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Porteirão, no “coração” do agro em GO, lidera infecção por Covid no país

Porteirão, cidade goiana com menos de 4 mil habitantes, já teve 40% da população contaminada pela Covid-19. É o maior índice do país

atualizado

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Vinícius Schmidt/Metrópoles
Porteirão, em Goiás, é a cidade brasileira com o maior percentual de casos da covid-19 na população
1 de 1 Porteirão, em Goiás, é a cidade brasileira com o maior percentual de casos da covid-19 na população - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Na pequena Porteirão, cidade com menos de 4 mil habitantes e que fica entre as regiões mais fortes do agronegócio em Goiás (sudoeste e sul), é difícil encontrar uma residência em que ninguém tenha contraído o novo coronavírus. Rodeada por lavouras e com painéis de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), na entrada e na saída do perímetro urbano, a cidade possui o maior percentual do Brasil de casos da doença, em relação ao total da população.

De cada 10 moradores do município, quatro tiveram Covid-19, desde o início da pandemia. Em números absolutos, de uma população estimada em 3.931 pessoas, conforme projeção de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1.562 testaram positivo até sexta-feira (4/6). Isso representa 39,7% dos moradores de Porteirão. “Aqui, foi geral”, revela a coordenadora da Vigilância Epidemiológica da cidade, Lurian de Oliveira Borges.

O levantamento foi realizado pelo (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, com base nos números coletados na plataforma colaborativa Brasil.io e também nos dados fornecidos pela Prefeitura Municipal de Porteirão.

A cidade tem perímetro urbano (70 quadras) menor que muitos bairros de Goiânia. Em visita a Porteirão, a reportagem do Metrópoles constatou que o uso de máscaras, uma das principais medidas de proteção durante a pandemia, não é um hábito recorrente entre os moradores. Nas ruas, percebe-se muita gente burlando as regras sanitárias ou utilizando o item de maneira errada (no queixo ou sem tapar o nariz).

Segundo a prefeitura da cidade, o alto índice de casos confirmados se deve às testagens constantes e também à dificuldade de conscientização da população, que segue o discurso de que a doença é apenas uma “gripezinha”, termo que chegou a ser utilizado por Bolsonaro para se referir à Covid-19.

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Influência bolsonarista

No resultado do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro teve 53,7% dos votos válidos nas urnas de Porteirão. Um pouco mais do que recebeu no primeiro turno, quando abocanhou 45,7% dos votos da pequena cidade, que tem 2.763 eleitores aptos.

Para os gestores de Porteirão, é nítida a influência do presidente na forma como os moradores encaram a pandemia. “Hoje, quando você chega a um comércio para conscientizar, muitos falam: ‘Não, rapaz, é só uma gripezinha'”, assinala o prefeito João Henrique Silva (PSB), que diz ouvir com frequência justificativas que encontram base em atitudes e palavras de Bolsonaro.

No último domingo (30/5), ao questionar a razão de alguns moradores estarem em uma aglomeração no lago da cidade, sem o uso de máscara, o prefeito ouviu de um morador: “Rapaz, se o presidente está andando para cima e para baixo aí de moto, por que nós vamos usar (máscara)?”.

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Fiscais maltratadas

A prefeitura contratou 10 fiscais, todas mulheres, para auxiliar na conscientização da população e dos comerciantes. Nas abordagens do dia a dia, no entanto, as profissionais têm sido maltratadas e recebidas com xingamentos. “As pessoas maltratam as fiscais, falam que não vão pegar a doença ou que já pegaram e que, por isso, não vão pegar novamente”, conta o prefeito.

Devido aos ataques, as fiscais contratadas já pedem para não trabalhar mais na função, “porque elas chegam ao comércio e são atacadas, chegam às ruas, e o pessoal fala mal. A resistência é muito grande. Mais de um ano de pandemia, mas as pessoas, infelizmente, parecem que não aprenderam a lidar com a doença”, diz o secretário de Saúde local, Wisley Fernandes Soares.

Como consequência do comportamento que se instalou entre moradores de Porteirão, o secretário cita, ainda, o enfrentamento de casos de pessoas que estão com Covid-19 e que só procuram o serviço de saúde quando já estão com quadros muito evoluídos da doença.

“Nós temos que ir lá e pedir até pelo amor de Deus. Tem caso em que a pessoa procura ajuda quando já está bem avançado, com mais de 50% a 70% (de comprometimento dos pulmões)”, indigna-se Wisley.

 

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‘Kit Covid’

O protocolo de atendimento adotado em Porteirão prevê, desde o início da pandemia, a utilização do chamado ‘Kit Covid’, composto por medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da doença. Segundo a coordenadora da Vigilância Epidemiológica local, Lurian de Oliveira Borges, a decisão foi tomada pelos médicos que atuam no município.

O kit oferecido na cidade é composto por quatro comprimidos de ivermectina, quatro de azitromicina, 10 dipironas e 10 vitaminas C.

“A partir do momento em que o teste dá positivo, o paciente entra no boletim epidemiológico e já entra com o kit de tratamento precoce”, afirma Lurian.

Nos primeiros meses de pandemia, a cloroquina também fazia parte dos medicamentos recomendados pela prefeitura da cidade, mas passou a ser opcional. “Hoje, fica a cargo do médico decidir. Se alguém quiser, nós temos para oferecer”, assinala a coordenadora. Quando a reportagem questionou Lurian sobre a falta de eficácia da medicação, o prefeito João Henrique interveio na resposta: “É o medicamento que está sendo usado no Brasil todo”, justificou.

21 contaminados numa mesma família

Nas conversas com a população da pequena Porteirão, não é difícil encontrar relatos sobre a Covid-19. Em algumas residências, vários integrantes foram contaminados ao mesmo tempo pelo vírus. Recentemente, 21 parentes de uma família testaram, simultaneamente, positivos para a doença; o grupo havia viajado para uma cidade próxima com o objetivo de participar de uma comemoração.

Na própria prefeitura, é comum encontrar pessoas que foram infectadas. Durante as eleições municipais do ano passado, o então candidato a prefeito (que viria a ser eleito) contraiu o vírus e teve de ser internado. João Henrique, que precisou do auxílio de uma máscara de ventilação, recebeu alta 10 dias antes da votação.

“Minha saturação caiu para 72%. Tiveram que me amarrar para eu não retirar a máscara (VNI), porque a sensação era muito ruim”, conta o chefe do Executivo municipal.

Na antessala do gabinete, outro caso: a secretária do prefeito e o marido dela também foram contaminados. A mãe da funcionária é uma das pessoas que morreram em Porteirão por causa de complicações da doença. O mesmo ocorreu na família do secretário de Saúde da cidade, Wisley Fernandes Soares. Ele, o pai e a mãe já testaram positivo para Covid-19, e o sogro dele também consta na relação de moradores que morreram em decorrência do novo coronavírus.

“É um impacto não só para a família, mas para toda a população. Aqui todos se conhecem. São pessoas que poderiam ter vivido muito mais. Em alguns casos, eram pessoas sadias, que não tinham nenhum tipo de doença e, na primeira doença grave que pegaram, já foram a óbito. É uma doença que veio, realmente, para abalar as estruturas de qualquer ser humano”, salienta o secretário.

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Impacto local

De oito socorristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Porteirão, só dois não contraíram a doença. Na segunda-feira (31/5), a responsável pelos serviços gerais do Samu, Ivaneide Varela de Lima, 38 anos, retornou ao trabalho, após passar mais de uma semana afastada. Ela, o marido e o filho de apenas 2 anos estavam com Covid-19. “Tive muito medo”, enfatiza.

Na Unidade Básica de Saúde (UBS) da cidade, que fica a duas quadras do Samu, funciona o ponto de vacinação de Porteirão. No início da tarde de segunda-feira, o casal Arlindo Bárbara da Silva, 43, e Arielly Santos Brito, 24, se vacinava no local. Ambos são do grupo de comorbidades. “A família inteira teve Covid, só eu que não. Foram mais de 10 pessoas”, diz Arlindo. Ele atribui a abundância de casos na cidade às aglomerações constantes.

Até então, 374 pessoas da cidade já receberam duas doses da vacina contra o coronavírus, o que representa 9,5% da população total. Na sexta-feira (4/6), mais um óbito foi confirmado. Ao todo, 26 moradores com a doença estão em observação, sendo dois em isolamento hospitalar e 24 em isolamento domiciliar.

Mortes

Dados do IBGE mostram que, em 2019, morreram 30 pessoas no município, o maior número documentado desde o início da série histórica, em 2006. A cidade já perdeu, desde o início da pandemia, 22 vidas para a doença. Indignado com a situação do município, o secretário de Saúde de Porteirão lamenta o cenário.

“Se o nosso líder maior, que é o presidente, age como se fosse brincadeira quase 500 mil mortes no Brasil, fica difícil. Para ele, parece que não caiu a ficha ainda. Tivemos 22 mortes em Porteirão. Se a vacina tivesse sido antecipada, teríamos menos da metade”, completa Wisley.

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