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Autora brasiliense lança obra sobre a solidão das mulheres negras

Após associar o fracasso dos namoros ao racismo, Gabriela Rocha decidiu transformar as desventuras em livro e ampliar debate sobre o tema

atualizado

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Vinícius Santa Rosa/Metrópoles
Gabriela Rocha
1 de 1 Gabriela Rocha - Foto: Vinícius Santa Rosa/Metrópoles

Como muitas mulheres na faixa dos 40 anos, Gabriela Rocha não sabe dizer ao certo quantos romances teve ao longo da vida, mas sobram dedos para contabilizar os relacionamentos sérios. Ela passou anos perguntando para o espelho se tinha dito algo errado ou sido inconveniente no último encontro, até compreender que o fato de nunca ser pedida em namoro poderia ter raízes no preconceito.

Foram tantas desventuras amorosas que a brasiliense resolveu documentá-las no livro Gabyanna Negra e Gorda, lançado em sua cidade natal, na última quarta-feira (24/07/2019), véspera do Dia da Mulher Negra. Uma escolha simbólica, tendo em vista que as aventuras de protagonista envolvem um tema complexo e ainda pouco debatido: a solidão de mulheres negras e que não se encaixam em padrões específicos de beleza.

Embora Gabyanna seja uma personagem, as histórias contadas por ela fazem parte das memórias da autora. Como quando, aos 22, se apaixonou por um rapaz branco e ficou com ele por cerca de seis meses, sempre escondido. Até que um dia o jovem apareceu num churrasco de mãos dadas com uma namorada – loura, magra e “oficial”.

Poderia ter sido apenas um episódio ruim, mas lembranças como essa acompanharam a autora por boa parte de sua vida e se tornaram mais frequentes depois que ela se mudou para o Rio de Janeiro.

“Sempre estudei em escolas particulares e tinha uma boa condição financeira, então meus amigos eram na maioria brancos. Demorei para entender o racismo. Em Brasília, ele tem uma dinâmica diferente. Se você tem dinheiro, você consegue ser inserido de alguma forma. Aos 23 me mudei para o RJ e lá percebi que o que importava era a minha cor. Era comum receber um entregador na minha própria casa e ele pedir para eu chamar a patroa”, recorda.

Ilustração/Airá O Crespo
As experiências de Gabriela foram ilustradas pelo amigo Airá O Crespo

 

“Me apaixono fácil e mergulho fundo”

As frustrações amorosas continuaram na Cidade Maravilhosa, até que uma oportunidade profissional surgiu e ela se mudou para Oslo, na Noruega.  Lá, imaginou que estaria livre do preconceito, o que não aconteceu. “Virei o estereótipo da mulher brasileira, que eles pensam que só quer sexo.”

Na inverno norueguês, com temperaturas entre -3/-4ºC, e ainda sem um núcleo de amizades estabelecido, a brasiliense começou a escrever sobre os romances que teve ao longo da vida. Com ajuda da jornalista Érika Freire e do desenhista carioca Airá O Crespo, ambos seus amigos, ela lançou a obra ilustrada.

Em Gabyanna Negra e Gorda, temas complexos, como solidão e intolerância, são abordados de maneira leve e, na medida do possível, bem-humorada. Aliás, a própria personagem se descreve como alguém que nunca gastou muito tempo sofrendo por amor, nem lamentando adversidades:

“Mesmo tendo o coração partido inúmeras vezes, eu insistia em buscar algo maior e que pudesse funcionar pra mim. Me envolvi tantas vezes. Continuo sozinha e carrego duas características marcantes: o corpo e a cor da minha pele. Estou entre a porcentagem de mulheres negras solitárias, quase condenadas a um celibato forçado. Como mulher persistente, venho tentando furar as estatísticas”, escreve. “Mas tenho um defeito: me apaixono fácil e mergulho fundo diante de um homem alto, de mãos fortes e decidido.”

Reprodução/Arte Airá O Crespo
As memórias de Gabriela são repletas de referências à capital e às aventuras que viveu na cidade. Aos 23, a brasiliense se mudou para o Rio de Janeiro
Catarse e gravidez

“Escrever o livro foi uma catarse. Como se eu precisasse colocar no papel as experiências que vivi para, então, me libertar de vários fantasmas. Os feedbacks têm sido positivos, minha família diz que conheceu uma outra Gabriela no livro. Também recebi relatos de pessoas que não acreditavam nessa hipótese da solidão da mulher negra e, a partir do livro, puderam refletir sobre o tema”, conta.

De fato, o projeto autoral inaugurou uma nova fase na vida de Gabriela. Além da satisfação pessoal de assinar a obra e poder inspirar outras mulheres negras, os ventos começaram a mudar, também, na área afetiva. Seis meses depois de colocar Gabyanna Negra e Gorda à venda, a escritora conheceu o seu atual marido, assim como a experiência de ser amada.

“Aconteceu de uma forma supernatural e parece que ele sempre esteve na minha vida. Diz que sou linda todos os dias e é superparceiro. Tem sido incrível viver este momento, trazê-lo à minha cidade, apresentá-lo aos amigos”, relata.

O casal está junto há um ano. E, em em meio a planos de um futuro em comum, Gabriela teve mais uma grata surpresa: está grávida do seu primeiro filho. “Ainda não sabemos o sexo, mas quero prepará-lo para todas as situações que envolvem ser negro. Se for menina, quero que ela saiba que não está sozinha, que vamos falar sobre esse assunto, tentar mudar e dar visibilidade ao tema. Hoje, muitas mulheres não saem de casa por causa de sua aparência e o problema não é nosso, mas de quem carrega esse preconceito”, pondera.

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Debate

A socióloga brasiliense Bruna Pereira abordou as vivências afetivo-sexuais de mulheres negras em sua tese de doutorado, na Universidade de Brasília (UnB). No estudo, constatou que histórias de vida como a de Gabriela sempre foram compartilhadas por mulheres negras, especialmente àquelas que, por algum outro motivo, não se encaixam em um padrão estético.

Segundo Bruna, um dos grandes obstáculos para superar o problema é a negativa do racismo (e do machismo). “Boa parte dessa ideia de democracia racial está amparada na questão sexual, em que o homem considera a mulher negra uma boa parceira sexual, mas pouco interessante para um relacionamento afetivo”, explica.

“As pessoas dizem que o amor não tem cor, mas isso não é verdade. Ele tem sim. A afetividade é uma construção de vários fatores e um deles é o social. A quem associamos a beleza, a afetividade, o desejo de constituir uma família”.

Nesse contexto, a estudiosa acredita que o ingresso de mulheres negras nas universidades e a possibilidade de debate propiciado pelas redes sociais são  importantes ferramentas de desconstrução. “Estamos vivendo uma nova fase do ativismo negro e isso é muito positivo. É justamente dando voz para homens e mulheres negros, deixando de silenciar temas como esse, no núcleo familiar, nas escolas, que podemos caminhar em direção a uma sociedade menos preconceituosa”, destaca.

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