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Eternizando memórias: jovem viaja para refazer passos do tio-avô

Fascinada pela vida do artista plástico César Papa, sobrinha deixa Brasília para refazer passos e produzir documentário sobre vida e obra

atualizado

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Arquivo pessoal/Laura Papa
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1 de 1 CP.PC_.01 - Foto: Arquivo pessoal/Laura Papa

Uma mochila de nove quilos com itens pessoais e alguns materiais de trabalho foi tudo que Laura Papa, 27 anos, considerou levar para a viagem mais importante de sua vida. Em junho desse ano, ela deixou a capital federal, onde se formou em Cinema e Audiovisual, na Universidade de Brasília, para dedicar-se a uma homenagem ao tio-avô, falecido em 1990 – dois anos antes de nascer.

Artista plástico, César Papa também saiu do Brasil, em 1986, para arejar seu trabalho nos Estados Unidos e descobrir novas inspirações. Acreditava ter viajado bastante pelo próprio país e tinha fome suficiente para devorar o mundo. Cria da primeira turma da Faculdade Dulcina de Moraes, foi convidado por um amigo estrangeiro para uma temporada na Califórnia. Ao responder, não hesitou. Despediu-se da família em Brasília (DF), abandonou um emprego público no Rio de Janeiro e mudou-se. Retornou ao Brasil em 1989 após ser diagnosticado com AIDS. Queria viver os últimos meses ao lado dos entes queridos.

Como quem sabia que, no futuro, alguém se empenharia em contar sua trajetória, o pintor deixou um volumoso acervo de cartas, pinturas em tela, roteiros de viagem e fitas cassetes. Mais de 800 documentos, todos digitalizados e catalogados por Laura. Embora não tenham se conhecido, o material organizado ao longo dos anos e os relatos de familiares foram suficientes para despertar na jovem cineasta uma profunda admiração pela breve e intensa vida do avô.

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O objetivo da  viagem de Laura é eternizar Cesar em documentário. Para viabilizá-lo, está refazendo os passos do tio-avô e buscando pessoas que o conheceram. Enquanto coleta material para o trabalho, compartilha a jornada com família, amigos e interessados no perfil Dear Cesar, no Instagram.

“Desde a infância, ouço histórias do César e me sinto envolvida por esse universo dele. Uma das coisas que sempre ouvi é que a gente ia adorar ter se conhecido e eu acredito nisso. Ele deixou uma memória muito viva e bonita na minha família. Todo mundo que fala dele, fica com lágrima nos olhos. Mas não é uma emoção pautada na tristeza, é como se as lembranças do quanto ele foi especial viessem à tona”.

 

Refazendo os passos

O interesse pela vida de César  se materializou  na UnB. “Antes de cursar Cinema, fiz Museologia. Foi quando comecei a pesquisar sobre a vida dele pra valer, para um trabalho. Eu queria explorar essa coisa de poder conhecer alguém que não está aqui a partir das lembranças que as pessoas guardam dela.  Foi um trabalho sobre silêncio, lacunas, e uma uma sementinha do que eu ainda faria. Depois disso, ainda produzi um webdoc. Foi minha conclusão de curso”, comenta.

“O César era muito metódico, colocava as datas em praticamente tudo. Além disso, algumas cartas pro Brasil são, na verdade, fitas cassetes. Ele teve essa ideia porque assim poderia conversar enquanto pintava. Isso me deu a possibilidade de conhecer a voz dele, além de ser um audiovisual muito rico. Por tudo isso, achei que mais uma vez poderia fazer mais e decidi começar a viagem”.

A tentativa de descrever um passado que não presenciou é possível graças às tecnologias cada mais hightechs. A ideia de revisitar os mesmos pontos em que César esteve e registrá-los sob mesmo ângulo, por exemplo, contou com a ajuda do Street View. Uma contribuição importante, mas que não diminui a complexidade do trabalho, muitas vezes feito à várias mãos e olhos atentos ao computador.

É que mesmo com roteiros minuciosos do tio avô à mão e o recurso do Google à mão, Laura recorreu aos amigos que viveram ou ainda moram nessas cidades. “É como um jogo. Colocamos os lugares que a gente conhece e sabe que ele passou, traçamos algumas rotas, estudamos onde estão os monumentos do mapa e tentamos encontrar o mesmo ângulo que ele usou”, explica.

 

“A vida passa, mas a sua imagem fica”. Detalhe do roteiro que Cesar fez de uma viagem à Recife. Graças ao documento e às rotas traçadas no Google Maps, Laura conseguiu refazer os passos do avô na capital pernambucana

 

Para encontrar pessoas que conviveram com o congênere, escreveu um release, enviou para jornais locais e tornou sua busca pública. Logo, alguns amigos do artista entraram em contato para compartilhar histórias e encorajar Laura a continuar o projeto.

Ela já esteve em Recife, São Paulo e Estados Unidos e deve visitar, ao menos, três outros destinos: Havaí, China e Tailândia. “Pode ser que no meio do caminho eu mude de rota, porque essa também é uma viagem pra eu encontrar comigo mesma, então eu preciso de um tempo também pra olhar o material que eu produzi, e ver o que pode sair de potente e de bonito disso tudo”.

Pausas importantes, também, para quem precisa conciliar o projeto com trabalhos temporários. Para manter a viagem,  está, por exemplo, fazendo um “freela” em um hostel em San Diego.

“Também estou aproveitando para ter minhas próprias experiências em cada cidade. Até aqui tive a ajuda de amigos em cada um desses lugares. Mas comecei a trabalhar em troca de hospedagem e é como pretendo fazer daqui pra frente. É uma troca interessante”.

Arquivo Pessoal/Laura Papa
Jornais locais na Califórnia ajudaram Laura a encontrar personagens importantes da história de seu tio-avô, que viveu nos Estados Unidos por três anos
Trabalho, vida breve e luta contra a AIDS

César, o sétimo de oito filhos que cresceu no Brasil, foi o primeiro da família a se dedicar a uma carreira na arte. “Pela primeira vez na minha vida, acho que estou realmente feliz. Nunca pensei que a arte fosse tanto de mim”, escreveu ele em uma carta datada de 19 de fevereiro de 1987, a sua irmã mais nova, Stela.

Apesar de expor seus trabalhos em galerias locais e conquistar certo conhecimento entre a comunidade artística, a pressão para tornar seu trabalho mercadológico logo o desanimou. A saudade do Brasil ficou evidente em mensagens enviadas nos anos seguintes.

Quando retornou à Brasília, desenganado por médicos americanos, viveu na pele o preconceito contra portadores da AIDS – um dos maiores agravantes da pandemia da doença nos anos 1980/1990. Mesmo com condições financeiras para bancar um tratamento particular, César teve acesso negado a vários hospitais. Conseguiu atendimento em um departamento especializado e recém-criado no Hospital de Base. Infelizmente, a medicina também não havia avançado muito no tratamento.

Faleceu deixando um legado que, apesar de anônimo, ajuda a compreender a história de Brasília, do movimento artístico nacional e nos EUA, e da intolerância com a comunidade gay. Por todos esses aspectos, Ana Abreu,  professora do curso de Museologia da UnB, se encantou pela história de César e pela obra da aluna. “A relação com a memória é algo muito forte, o trabalho da Laura é um a reflexão de como a vivência individual dialoga com as questões sociais. Sobre como podemos construir pontes”, pontua.

Em fase de coleta de dados, Laura pede ajuda, também, para quem ler a matéria do Metrópoles. “Qualquer informação, experiência ou relato de pessoas que conheceram César e importante pra mim”. O contato pode ser feito via e-mail laurappn@gmail.com.

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