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Bailarino que dançou para transeuntes do Setor Comercial Sul morre em Alagoas

Coreógrafo e professor Jorge Schutze participou da Mostra XYZ e encantou espectadores com o trabalho “Despacho”. Polícia suspeita de latrocínio

atualizado

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Todo de azul, a cor de sua arte, o bailarino Jorge Schutze, 53 anos, chegou à frente do movimentado ponto de ônibus do Pátio Brasil, observou os passageiros à espera do ônibus, escolheu um deles, aproximou-se e fez uma pergunta quase ao pé do ouvido: “Posso dançar para você?”

As pessoas ficavam desconfortáveis, surpresas e muitas acenavam a cabeça positivamente. O sim era suficiente para que ele rodopiasse por entre o corpo do interlocutor, movimentando-se tão poeticamente, que era impossível não parar tudo para vê-lo em sua performance, batizada de “Despacho”, e integrante da Mostra de Dança XYZ, que encerrou a sua programação, no último domingo.

Na terça-feira, a polícia de Alagoas anunciou a morte de Jorge Schutze por latrocínio (roubo seguido de morte), abrindo uma forte comoção tanto em Maceió, onde desenvolvia um importante trabalho (com o grupo Cia. Ltda) de arte-educação, quanto em Brasília, território onde fez a sua última dança. Em seguida, o Instituto Médico Legal divulgou o laudo de infarto agudo do miocárdio. O corpo de Jorge apresentava marcas de estrangulamento no pescoço, havia sangue no local e e pertences dele desapareceram. O que torna o caso confuso.

Há uma dança invisível ecoando no Setor Comercial Sul, de Brasília. Há um homem de azul que dança invisível ainda naquelas ruas. Ele gira em azul. E essa dança hoje corre por toda a cidade até chegar a mim

Roberto Dagô, ator e bailarino

Dança-oferenda
A emoção de Roberto Dagô, talvez, esteja ainda em todos que foram presenteados pela dança de Jorge Schutze. Ao lançar o inesperado convite aos transeuntes, o bailarino oferecia não só corpo, mas toda a sua partitura de movimentos colecionados em trajetória artística. A sua dança era como uma oferenda. Assim, ele estabelecia, a partir do nível de resistência do interlocutor, um jogo singular de construção a dois. Agia num tempo em que não era o do relógio. Formava laços que seduziam, envolviam, emocionavam, estranhavam ou repulsavam.

Jorge Schutze não é o estereótipo do bailarino, nem do ator. É um homem corajoso. Salta no precipício da incomunicabilidade e consegue provocar reações, estabelecer relações. Interfere no cotidiano com delicada firmeza, com suave presença, com amorosa provocação. O perigo da agressão é eminentemente. Olhares apreensivos, ameaçadores, policialescos são afastados por sua tranquila energia, sua sensibilidade

João Antônio, ator e diretor

Assim, Jorge Schutze se lançava sem rede de segurança diante do outro. Não importava o papel social de cada um: uma vendedora de guloseimas, um policial ou um evangélico que distribuía panfletos de fé. O que o bailarino procurava era instigar o estranho a ocupar um salão, onde se podia cochichar ao pé de ouvido, como nos bailes românticos, aqueles em que se dançavam a dois, recortando o universo num feliz fragmento de vida.

Paratodos
Tirar alguém para dançar é um ato de coragem, de ímpeto, de saída para um campo relacional que pode ser sedutor ou assustador. Jorge Schutze estabelecia relações em torno de seu partner. Caminhava por entre obstáculos que os distanciam, como mesas, balcão de roupas em liquidação e postes. Dançava para quem estava parado, para quem andava, para quem o via da janela da repartição, para quem passava devagar dirigindo o carro.

RG nos movimentos
Foi emocionante vê-lo, como um menino feliz, a brincar com o corpo, que se quebrava, se desmoronava no chão, se desenrolava no asfalto. O empenho para que a sua dança virasse a dança a dois, que se estabelecesse como um vínculo possível na multidão de solitários. Ao propor essa dança, Jorge Schutze apontava para o vasto mundo que habitava em si.

Era para Jorge dançar durante uma hora e ele dançou quase duas e, quando parou, disse-me que poderia continuar dançando ainda mais. Seu semblante e seu corpo eram os de um menino

Luciana Lara, coreógrafa da Anti Status Quo

A última dança de Jorge Schutze em Brasília ficará marcada em nossa memória. 

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