Cultura negra: 4 elementos aceitos apenas quando usados por brancos

Saiba por que alguns elementos da negritude são aceitos ou se tornam tendência de beleza apenas quando usados por determinado grupo social

atualizado 18/11/2022 18:42

Foto colorida de dois rapazes Reprodução: FROSTT/YouTube/João Guilherme/Istagram

“Tudo que quando era preto era do demônio / e depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de blues / É isso, entenda, Jesus é blues”. Se você acompanha o cenário do rap nacional, certamente já escutou esses versos. A citação, um trecho da música Bluesman, composta por Baco Exu Do Blues, faz uma reflexão sobre como Jesus é retratado atualmente: um homem branco, europeu, de cabelos ondulados e olhos azuis.

A ciência, no entanto, desconstruiu essa ideia, evidenciando que, de acordo com a localização geográfica onde Jesus nasceu e a etnia de seu povo, não há possibilidade de que ele tenha sido um homem branco. Na canção, Baco reflete sobre essa suposta aceitação da imagem fictícia de Cristo nos dias atuais. A letra pode servir como metáfora a outros elementos majoritariamente usados por pessoas pretas e marginalizados por anos, até se tornarem tendências de beleza quando adotados por determinado grupo social.

A imagem de Jesus Cristo de pele branca, olhos claros e cabelos alourados foi popularizada durante o Renascimento

O olhar da sociedade muda para alguns desses itens quando eles são usados por pessoas ricas e, principalmente, de pele clara.

Neste Dia da Consciência Negra (20/11), confira quatro casos em que isso aconteceu:

“Loiro pivete”

O estilo de cabelo se popularizou nas comunidades durante os anos 1990 e 2000, se tornando até um símbolo de pagodeiros da época. Por ter surgido nas favelas, o cabelo descolorido daquela forma ganhou o nome depreciativo de loiro “pivete”, sendo diretamente relacionado a marginalidade.

Ao decorrer dos últimos anos, com o advento das redes sociais, o estilo ganhou mais espaço nas diversas mídias, sendo adotado por celebridades. Com isso, moradores de bairros nobres também passaram a usá-lo. Hoje em dia, o cabelo “nevou”, como muitos gostam de chamá-lo, é febre não só no país, mas no mundo todo.

Foto colorida de dois meninod. 1Á direira um jovem negro e a esquerda um jovem branco-Metrópoles
Frostt no clipe Loiro Pivete e João Guilherme

Glazed lips

Entre as décadas de 1950 e 1970, não existiam muitos produtos de beleza para pessoas pretas. Então, uma das técnicas usadas pelas mulheres para fazer qualquer batom combinar com elas era aplicar lápis marrom em volta da boca, fazendo um contorno para defini-la.

Recentemente, Hailey Bieber publicou em suas redes sociais vários tutoriais de make usando o método. O visual, então, começou a ser considerado estiloso. Na internet, foi batizado de glazed lips. Apesar da modelo nunca ter dito que criou a técnica, muitas pessoas acreditam que foi Hailey quem lançou a tendência.

Foto colorida de duas mulheres contornando a boca. Elementos da cultura negra-Metrópoles
A estética só começou a ser vista como algo cool quando mulheres brancas também passaram a se maquiar dessa maneira

Piercing no umbigo

A prática de furar o umbigo vem do Antigo Egito. Apenas os faraós e as famílias reais tinham permissão para fazer piercings. No Brasil, o adorno corporal se popularizou na década de 1990, principalmente entre as comunidades do Rio de Janeiro. No entanto, a estética dos piercings foi considerada por muito tempo vulgar e até cafona por alguns.

Só nos últimos anos, após determinados grupos adotarem o adereço, ele se tornou cool.

foto colorida de duas mulheres
A cantora Ludmilla e a influenciadora Viih Tube

Unhas alongadas

As unhas alongadas são um conceito antigo. Elas surgiram há centenas de anos e, em muitas sociedades, eram consideradas sinônimo de riqueza e status. A tendência como conhecemos hoje se popularizou nos Estados Unidos, mais especificamente no gueto. As mulheres negras de regiões periféricas e artistas de hip hop usavam suas unhas alongadas não apenas para “causar”, mas como símbolo de feminilidade.

Nos últimos anos, as unhas compridas voltaram com tudo. Agora, são usadas por celebridades do mundo todo e consideradas até um símbolo de ostentação, já que um alongamento pode chegar até R$ 300, a depender da profissional que realiza o serviço.

foto colorida de duas mulheres
À esquerda, Flo-Jo, atleta recordista americana e adepta das unhas alongadas. À direita, a cantora Luísa Sonza

O que está por trás da desvalorização da cultura negra?

Professora de história da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF) e mestranda do curso de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), Mariana Siqueira explana por que isso acontece. “O Brasil é um país racista, que foi construído em cima de estruturas escravocratas, e a colonização permanece até hoje em diversas formas cruéis de racismo”.

“Uma das raízes do problema é o apagamento das  filosofias e culturas negras da história oficial. Esse apagamento também se dá de maneira simbólica, fazendo com que as pessoas pretas e pardas raramente sejam reconhecidas como referência de moda e tendência”, elucida.

Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança e professora aposentada do Departamento de Sociologia da UnB, Maria Stela Grossi complementa. “Nesse caso [em que elementos da negritude só são considerados belos quando usados por pessoas de pele clara], está em jogo uma forma de discriminação cultural”, diz.

“Só se aceitam determinados elementos da cultura negra se redefinidos, reapropriados por pessoas brancas que, assim o fazendo, descaracterizam a forma cultural como típica e particular aos negros, fazendo dela algo fashion, up to date e, sobretudo, universalizado e universalizável. Os elementos deixam de ser algo identificável ao negro e à cultura negra”, critica.

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