riem, claro, mas a metáfora da psicóloga tem respaldo científico. É baseada no livro Por Que As Zebras Não Têm Úlceras, do biólogo e neurologista Robert. M. Sapolsky. A lógica é simples: zebras não antecipam tragédias. Elas não passam a vida à espera de um predador terrível surgindo por detrás de uma moita na savana para atacá-las. Só lidam com o estresse quando ele aparece. O leão, portanto, só é um problema quando está ao alcance dos olhos. Antes disso, é pura hipótese. Depois, idem.

Conforme se libertam de sua timidez, os medos vão ganhando contornos mais definidos. A fobia de avião, então, mostra vieses. Vira medo de a comida a bordo acabar. De o pouso “jamais” ser autorizado e o avião pairar para todo o sempre no ar. De o medroso ter um troço em pleno voo, sem chance de resgate. Ou de os pilotos adormecerem e fazerem uma viagem para a morte. É hora, então, de outra lição: de possibilidades contra probabilidades.

“É possível que o piloto durma? É. Mas é provável?”, provoca Fernanda. A ideia é que racionalizar o medo torna as coisas mais ridículas, mas também mais claras. Os fóbicos são incentivados, então, a sempre que forem inundados de pensamentos catastróficos, se perguntarem sobre as chances reais de aquilo virar manchete de jornal no dia seguinte.

Deus me livre, mas quem me dera
Stéphanie Reis, 27 anos, era uma das alunas atentas às lições sobre o que é provável, possível, e como mimetizar o raciocínio de animais dentro de um avião. Ela não se lembra exatamente quando o frio na barriga virou fobia, mas tem quase certeza que foi durante uma turbulência em algum lugar no céu entre São Paulo, onde mora, e Blumenau.

“Ouvi um barulho muito estranho”, conta. Depois disso, foi travando. Travou tanto que dispensou a lua de mel quando se casou. “Nem aqui pelo Brasil, para uma praia, quis ir. Não deixei meu marido planejar a viagem”, conta. Ela só queria viajar – com o marido, inclusive. Prometeu a si mesma encarar o próximo embarque como se fosse o primeiro.

Cheguei a viajar de férias uma vez e não consegui curtir nada, só pensando na viagem de volta. Eu preferia não ter ido

Stéphanie Reis, bancária

A lua de mel frustrada parece uma situação extrema, mas se mistura a outros dramas pessoais. O sonho de ver a seleção jogar na Rússia que teria se realizado não fosse o trajeto aéreo. Uma mudança da Alemanha ao Brasil que durou 15 dias de navio, em vez das 12 horas de avião. A executiva já pensou “várias vezes” em abandonar a carreira por ter que encarar tantos voos internacionais a trabalho. “Para lugares tipo Bangladesh e China, muito longe”, vai dopada. “Dopada”, aliás, deve ser a segunda palavra mais dita nos dias de curso, depois de “medo”. Parte do processo.

Num esquema feito no quadro, as psicólogas incentivam os alunos a enxergarem além dos pensamentos e das emoções que as dominam diante de uma aeronave. Ela escreve ali “valores”. “Por que vocês querem viajar?”, perguntam. A lista começa a crescer: porque estar com a família importa, porque conhecer novos lugares importa, porque manter o relacionamento importa, a carreira também. É nisso que eles devem pensar com o cartão de embarque em mãos. Não sobre a manutenção do meio de transporte ou o estoque de barrinhas de cereal que ele carrega.

“Onde vê o nível de combustível?”
O segundo dia do curso é o mais aguardado. O centro de treinamento tem uma série de simuladores de aviação tão reais que servem de treino e prova para comandantes das mais renomadas companhias aéreas do país. Turbulência, chuva, um motor que pifa, o trem de pouso que não desce. Nomeie uma tragédia e ela se materializa diante dos olhos do piloto, na tela do computador. A vantagem é a de viver a tragédia a nível do mar. É de mentirinha, mas é como se fosse de verdade.

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O modelo escolhido para o curso é o do Boeing 777, o maior bimotor do mundo, com capacidade para até 550 passageiros. Os alunos entram de dois em dois, acompanhados do instrutor, um ex-comandante da Varig, e da psicóloga Paola Casalechi. Ao menor sinal de crise, ela entra em ação.

É fácil perder a noção entre real e virtual quando as portas se fecham. Do frio característicos do ar-condicionado dos aviões ao barulho das turbinas, tudo é idêntico. O comandante convida os alunos a tomarem os lugares de piloto e copiloto. “A decolagem é a única parte do voo que não dá para ser no automático. Então, quem vai decolar esse Boeing?”, pergunta. Ao lado do copiloto, Isadora Ribeiro aproveita para viver o medo – e tirar todas as dúvidas.

“Tem algum lugar aqui onde o piloto vê qual o nível de combustível?”, pergunta, nervosa. O instrutor Eloy Binder, 59 anos “só de aviação”, está acostumado com os nervos aflorados. Lembra que a Varig tinha um programa parecido no Brasil, para medrosos exacerbados. A turbulência é o temor número 1. Seguida de perto por ruídos estranhos e trens de pouso que não recolhem depois da decolagem.

No simulador, são 40 minutos de emoções intensas: o voo tem chuva, vento forte, um avião que se aproxima da rota e dispara alerta vermelho no painel acompanhado de uma buzina ensurdecedora, nuvens carregadas, além de todos os níveis de turbulência possíveis.

A psicóloga propõe que, por um segundo, os “pilotos” fechem os olhos e se entreguem à sensação do chacoalhar da aeronave. “É isso o que vocês vão viver no ar. Está chacoalhando. Mas o que isso significa?”, racionaliza. Binder responde as perguntas pacientemente, uma a uma: turbulências não derrubam aviões, arremeter é normal, não é verdade que companhias aéreas “mais pobres” economizam no querosene deixando pouco espaço para desvios de rota e, finalmente, a pedidos, esclarece: estatisticamente, a decolagem é a hora mais tensa do voo. “Potência máxima, tanque cheio”, explica. A sinceridade ali é amiga do medo.

Os demais alunos esperam em uma espécie de sala de descompressão ao lado. Em duplas, os corajosos vão chegando e dividindo as experiências. Há os eufóricos e empoderados depois de decolar um avião sem causar uma tragédia, mesmo que virtual. Há quem chegue esbaforido. O dia termina com uma única baixa: uma das alunas não conseguiu ficar mais do que alguns minutos no simulador. “Esse é o meu primeiro passo, mas tenho muito o que enfrentar ainda até voltar a voar”, diz, numa autoanálise.

Mãe temerosa
Sentada no fundo do cômodo, com o filho no colo, está Marina Carvalho,  33 anos. Téo tem só 1 ano e 9 meses. Desde que o menino nasceu, ela nunca mais entrou num avião. Conta que o pai trabalhava na Varig e, quando a empresa deu sinais claros de falência, todo mundo se agilizou para carimbar o passaporte de graça pela última vez.

“Eu não aproveitei nada disso”, desabafa. Em agosto, se muda com Téo e o marido para Austin, no Texas, Estados Unidos. Ele foi transferido. Não apenas vai precisar encarar um voo de nove horas até lá, quanto muitos outros se quiser matar a saudade de vez em quando da família no Brasil. “Eu penso no meu esposo. Vai ser bom para ele se mudar agora”, pondera.

O medo piorou, como ela mesma conta, depois do nascimento do filho. “Eu tenho medo de morrer e deixar ele. Ou, pior ainda, de ele morrer também”.

Quando eu vejo bebezinhos e crianças no aeroporto, indo viajar, penso: “Nossa, tadinhos. Viveram tão pouco”

Marina Carvalho, 33 anos

Antes de se despedirem, Paola dedica os minutos finais do curso ao fechamento. Pede que as pessoas definam, em duas palavras, como se sentiam naquele sábado gelado paulistano e como se sentam agora. Pelos depoimentos, pelo menos, os objetivos parecem ter sido alcançados. “Ansiedade” deu medo à “confiança” ou ao “autoconhecimento”. Um medo individual que virou “coletivo”. “Achei que só eu era doido”, emenda o autor. O pânico cedeu vez ao encorajamento.

Numa TV, a psicóloga exibe relatos de ex-alunos que gravaram vídeos contando de suas primeiras viagens pós-curso. Parecem aliviados. Um deles mostra uma mulher aparentemente tranquila, com fones de ouvido, em plena decolagem. O marido, incrédulo, foi quem fez a filmagem, sem que ela percebesse. Ao final, eles trocam telefones e montam um grupo de WhatsApp. Prometem compartilhar mais do que links para matérias de desastres aéreos e se despedem. As ferramentas foram dadas. Só falta o checkin.

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