metropoles.com

Carregando nas cores do inexplicável

Um amigo me pediu ajuda para desmontar sua casa e voltar à cidade natal. Fui para aplacar a curiosidade que mata o gato, mas antes faz ele descobrir os podres do leão

atualizado

Compartilhar notícia

iStock_000052072484_Full
1 de 1 iStock_000052072484_Full - Foto: null

Um amigo me pediu ajuda para desmontar sua casa e voltar à cidade natal. Fui para aplacar a curiosidade que mata o gato, mas antes faz ele descobrir os podres do leão.

Saindo da gaveta, cada objeto vinha com uma história: o casaco, comprou em Cannes; o chaveiro foi roubado num bar no Haiti; e a foto dele abraçado com um cara vestido de Margareth Tatcher nunca foi bem explicado.

De repente, vi uma lata de biscoito debaixo de duas pilhas de meias e senti seu valor. Para ela estar tão bem escondida, deviam ser as partes secretas das viagens.

– Ah, essa caixa… – ele começou.

– O que tem nela? – perguntei, já abrindo.

Vejo papéis de bala, moedas estrangeiras, playmobil e um isqueiro rosa, tipo zippo. Deixei de lado, decepcionado.

– Era isso mesmo que eu queria – e meteu a mão na lata. – Toma, queria te dar isso.

Era o isqueiro. Olhei para o rosa e disfarcei o riso. Um pink que nem era forte o suficiente para ser legal, nem fraco para ser adorável. Seria legal se fosse um rosa chiclete, ou um rosa calcinha.

– Poxa, obrigado. Legal – representei. – Um isqueiro rosa.

– Haha. Vira do outro lado.

Grafite de Banksy *Reprodução**
Grafite do artista britãnico Banksy *Reprodução**

Havia um desenho do Banksy, o artista inglês. Era preto, de uma menina com os braços esticados tentando segurar o balão que fugia que, originalmente está pintada em um muro de Londres. Quando abria a tampa, o balão ia para longe; ao fechar, voltava para perto dela. Só então percebi a razão do tom do rosa: a cor preta se destacava sobre ele, como se brilhasse. Era lindo, lindo.

– Amigo, é do Banksy. Eu adorei –disse, lhe dando o maior abraço que eu pudesse, de verdade.

– Pois é. Acabou o fluido e eu esqueci onde estava. Pensei nele dia desses e decidi te dar, só que sempre esquecia.

– Pode deixar que o fluido é fácil – mais difícil seria ir até Londres e comprá-lo.

Fui à tabacaria do Conjunto Nacional e os vendedores – garotos de cabelos para cima – não tinham a cara simpática, mas nem me abalei. Num impulso tirei o isqueiro do bolso, pondo-o sobre o balcão:

– Queria por fluido neste isqueiro, por favor.

O atendente, um rapaz que além de gel também tinha luzes nas pontas eretas, demorou 10 segundos olhando para o objeto. Depois olhou para mim um tempo, e para o isqueiro outra vez. Sim, era um isqueiro rosa! Um isqueiro cor de rosa… Putz!

Fiquei tenso, sem querer chamar atenção de mais ninguém. Não queria mais olhos sobre a cor do isqueiro e eu tendo de explicar o que não tem explicação. A brincadeira acabou ali. Ele passou-o para um outro e disse:

– Bota fluido nesse isqueiro aqui.

“Droga, ainda vai passar para outro? Vai querer mostrar para todo mundo que meu isqueiro é rosa?”

O outro pegou, parou e se virou olhando em volta:

– De quem é isso aqui?

“Vou ficar calado”.

– É meu, escapuliu.

A recompensa? Mais três olhadas para mim e para o isqueiro até ele sumir por uma portinha. Fiquei constrangido, me preparando para ser mais uma vítima de preconceito e da pior espécie: dessas que jogam fluido de isqueiro e riscam o fósforo. Ali, no meio do Conjunto Nacional. Para não alongar meu tempo, paguei logo, para só pegar o que era meu e ir embora. Fiz tudo tentando passar despercebido por outras tantas pessoas, mas tinha certeza de que estava tatuado na minha testa: ISQUEIRO ROSA.

Voltei para o balcão, pronto para correr. O isqueiro voltou e só vi quando o rapaz de luzes me chamou.

– Esse desenho é de um artista inglês, né?, perguntou, com sotaque goiano carregado.

Levei uns segundo até processar o que ele disse e vi o desenho da menina.

– É.

– O nome dele é Banksy, né?

Eu, com a cara mais incrédula do mundo e com a voz de idiota respondo:

– É.

Ele bate o dedo indicador três vezes sobre o vidro do balcão ao lado do isqueiro.

– Esse cara é massa – e some pela portinha, me deixando com a mesma cara da menina que viu o balão indo embora.

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?