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Manchas no papel e armadilhas de Virgílio Neto

Na exposição Claro Enigma, artista mostra obras realizadas durante sua passagem por São Paulo

atualizado

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto-de-abre2 - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Virgílio Neto está vivendo e trabalhando na cidade de São Paulo há um ano e meio, tempo que levou para se localizar na megalópole e montar o ateliê Breu, ao lado dos amigos Pedro Ivo Verçosa e Júlio Lapagesse, com quem já convivera cá em Brasília.

A primeira diferença entre Brasília e São Paulo revelou-se de imediato para os olhos de Virgílio. Tem a ver com a escala do urbanismo paulistano: vertical e vertiginoso. Aquilo que o artista chama de uma “paisagem de chão”. Aquela sensação constante de estar se espremendo pelas frestas da grande cidade. “Uma falta de amplitude, uma ausência de horizonte que te obriga a andar sempre olhando para baixo, para o chão, para os cantos, para as coisas pequenas que estão ao seu alcance.”

Talvez por isso, assim que voltou para Brasília, para aqui montar sua primeira exposição contemplando esta etapa paulistana de sua carreira, e tão logo desceu as escadas do bloco comercial da 202 Norte que levam à Referência Galeria de Arte, Virgílio sentiu a necessidade de escolher uma das paredes da sala. Foi apenas a partir dessa decisão inicial que ele conseguiu se encontrar e, então, pensar na disposição espacial dos trabalhos trazidos de São Paulo.

Escolheu uma das paredes laterais da galeria para instalar a obra de maior escala produzida nessa safra. Um desenho formado por nove papéis, políptico que ele durante todo o processo vinha chamando de Montanha, antes de baixar um bocadinho a bola, trazer tudo um pouco mais para perto de si e devolver sua obra ao alcance de sua mão – batizando-a definitivamente como Monte.

“A montanha virou monte”, ele sorri. “Pode ser o monte do Corcovado, mas pode ser apenas um monte de açúcar.”

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“A paisagem traz algo tranquilizador”, diz Virgílio Neto enquanto ergue seu Monte, do chão até a parede da Referência. Aberta há um par de semanas, a exposição Claro Enigma segue em cartaz até 29 de setembro.

Antes de falar detidamente à coluna Plástica sobre os desenhos que compõem Claro Enigma, Virgílio prefere apresentar o poema que escreveu e que o visitante pode encontrar na galeria como texto para o folheto da exposição. Soa mesmo natural que, numa mostra cujo título foi emprestado de Carlos Drummond de Andrade, a linguagem verbal abra-se como uma instância de revelação.

No seu poema, Virgílio Neto distingue quatro categorias de poetas: do vento, da água, do fogo e os últimos, que lidam com a terra – e também com a carne, a pedra e o chão – e “que fazem da matéria seu lugar de partida e morada”. Como ele próprio, aliás…

“Esse texto surgiu quase como um estalo. Sou taurino e muito ligado na mitologia do signo. Comecei a pensar nos elementos”, lembra Virgílio, que namorava uma canceriana, Isadora Dalle, uma artista da água, que ele enxerga muito ligada à emoção. “Os meus trabalhos são muito próximos à materialidade, à textura. As cores funcionam como sabores numa sinestesia. Me dá vontade de comer essas cores. Então, escrevi o texto como faço os meus desenhos. Foi um processo de muito tempo, de maturação, de lapidação, em que as coisas não aparecem em linha reta, elas apenas te dão sinais.”

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Os trabalhos estão muito frescos, mui misteriosos para Virgílio Neto. Ele conta ainda não ter tido tempo de se afastar deles, de tão recentes. Também passa por aí o título da mostra. Quando lido em Drummond, soou-lhe oportuno e significativo: Claro Enigma.

“O processo de criação é muito curioso. Eu me pego pensando onde certas coisas aparecem. Há algumas questões racionais, materiais, técnicas. Algumas regrinhas que a gente mesmo cria e, então, sobre elas, há uma espécie de entendimento e domínio. Por exemplo, a intenção de enxugar os elementos com que estou trabalhando. Isso foi pensado. Mas isso é também jogar um jogo e vai trazer algumas surpresas também. Porque há uma parte que é descontrole.”

Virgílio enxerga em seus trabalhos uma nitidez “quase exagerada”, no sentido de serem tecnicamente aparentados do desenho científico. Mas, quando surgem no papel, esses aspectos logo tomam outra forma, não se mantêm apenas como pura representação. Esse jogo a que se refere o autor, então – e não apenas para o espectador –, é como uma brincadeira de revelar e esconder.

“Esta exposição é sobre as possibilidades que um lápis duro te dá, que um lápis mais mole te dá, que um pastel encontrando um guache te dá. Há um interesse pelos materiais”, explica Virgílio, poeta da terra, agarrando-se aos elementos mais sólidos de seu labor. “Essas formas, esses objetos desenhados, entram quase como uma desculpa para poder explorar isso.”

“Dizer que há nisso um gesto talvez seja uma palavra forte, pois meu gesto é muito pequeno, seria apenas no punho. Mas gosto de fazer armadilhas, criar manchas no papel, numa ordem do que seria um expressionismo, se você pensar em termos de expressionismo em trabalhos tão pequenos. Então, fico navegando nesses lugares, porque ao mesmo tempo tenho muito forte um desenho associado à ilustração, ao caderno, ao grafismo, ao que você vê na rua, um desenho em que a finalidade dele não é propriamente estética, mas tem uma função a cumprir, como o desenho em um livro de medicina, um desenho que tem certo e errado. Gosto de pensar nisso.”

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Na ordem das decisões conscientes, daquelas que ele consegue explicar e até mesmo apontar o momento quando foram tomadas, Virgílio Neto traz para essa exposição aquilo que chama de “enxugar os elementos”. Para quem conheceu seus trabalhos anteriores, apresentados em mostras como Ausente Presente (2013), na Galeria Fayga Ostrower, da Funarte, a diferença é notável. Aqueles remetiam a uma poética de viajante, um caderno de anotações, no qual processo e obra meio que se confundiam numa sobreposição de elementos.

“Eu vivi esse tipo de desenho mais espacial, de ocupação na página, que eu chamo de jam session, em que existe um fluxo, um descompromisso. Esse tipo de composição refletia uma série de descobertas de materiais e possibilidades, com muitos assuntos e, ao mesmo tempo, o fracasso em contemplar o todo. Já estes novos trabalhos vêm em paralelo com uma mudança de vida, uma questão de amadurecimento. Meus últimos desenhos têm uma espécie de aprofundamento maior e uma espécie de sobriedade. Um silêncio maior.”

Isso tem a ver com ter sido uma produção de ateliê, acredita Virgílio, feita depois de ele ter se assentado em São Paulo. Ele já tinha passado por aquele frenesi de mudança de cidade e estava absorvendo sua nova rotina. Viajando pouco, pôde trabalhar todo dia no mesmo lugar. No caso, um galpão no bairro da Barra Funda, próximo à região de Marechal Deodoro, não muito distante do Elevado Costa e Silva, o infame Minhocão, aquele risco de concreto e automóveis que corta o centro de São Paulo a uma altura média de cinco, seis metros do chão.

“Esses desenhos têm a ver com esse lugar, têm a ver com a paisagem de chão de São Paulo. Na região onde vivo, a coisa que mais me espantou foi a sujeira, mesmo. Quando você está andando perto do Minhocão e cai aquela gota lá do alto, você não sabe o que é aquele negócio.”

Há uma feira na rua em que mora Virgílio Neto. Ao fim do dia, os lixos acumulados no chão, remexidos pelos moradores da rua, revelam cheiros e aspectos visuais nada agradáveis. Espantado com a sujeira ao redor, Virgílio lembrou-se de um poema de Manoel de Barros.

O osso da ostra
A noite da ostra
Eis um material de poesia

(Matéria, 1970)

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Desenho de Virgílio Neto sobre a imagem refletida de seu autor

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