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Cultura do cancelamento expõe intolerância desta geração

Especialistas avaliam como boicote a figuras públicas expõe incapacidade de dialogar e analisam efeitos da conduta a médio e longo prazo

atualizado

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Arte Metrópoles
Bianca Andrade Cancelada
1 de 1 Bianca Andrade Cancelada - Foto: Arte Metrópoles

MC Gui, Anitta, Bianca Andrade e Alessandra Negrini têm, aparentemente, pouco em comum, salvo pela vida pública e o fato de terem sido, recentemente, “cancelados” nas redes sociais. Originalmente utilizado para desmarcar compromissos, por exemplo, o termo tem sido empregado como sinônimo de boicote a personalidades públicas, acusadas de fazer ou dizer algo considerado condenável, ofensivo ou preconceituoso por determinados grupos sociais.

Os artistas são apenas alguns dos inscritos na extensa e crescente lista de cancelados. O que significa que, para além da vida artística, eles compartilharam a experiência de serem julgados publicamente, estamparem manchetes negativas, perderem seguidores e contratos, entre outras consequências.

Um fenômeno tão relevante que fez com que a “cultura do cancelamento” fosse eleita, em 2019, a palavra do ano pelo dicionário australiano Macquarie. Nas palavras da publicação, o comportamento “captura um aspecto importante do estilo de vida atual, que de tão persuasivo, ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”.

Em 2020, o assunto segue em alta e divide opiniões. Enquanto parte dos usuários acreditam que o linchamento virtual, revestido de boas intenções, pode ser uma ferramenta de mediação moral, especialistas alertam para os sinais por trás da atitude.

“O cancelamento enquanto fenômeno está alinhado ao pensamento neoliberal em que vivemos, onde pautamos as nossas escolhas pela mentalidade de consumo e da substituição. Podemos deixar de comprar produtos de uma empresa envolvida em um escândalo ambiental, assim como cortamos os vínculos com um familiar em função de seu posicionamento político”, explica o psicanalista Lucas Liedker, que tem debruçado seus estudos sobre a temática.

“Assim, as pessoas assumem a posição de objetos, que você pode ir trocando, cancelando, algumas vezes de forma justa e, em outras, implacável”, diz.

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Boca Rosa

Um dos casos mais emblemáticos de cancelamento ocorridos neste ano envolve Bianca Andrade, também conhecida como Boca Rosa, participante da vigésima edição do Big Brother Brasil (BBB).

Após decidir não tomar lado em uma briga ocasionada por comportamentos misóginos de alguns participantes do reality, Bianca passou de favorita ao prêmio a “cancelada” nas redes sociais. Em virtude do confinamento, foi a família da influencer que teve de lidar com a perda expressiva de seguidores da profissional, as críticas e, em alguns casos, ofensas graves.

Em entrevista ao Metrópoles, Mônica Andrade, mãe da influenciadora, conta que o julgamento público a qual a filha foi submetida abalou toda a família.  “É sempre doloroso ver uma pessoa que você ama sofrendo uma represália desmedida, principalmente por fatos dos quais ela não tem controle. Ela foi verdadeira com seus ideais e quis conversar com todos para entender o que estava acontecendo”, desabafa.

“A Bia, como sempre faz, tentou escutar todas as pessoas e entender o que estava acontecendo. Ela não gosta de julgar sem saber os fatos. Para quem está fora da casa, é mais fácil, as pessoas não param para pensar que eles estão isolados e só sabem a verdade do que vivem lá dentro. Não podemos nos posicionar pelo que ela faria aqui fora, são situações incomparáveis”

Mônica Andrade, mãe da Boca Rosa

Essa não é a primeira vez que a empresária se envolve em polêmicas enquanto personalidade pública. No entanto, a postura dos seguidores assustou a família. Na avaliação de quem viveu na pele, como Mônica, essa experiência “não visa o crescimento pessoal e cultural de ninguém”. 

“Ela parte de um preceito punitivo para trazer exemplos sobre o que aconteceria com um outro alguém se este incutir no mesmo erro, contudo, isso apenas cerceia o diálogo e impõe uma amarra social que mais gera conflitos sem sentido do que soluciona problemas culturais centenários”, defende a mãe da empresária. Ela garante que, em nenhum momento, se decepcionou com as atitudes mostradas na tevê. 

Bia tem se mantido fiel a quem ela é. Ficamos preocupados em alguns momentos com a estabilidade emocional de todos os participantes da casa. Porém, sempre confiamos que a Bianca conseguiria, no seu tempo, enxergar o jogo e entrar nele”, finaliza. 

Reprodução/Instagram
Seguidores chegaram a escrever para marcas com as quais Bianca têm contrato para pedir que cancelassem a sister
Saúde mental

Internacionalmente, a ideia de cancelar alguém tem origem no movimento #MeToo (#EuTambém, em português), campanha on-line que reuniu testemunhos de mulheres vítimas de crimes sexuais. Encabeçado por celebridades hollywoodianas, o movimento começou em 2017, após a série de denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, acusado de abusar sexualmente de dezenas de mulheres.

Partindo da origem da expressão, a iniciativa parece legítima. Lucas Liedker chama atenção para outros aspectos que devem ser observados. “É um pouco problemático. Entramos em uma dinâmica de fazer julgamentos com base em um tuíte. Fica todo mundo nesse lugar do tribunal da internet, como se as pessoas estivessem livres de errar. Por outro lado, os ‘canceladores’ podem estar em busca de pertencimento. Para alguns, pode ser uma forma de estar inserido em um grupo ou causa”, pontua.

Na opinião do especialista, essa conduta é pautada pela percepção do público de que “com grandes poderes, há grandes responsabilidades”.

No entanto, ele alerta que nem todos os casos são iguais. “O cancelamento pode ser muito útil e muito positivo para determinar um limite ético do que pode ser feito e dito em sociedade por instituições, governo, igreja e entidades com um poder um pouco mais diluído”, afirma. 

O fenômeno, porém, está cada vez mais personificado e presente na vida de pessoas comuns, com círculos sociais mais restritos. “E aí entram questões de saúde mental, depressão e isolamento”, exemplifica Lucas.

Efeito contrário

Na contramão de profissionais que estudam o fenômeno a longo prazo, o cientista em comportamento humano José Roberto Marques se preocupa com os efeitos evidentes influenciados pela nova cultura.

“São visíveis a curto prazo.  Não estamos mais abertos, dispostos a ouvir e dialogar. Pelo contrário, construímos uma sociedade cada vez mais polarizada,  violenta e com dificuldades de relacionamentos. Isso demonstra uma incapacidade de sair de nós mesmos e irmos ao encontro do outro, o que parece ser uma coisa tão básica das relações humanas”, destaca.

Parte dessa análise está amparada no fato de que, muitas vezes, os objetivos alcançados com o cancelamento podem ser opostos aos pretendidos. “Quem é cancelado também conquista novos seguidores, às vezes, uma legião de fãs que se tornarão contrários ao movimento e às ideias que ele expressa”, conclui Lucas.

 

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