Matriarca do candomblé do DF, Mãe Railda de Oxum profetiza: “Lula é filho de Xangô. Homem forte. Difícil de ser derrubado”

Com filhos de santo espalhados pelo mundo, a baiana de 78 anos de idade e 56 de sacerdócio vendeu o terreiro e mora numa confortável casa em Valparaíso, onde joga búzios e aguarda a visita do ex-presidente para comer uma rabada com pirão

Sérgio Maggio
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Acomodada como uma rainha, Mãe Railda de Oxum pede para que o filho de santo Fausto procure, entre os seus guardados, um envelope cor de rosa. Estamos em sua nova moradia, uma espaçosa casa em Valparaíso, onde mora há dez meses desde que se desfez do terreiro de candomblé de 15 mil metros quadrados. Na varanda, cercada de vasos de plantas por todo lado, ela vasculha a memória para montar, como um quebra-cabeça, a trajetória que a tornou a mais importante e respeitada matriarca negra do Distrito Federal.

Foi tudo obra de Xangô. Ele que me fez assim

Mãe Railda de Oxum

Quando o envelope chega às mãos cobertas de anéis, Mãe Railda abre um sorriso de felicidade. Tira cuidadosamente as fotografias. Uma por uma. Em todas, está ao lado do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa cerimônia governamental de exaltação aos valores afro-brasileiros.

Diante da recordação, os olhos brilham, a fala fica mansa, levemente doce. Nas imagens, uma sequência de afetos. Em meia dúzia dos retratos, o chefe da nação discursa ao microfone enquanto a mãe de santo enxuga o suor do rosto. O carinho brotou à primeira vista, quando foi incumbida de presenteá-lo, alguns anos antes, com um atabaque.

Lula é filho de Xangô. Homem forte. Difícil de ser derrubado

Mãe Railda de Oxum

Agora, a amiga o espera em casa a qualquer momento. Ele acenou para uma visita. Quer recepcioná-lo como um rei. Vai cozinhar um dos seus pratos preferidos: rabada com pirão. Oxum vaidosa, Mãe Railda lança os fragmentos de sua história e a gente se encanta. Coberta de pulseiras, guias e anéis, vira uma menina faladeira de voz vibrante que faz o tempo se livrar do relógio. De sua casa, ora para que o céu se ilumine e o país volte a prosperar.

Dei a presidenta Dilma Rousseff, na cerimônia de posse do primeiro mandato, um cordão de ouro com um chocalho de cascavel de dez anéis. Ela me perguntou como e quando deveria usá-lo. Falei que era bom colocar sempre porque dali em diante estaria rodeada de cobras

Mãe Railda de Oxum

Dez quilos de quiabo
A fama e a importância de Mãe Railda correm o mundo. Mesmo sem realizar os festejos do candomblé, o telefone não para de tocar. Quem atende é a filha de santo Laura, a felicidade em pessoa. É gente de todo canto querendo que a matriarca jogue os búzios. O dia de quarta-feira, quando a equipe do Metrópoles a visitou, é sagrado. O povo vem de longe comer o amalá de Xangô, que adaptado para a culinária popular ganhou o nome de caruru (aquele miudinho de quiabos, gengibre, camarão seco, amendoim e azeite de dendê). A comida de santo é posta à mesa e servida com acaçá (bolinho de milho branco) e um pirão de derreter à boca. O perfume do dendê exala pela casa. Até algumas vizinhas evangélicas não resistem ao manjar dos deuses.

Ah, meu filho, perdi a conta de quantos quiabos eu já cortei nessa vida. A cada quarta-feira, são 10kg e isso faz mais de 50 anos

Mãe Railda de Oxum

Xangô, o orixá da justiça, desmanchou o namoro da menina baiana Railda, criada no Rio e vinda para Brasília em 1962. O aviso veio no jogo de búzios aberto pela mais famosa das ialorixás que o Brasil reverenciou, Mãe Menininha do Gantois. Na época, a consulente estava atarantada com a possibilidade de liderar o candomblé na terra sonhada por Dom Bosco. Durante a crise de responsabilidade, fugiu para a capital baiana. De nada adiantou. Pela voz de Mãe Menininha, Xangô foi enfático. Ordenou que voltasse para Brasília para ajudar aquele povo precisado. Se obedecesse, seria rainha, teria fama e respeito. Mãe Railda não pensou duas vezes. Com Xangô, não se brinca.

Xangô não quis que eu me casasse. Estava com enxoval pronto, Então, estou aqui com 78 anos, virgem e feliz. Ele me deu o que um marido não me proporcionaria. Olha o tamanho desta casa e o carinho dos filhos espalhados pelo mundo

Mãe Railda de Oxum

A venda do terreiro
Não foi fácil sair do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá — Ilê Oxum. Quase meio século depois, Mãe Railda teve que aceitar as trágicas mudanças do tempo. De repente, o entorno da roça tinha virado ponto de encontro de traficantes. Chegaram a invadir o espaço sagrado. O quarto reservado para Exú, orixá que abre os caminhos, foi violado. Roubaram símbolos dos ritos. A segurança pessoal ficou por um fio. A polícia chegou a recomendar que ela vivesse de porta trancada. Havia ainda um grupo de evangélicos radicais que passou a se aglomerar na entrada da casa. Eles colocavam baldes de sal e oravam para que as portas se fechassem.

Não foi fácil vender. Tive que ir para a África pedir ajuda. Os orixás não queriam sair. Na Nigéria, fui negociar com Xangô. Depois de uma peleja, ele aceitou

Mãe Railda de Oxum

Quando vendeu o terreiro, havia um processo avançado de tombamento do espaço pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional). Mãe Railda pediu para arquivar tudo. Hoje, o local tem outra destinação: um condomínio popular.

Amigo especialíssimo
Em meio a tantos fragmentos de memória, Mãe Railda traz à mente o tempo em que trabalhou no Hospital de Base como atendente de enfermagem. Recorda-se de um colega especialíssimo. Ney de Souza Pereira, que se tornaria, anos depois, Ney Matogrosso.

Lembro-me dele fazendo os prontuários. Acho que não passava pela cabeça de ninguém que se tornaria esse artista grandioso

Mãe Railda de Oxum
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