Poético e confessional, musical põe em cena a vivência de um garoto de 18 anos com o vírus HIV

“Metrópoles” acompanhou os ensaios de “Boa Sorte”, que narra a superação do ator Gabriel Estrëla diante da doença que devasta vidas desde a sua descoberta em 1981

Sérgio Maggio
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Os olhos de Gabriel Estrëla brilham intensamente diante de cada cena do ensaio do musical “Boa Sorte”. Com a visão periférica, é possível vê-los marejando ou rindo. Sim, ele sorri com os olhos, enquanto ouve os intérpretes cantarem o verso “Eis, aqui um vivo”.

Nesse instante, o jovem ator, diretor, dramaturgo e ativista balança discretamente a cabeça, como se estivesse de acordo com a narrativa. Ouve-se o poema-oração Vivo, de Lenine, que compôs cada palavra para todos aqueles que, um dia, ficaram diante da dimensão finita da vida, anunciada, por exemplo, pelo duro resultado do exame HIV positivo.

Do sangue, o mal do soropositivo
E apesar dessas e outras
O vivo afirma, firme e afirmativo
O que mais vale a pena é estar vivo.

Na sala de ensaio, os atores cantam e desfiam o drama que Gabriel Estrëla experimentou aos 18 anos de idade. Hoje, ele está com 23. Diante dessa constatação, é comum se questionar. “Como pode?” Afinal, ele é tão jovem para ser contaminado com o vírus que dizimou, desde a sua descoberta oficial, em 1981, mais de 25 milhões de pessoas no mundo — dados da Organização Mundial de Saúde/OMS.

Lá atrás no tempo, Gabriel também se perguntou sobre o que lhe parecia ser uma fatalidade. Porém, em vez de se ajoelhar diante da sina de vítima, reescreveu a sua história, movido pela gana de viver.

O diretor e o espelho: Gabriel Estrëla vê o ensaio de “Boa Sorte”

Não consigo hoje me dissociar do HIV. Sou eu e o HIV, aqui e agora, falando sobre o vírus para poder alertar tantas outros jovens.

Gabriel Estrëla

Tempo cruel
Quando nasceu em 9 de março de 1992, a pandemia da Aids não carregava mais o estigma de “câncer gay” e era tratada como um mal global. Com a mesma voracidade, bateu à porta de gente do nosso círculo íntimo de vida e apagou estrelas como Henfil, Cazuza, Fred Mercury e Sandra Bréa. Naquela época, o laudo recebido era o da sentença de morte e, em alguns países africanos, a doença estabelecia-se como um implacável holocausto.

Cresci sem essa referência. De repente, estava ali diante do laudo inesperado. Não tive escolhas. A partir dali, a vida tinha que ser eu com o HIV. E só tinha 18 anos, idade em que as pessoas ainda estão experimentando os caminhos.

Gabriel Estrëla

Família especial
É sobre esse ponto de vista que se ergue o musical “Boa Sorte”. Gabriel Estrëla o envolve pela urgência dos dias atuais, sobretudo, por conta do avanço mundial da contaminação do vírus HIV entre jovens gays de 15 a 24 anos. Na obra escrita e dirigida por ele, estão o impacto da descoberta, a necessidade de revelá-la ao núcleo familiar/afetivo e o convício com a rotina médica.

Uma das cenas mais emblemáticas é a revelação do vírus à família. A mãe, Malu Estrëla, tem papel fundamental nessa história autobiográfica, que chega aos palcos do Teatro Eva Herz, nesta quinta-feira (3/12), em curtíssima temporada (até domingo, 6/12).

Sempre tive uma atitude de energia diante de doenças dos meus filhos (fossem quais fossem). No momento dessa revelação, só pensava em como resolver a questão, que médico procurar. Principalmente, como acalmar e proteger Gabriel. O baque veio depois.

Malu Estrëla, mãe
Malu e as crias, Gabriel e Bárbara

 

Descobertas de mãe
Malu se recorda do pânico que ficou quando o filho teve uma infecção de garganta.

Queria colocá-lo numa bolha (risos). Foi quando entendi que Gabriel, desde o começo, tinha assumido o próprio tratamento e sabia  mais sobre o HIV do que eu podia imaginar. Penso que não existe maior realização para uma mãe do que ver o filho reagir diante de uma situação adversa e ainda querer dividir o bem, ajudando outras pessoas.

Malu Estrëla

#EuFaloSobre
A necessidade de falar sobre o vírus veio por meio da arte dramática. Quando escreveu o primeiro tratamento, em 2013, Gabriel o fez como um vômito. Era madrugada e ali, em duas horas, esboçou a experiência de trazer a público a vida com o vírus. Fez uma montagem para a Universidade de Brasília (UnB) e ganhou força para realizar o salto que o tornaria protagonista.

Em setembro de 2014, ele assumiu publicamente o desejo de militar sobre a causa. Hoje, em torno do musical, administra a campanha #EuFaloSobre, que ajuda a combater os estigmas da doença por meio da sua melhor forma de prevenção: a informação.

Viajo pelo país fazendo palestras e tudo que aprendo de alguma forma ajudou a reescrever o musical. É autobiográfico, mas é também cheio de referências a esse aprendizado diário.

Gabriel Estrëla

Rede de afetos
Poético, o musical se desloca para o campo da superação. Em parte porque a história de Gabriel Estrëla é cercada de apoios e afetos. Essa rede e o rigor com que cuida do vírus o fizeram ter, hoje, uma saúde sob controle, com a carga viral indetectável em seu sistema imunológico.

Renata Bittencourt e Alexandre Adas: a mãe e o médico

É surpreendente porque se trata de uma história de exceção. Gabriel é cercado de amor por todos os lados. Tem uma família incrível e amigos que o amam

Renata Bittencourt, atriz que vive Malu

Atores-ativistas

Além de Renata, os atores Gabriel Neves, Alexandre Adas, Thiago Ramos e Luisa Caetano passaram os últimos dois meses mergulhados nos ensaios do musical. Integrou o processo criativo uma série de oficinas sobre o tema.

Outro dia, corrigi, na hora, um amigo que se referia a uma pessoa com HIV como aidético.

Gabriel Neves, o protagonista

Essa prontidão está a ponta da língua de todos, que assumiram o discurso de falar sem medo sobre o HIV.

Vejo que, ao longo do processo criativo, houve uma desarticulação dos estigmas e o entendimento de que a causa é maior que a realização da peça teatral.

Luisa Caetano, atriz que vive a irmã Bárbara

Em cena, os atores estão acompanhados por Caio Antunes (violão); Fernando Bastos (piano) e Marília Nóbrega (violoncelo).

Boa Sorte
De 3 a 6 de dezembro. Local: Teatro Eva Herz (Shopping Iguatemi). Horários: Quinta e sexta, às 19h30; sábado, às 20h30; e domingo, às 18h. Ingresso: R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia-entrada). Não recomendado para menores de 14 anos. Informações: 2109-2700.

.Clique aqui para saber mais sobre o Projeto Boa Sorte.

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