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Juntando as peças do quebra-cabeças chamado Athos Bulcão

Centenário do artista plástico é comemorado com exposição no Centro Cultural Banco do Brasil

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Raros artistas estão tão ligados a uma cidade quanto Athos Bulcão a Brasília. Sua obra não se limitou ao pensamento estético que antecedeu à criação da nova capital e não se revelou apenas na escala monumental própria ao centro do poder. Athos Bulcão trabalhou ao alcance da mão, entre os pilotis, entre as árvores.

E justamente esse era – num paradoxo – o maior desafio que espreitava os curadores Marília Panitz e André Severo para a mostra retrospectiva que esta semana foi aberta no Centro Cultural Banco do Brasil.

“100 Anos de Athos Bulcão” marca o centenário do mestre, a ser comemorado em julho. Se um dos objetivos da mostra é celebrar sua obra, o outro objetivo, e eis o ponto complicado para os curadores, seria reapresentar a nós um artista que nos é tão próximo.

A exposição parte de Brasília para seguir por Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, terra natal de Athos. E mesmo os brasilienses têm muito a descobrir numa mostra que vai para além dos azulejos de Athos Bulcão, o aspecto mais celebrado de seu legado, e tenta entender o pensamento que antecipa, perpassa e une diferentes processos artísticos.

Uma mostra que revela um inventor muito mais variado – e muito mais aberto – do que o cartão postal pode sugerir.

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Embora esta seja uma retrospectiva, a exposição não segue rigorosa linha cronológica. Tal abordagem não se sustentaria, defendem os curadores, diante de um artista que trabalhou em paralelo com diferentes materiais ao longo de sete, oito décadas de produção. De toda forma, tudo começa no CCBB, a visitação começa como num ateliê de pintura.

A trajetória inicial de Athos Bulcão (1918-2008), lembra Marília Panitz, sendo característica do percurso de um pintor brasileiro iniciante em meados dos anos 1930. Quando Athos largou os estudos de medicina para assumir sua arte. Um encontro fortuito, no Rio, com o gaúcho Carlos Scliar dispararia poderoso efeito dominó. Scliar o colocaria em contato com Burle Marx. Ao frequentar o estúdio de Burle Marx, Athos se tornaria próximo a Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Dali trabalharia como assistente de Candido Portinari, já sob intermédio de Niemeyer, para auxiliar nas pinturas dos azulejos da Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, Belo Horizonte. Foi a primeira experiência de Athos com azulejaria.

Então a galeria principal do CCBB, com seu formato circular, traz trabalhos em pintura produzidos em diferentes fases da vida de Athos Bulcão. Obras alimentadas por duas de suas principais influências: a religião e o carnaval.

De um lado, a temática religiosa. Uma vertente finamente materializada nos blocos de mármore da “Vida de Nossa Senhora” que estão na Catedral de Brasília. Aqui na mostra são apresentadas em reproduções. Do lado oposto da sala, a temática profana. Um imaginário recorrente para Athos, na série informal “Carnaval”, que se apegava às lembranças da infância nos bloquinhos de rua do Rio de Janeiro.

A notar que, não obstante a disparidade dos temas, o carnaval de Athos é tão sóbrio quanto sua obra sacra. Como se ambos partilhassem de uma mesma liturgia. A mesma organização espacial, as mesmas formas das figuras, a mesma paleta de cores. Marília Panitz, em suas pesquisas, atribuiu essas semelhanças à vinculação de Athos Bulcão a um aprendizado de cor e de composição que o levou ao primeiro renascimento italiano, século XIV, época de mestres como Giotto.

(O francês Henri Matisse e o suíço Paul Klee, dois gênios que ajudaram a forjar a pintura moderna do século XX, também estão entre as influências de Athos Bulcão.)

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No fundo desta galeria circular, sob uma luz um pouco mais tênue, se abre uma coleção de fotomontagens realizada entre 1952 e 1955. Algo que, nas palavras do próprio Athos Bulcão, não seria nem fotografia, nem teatro, nem cinema. Ele tinha voltado de uma temporada em Paris e a influência do surrealismo estava evidente.

André Severo admite que, mesmo para ele, entusiasta da obra de Athos Bulcão, foi difícil entender o que se passa nestas colagens. Para Marília Panitz, trata-se de uma narrativa de imagens sobrepostas numa única imagem – e ao dizer isso ela empresta um conceito do cineasta russo Serguei Eisenstein.

A vantagem de uma mostra retrospectiva como esta, reunindo três centenas de itens – recolhidos entre coleções particulares, instituições públicas e o acervo da Fundação Athos Bulcão – é que a exposição passa a funcionar como o conjunto de peças de um quebra-cabeças gigante que, por ficarem mais próximas umas das outras, começam a sugerir diferentes encaixes.

Severo, ao longo de seu próprio trabalho nessa montagem, passou a enxergar nestas colagens, que antes lhe eram tão alheias, aspectos mais familiares, lembrando as colaborações de Athos Bulcão para a revista de arte e arquitetura “Módulo”, que circulou entre 1955 e 1965 e hoje se trata de relíquia para colecionadores – e como tal está exibida sob formato fac-símile em vitrines.

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Relíquias e fetiches, como num antigo gabinete de curiosidades. Uma coleção sem fim. Num dos núcleos desta mostra, reunindo máscaras policromadas, a intenção declarada de Marília Panitz & Eduardo Severo é a de juntar o maior número de peças possíveis.

Como o próprio Musée de L’Homme, o museu etnográfico do Trocadero, em Paris, cuja coleção de máscaras ancestrais feitas por povos primitivos causou em Athos Bulcão tamanha impressão que ele passou décadas e décadas repetindo o mesmo gesto com diferentes materiais.

Um trabalho obsessivo e compulsivo que se espalha por longo tempo e por tantos materiais que, como nota Severo, de certa forma, o que pode ter surgido como uma blague ou uma imitação acabou assumindo contornos de outras proporções, acabou se impondo como uma saga particular – ou, se preferir, uma etnografia individual de um mesmo homem, de um mesmo artista através dos tempos.

Por isso, os curadores fizeram questão de mostrar todas as 27 máscaras que tinham conseguido amealhar até o momento da abertura da exposição. Na última semana de montagem, ainda estava chegando peça. Outras não chegaram a tempo, mas já estão prometidas e previstas para entrarem nas próximas montagens.

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Vale traçar novamente o percurso até aqui. A figura humana, que se forma com um naturalismo e uma austeridade herdados de Giotto, logo à entrada da galeria principal do CCBB, vai assumindo pequenas liberdades nas fantasias dos carnavais cariocas até se tornar francamente fantástica, quiçá alegórica, em colagens preto e branco emprestadas do surrealismo.

Então, quando o visitante descer as escadas da galeria e chegar à sala inferior, as máscaras de Athos Bulcão desfiguram o rosto humano de mil maneiras. E ali adiante, na mesma parede em que as máscaras se sucedem como numa instalação, os rostos vão se tornando outras coisas – e o abstracionismo pipoca em telas dos anos 1980 e 1990.

Seus títulos ora remetem a jardins floridos, ora a estrelas pulsantes – tem até um submarino amarelo de apelo pop – de certa forma servindo como meras chancelas verbais para um interesse que já está evidente na pintura.

O que se impõe em cada uma dessas telas é um absoluto controle formal, mesmo que o gesto da pincelada se adivinhe leve, ligeiro, quase displicente. Há uma disposição de elementos que deixa perceber um pensamento por trás, quase que esquadrinhado numa planta baixa. Ora…

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Para André Severo, o grande barato de poder ter participado tão ativamente desta retrospectiva foi entender o processo de Athos Bulcão. De fato. Se a primeira galeria funciona como o ateliê do pintor. A segunda galeria seria uma oficina de azulejos.

“Podemos perceber a passagem do tempo”, aponta Marília Panitz, debruçando-se sobre a bancada que traz os instrumentos do trabalho diário – os primeiros desenhos eram em guache, depois cada módulo passou a ser tirado em serigrafia.

Tanto quanto os próprios azulejos, fazem parte da mostra os projetos desenhados em grafite sobre papel vegetal. Alguns foram pintados com lápis de cor. Em muitos ficam bem claras, mesmo hoje, as intenções de Athos Bulcão. Para o estudo dos painéis do Sambódromo do Rio de Janeiro, por exemplo, ele foi bem expressivo ao fazer entender que não queria que as formas dos azulejos fechassem um círculo.

“O círculo fecharia a forma e interromperia o movimento”, explica Marília Panitz. Nos azulejos de Athos Bulcão há infinitos segmentos de círculos, mas jamais um círculo completo. Simples detalhe que – paciência – já joga por terra uma bonita lenda urbana candanga.

“Há essa lenda de que o Athos não se importava muito com a disposição dos azulejos, não seguia planos fixos, deixava que os pedreiros encaixassem como achassem melhor, numa espécie de parceria criativa, o que seria muito bonito, muito romântico”, sorri André Severo.

“Dentro da pesquisa, notei que realmente, em determinados projetos, havia essa abertura. Mas ela acontecia sempre dentro de normas anteriores. O que também é bonito. Porque, numa estrutura de azulejos, normalmente há um padrão de desenhos que assim que você entende, pronto: a estrutura toda se releva como algo fechado. No Athos, esse ponto de indefinição, esse círculo que jamais se fecha, é justamente o ponto em que ele produz uma linguagem. De uma forma que apenas a grande obra de arte consegue. Diante de um painel dele, você nunca pode dizer exatamente do que se trata, nunca pode antecipar o próximo movimento. Sempre há uma quebra que traz um ponto de suspensão.”

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Como os azulejos de Athos Bulcão são constantes na paisagem brasiliense, há o risco de o artista sempre ser visto a partir de uma mesma referência, de um mesmo contexto – aquele sujeito que trabalhou com o Oscar Niemeyer, com o João Filgueiras. Sua obra então ficaria refém de uma espécie de determinismo biográfico.

Marília Panitz está ciente desse risco. “Pensar no trabalho do Athos apenas no aspecto da arte e da arquitetura seria bastante limitador…” Até por isso, ao ser convidada pela Fundação Athos Bulcão para assumir a curadoria de uma mostra que celebraria o centenário de um dos pais fundadores da arte brasiliense, Marília de imediato pensou em dividir o trabalho com alguém de fora.

Pensou em alguém que conhecesse Athos Bulcão, se importasse com seu trabalho em Brasília, claro, mas que não tivesse uma visão tão condicionada quanto a dela própria – que mora na capital federal desde os anos 1980, com passagens pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília e pela direção do Museu de Arte de Brasília.

Marília pensou no seu conterrâneo, o gaúcho André Severo, artista visual que vive e trabalha em Porto Alegre, e que participou como co-curador da Bienal de São Paulo em 2012 e da representação brasileira na Bienal de Veneza de 2013.

“É muito raro um artista estar tão ligado a uma cidade como Athos a Brasília. Mas esse risco de reduzi-lo a um contexto é um nó que cabe a nós desatar. Não tem como pensar em Athos como uma figura menor e auxiliar à arquitetura”, analisa André Severo. “Porque aqui em Brasília está de fato realizado o que em outros projetos modernos não foi realizado, o que em outros projetos modernos se limitou a acessório à arquitetura. Aqui a arte parte da arquitetura e se torna outra coisa, se torna viva por si só.”

Para mostrar o quão viva está a arte de Athos Bulcão, cem anos após seu nascimento, esta mostra retrospectiva em cartaz no CCBB traz de roldão uma outra mostra, uma segunda: “Rastros de Athos”. Trata-se de uma seleta de artistas brasilienses que foram diretamente ou indiretamente influenciados pelo mestre. De Ralph Gehre a Galeno, de Evandro Salles a Andréa Campos de Sá. Este será o tema da coluna “Plástica” do próximo sábado.

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Painel em azulejos da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima, Brasília (1957)

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