Carregando nas cores do inexplicável
Um amigo me pediu ajuda para desmontar sua casa e voltar à cidade natal. Fui para aplacar a curiosidade que mata o gato, mas antes faz ele descobrir os podres do leão
atualizado
Compartilhar notícia
Um amigo me pediu ajuda para desmontar sua casa e voltar à cidade natal. Fui para aplacar a curiosidade que mata o gato, mas antes faz ele descobrir os podres do leão.
Saindo da gaveta, cada objeto vinha com uma história: o casaco, comprou em Cannes; o chaveiro foi roubado num bar no Haiti; e a foto dele abraçado com um cara vestido de Margareth Tatcher nunca foi bem explicado.
De repente, vi uma lata de biscoito debaixo de duas pilhas de meias e senti seu valor. Para ela estar tão bem escondida, deviam ser as partes secretas das viagens.
– Ah, essa caixa… – ele começou.
– O que tem nela? – perguntei, já abrindo.
Vejo papéis de bala, moedas estrangeiras, playmobil e um isqueiro rosa, tipo zippo. Deixei de lado, decepcionado.
– Era isso mesmo que eu queria – e meteu a mão na lata. – Toma, queria te dar isso.
Era o isqueiro. Olhei para o rosa e disfarcei o riso. Um pink que nem era forte o suficiente para ser legal, nem fraco para ser adorável. Seria legal se fosse um rosa chiclete, ou um rosa calcinha.
– Poxa, obrigado. Legal – representei. – Um isqueiro rosa.
– Haha. Vira do outro lado.
Havia um desenho do Banksy, o artista inglês. Era preto, de uma menina com os braços esticados tentando segurar o balão que fugia que, originalmente está pintada em um muro de Londres. Quando abria a tampa, o balão ia para longe; ao fechar, voltava para perto dela. Só então percebi a razão do tom do rosa: a cor preta se destacava sobre ele, como se brilhasse. Era lindo, lindo.
– Amigo, é do Banksy. Eu adorei –disse, lhe dando o maior abraço que eu pudesse, de verdade.
– Pois é. Acabou o fluido e eu esqueci onde estava. Pensei nele dia desses e decidi te dar, só que sempre esquecia.
– Pode deixar que o fluido é fácil – mais difícil seria ir até Londres e comprá-lo.
Fui à tabacaria do Conjunto Nacional e os vendedores – garotos de cabelos para cima – não tinham a cara simpática, mas nem me abalei. Num impulso tirei o isqueiro do bolso, pondo-o sobre o balcão:
– Queria por fluido neste isqueiro, por favor.
O atendente, um rapaz que além de gel também tinha luzes nas pontas eretas, demorou 10 segundos olhando para o objeto. Depois olhou para mim um tempo, e para o isqueiro outra vez. Sim, era um isqueiro rosa! Um isqueiro cor de rosa… Putz!
Fiquei tenso, sem querer chamar atenção de mais ninguém. Não queria mais olhos sobre a cor do isqueiro e eu tendo de explicar o que não tem explicação. A brincadeira acabou ali. Ele passou-o para um outro e disse:
– Bota fluido nesse isqueiro aqui.
“Droga, ainda vai passar para outro? Vai querer mostrar para todo mundo que meu isqueiro é rosa?”
O outro pegou, parou e se virou olhando em volta:
– De quem é isso aqui?
“Vou ficar calado”.
– É meu, escapuliu.
A recompensa? Mais três olhadas para mim e para o isqueiro até ele sumir por uma portinha. Fiquei constrangido, me preparando para ser mais uma vítima de preconceito e da pior espécie: dessas que jogam fluido de isqueiro e riscam o fósforo. Ali, no meio do Conjunto Nacional. Para não alongar meu tempo, paguei logo, para só pegar o que era meu e ir embora. Fiz tudo tentando passar despercebido por outras tantas pessoas, mas tinha certeza de que estava tatuado na minha testa: ISQUEIRO ROSA.
Voltei para o balcão, pronto para correr. O isqueiro voltou e só vi quando o rapaz de luzes me chamou.
– Esse desenho é de um artista inglês, né?, perguntou, com sotaque goiano carregado.
Levei uns segundo até processar o que ele disse e vi o desenho da menina.
– É.
– O nome dele é Banksy, né?
Eu, com a cara mais incrédula do mundo e com a voz de idiota respondo:
– É.
Ele bate o dedo indicador três vezes sobre o vidro do balcão ao lado do isqueiro.
– Esse cara é massa – e some pela portinha, me deixando com a mesma cara da menina que viu o balão indo embora.