metropoles.com

Iracema Barbosa: as camadas de sedimentos e a poética do sensível

Mostra “Costurando Sombras”, em cartaz na CAL, reúne desenhos que revelam herança artística da dança, do cinema e da geografia

atualizado

Compartilhar notícia

Bernardo Scartezini/Metrópoles
foto-de-abre3
1 de 1 foto-de-abre3 - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Antes de se dedicar às artes plásticas, Iracema Barbosa se formou em Geografia e foi professora de Geomorfologia do Quaternário. Ao visitar a exposição que ela apresenta na Casa da Cultura da América Latina (CAL) até 12 de janeiro, levar em conta esse dado biográfico pode ser revelador.

Afinal, o período geológico chamado de Quaternário, iniciado há cousa de 2,6 milhões de anos, foi marcado por quatro largas eras glaciais que, uma após a outra, modificaram um bocado a crosta terrestre, erodindo e sedimentando rochas, criando relevos e cursos fluviais.

Foi também no Quaternário que surgiu a espécie humana. Há apenas 1,8 milhão de anos.

Iracema Barbosa abraçou as artes plásticas de forma relativamente tardia. Entrou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em seu Rio de Janeiro natal, aos 28 anos de idade. Antes disso, na adolescência, tinha vivido como bailarina profissional na Europa. Ao voltar para o Brasil, primeiro se embrenhou pelo mestrado em Geografia e depois trabalhou como assistente de direção em cinema, antes de chegar às artes plásticas.

Como uma bailarina, Iracema se mantém atenta à dimensão física do espaço em que se movimenta. Como uma cineasta, trabalha esse movimento mesmo em imagens fixas. Como uma mestre em geografia, compreende a natureza do movimento a partir dos materiais que desloca.

0

“Costurando Sombras”, a mostra individual de Iracema Barbosa em cartaz na CAL, pode ser entendida – ela diz – como uma experiência no tempo e no espaço. Para a própria artista, definitivamente, trata-se de uma série de exercícios sensoriais. “Tenho uma relação muito tátil, corpórea, sensível, erótica com os materiais”, ela define.

A mostra foi pensada por Iracema e pela curadora Patrícia Corrêa especialmente para aquela galeria no segundo andar do Edifício Anápolis. Um espaço expositivo não muito convencional, à medida em que foi conquistado graças a derrubadas de paredes, numa arquitetura do improviso que deixou meias-pilastras a delimitarem espaços dentro do espaço, como sombras da engenharia original, como antigas geografias de ocupações anteriores do lugar.

Então, ao longo de cada parede, pensando em módulos expositivos, e também em criar recônditos, Iracema e Patrícia foram selecionando, espalhando e pontuando a extensa produção de desenhos que a artista vem desenvolvendo há quase duas décadas.

Alguns desses trabalhos nunca antes tinham sido exibidos, e muitos deles remontam à mais recente temporada de Iracema na França, quando completou seu estudo em artes visuais. Caso de “Angoises” (“Angústias”, 2004), série de desenhos em tinta acrílica sobre papel.

0

Trata-se de uma série em que a Iracema interessa trabalhar as noções de equilíbrio e desequilíbrio. Alguns dos originais de “Angoises” foram agrupados como se formando polípticos especialmente para esta exposição.

E outros já tinham sido registrados em vídeo, lá na França, para dar origem à instalação “Propagation” (“Propagação”, 2006), aqui apresentada num trecho mais escuro da galeria.

Essas duas formas de se apresentar desenhos de origem semelhante parecem aqui deixar evidente os fundamentos e as peculiaridades de uma experiência estética. O vídeo segue uma velocidade de visualização já definida anteriormente, estabelecida na hora de sua edição, e segue uma narrativa visual também já estruturada de antemão. Enquanto os desenhos pregados na parede se oferecem ao olhar do espectador de forma mais episódica e mais plural, cabendo à pessoa saltar de grupos de imagens em grupo de imagens, ordenando e reordenando ali na hora um encadeamento mental com paralelismos e oposições.

“Visualmente, o trabalho tem essa coisa ao mesmo tempo construtiva e desconstrutiva, no sentido do sensível”, analisa Iracema Barbosa. “Tem repetições de formas, mas essas repetições não se dão num aspecto industrial. As formas estão vivas, presentes, pulsantes.”

0

É esse pulso que empresta ritmo aos desenhos e faz desenrolar a exposição num único pensamento. Como uma linha de costura que liga cada elemento num mesmo tecido. Para uma visita à mostra “Costurando Sombras”, esse pulso é essencial.

E muito desse ritmo se deve ao fato de Iracema trabalhar com séries. Mas mesmo quando apresenta peças de grandes formatos, que não necessariamente estruturariam uma série de composições, na hora da montagem da exposição uma rima entre as peças se abre aos olhos.

“A questão do conjunto não é intencional. Essa é uma experiência que tem seu momento no ateliê. Primeiro eu faço e depois eu penso. Não é projetado, no sentido em que não calculo anteriormente fazer tal série de tantos ou tantos trabalhos. Não sou organizada assim. Meu trabalho acontece no caos. E acontece em séries por compulsão minha ao pensar na forma, ao trabalhar na forma. Como um trabalho único não dá conta de responder os problemas que tenho que responder, então faço outro trabalho, e esse dialoga com o anterior e dali apresentam-se novos pontos e assim prossigo até o esgotamento.”

Ou Iracema se esgota fisicamente ou ela esgota seu material de trabalho. Sua recente série em marcenaria, por exemplo, teve que ser interrompida porque já não havia mais madeira no ateliê.

0

Necessário acrescentar: o trabalho de criação para Iracema Barbosa não é apenas a repetição de um gesto. Essa experimentação em ateliê, um exercício necessariamente físico e técnico, vem dar vazão a algo que a antecede – uma cultura intelectual, uma cultura de imagens.

A se tomar “Tempêtes” (2003) como medida. Essa série de desenhos dobra uma esquina da CAL, abrindo-se ao espectador na altura do olhar, uma linha formada por doze papéis, doze diferentes desenhos de uma mesma série.

Iracema ali traça horizontes e define paisagens. O abstrato assim se torna quase palpável. Ela teve como inspiração as tempestades pintadas pelo francês Gustave Courbet (1819-1877). Sim, também teve como antecedente visual as chuvas que, desde menina, ela via se formarem sobre o mar na Baía de Guanabara. Mas Courbet, admite, causou-lhe maior impressão.

“Eu me interesso pelo pensamento da arte. É uma linguagem específica, com a qual me identifico, uma linguagem que trabalha com os materiais, que trabalha com a visualidade. E me interessa a junção entre essa experiência e o que é histórico, aquilo que aprendi, aquilo que faz parte de nossa civilização ocidental. Porque eu não nasci numa aldeia de índios. Nasci na zona sul do Rio de Janeiro, fui criada num meio intelectual, criada num pensamento que vem da Europa.”

0

Professora de disciplinas tanto práticas quanto teóricas no Instituto de Artes da Universidade de Brasília, a ex-bailarina Iracema Barbosa pratica ioga há vinte anos. E também meditação zen. E ainda aikido. Três exercícios orientais que julga necessários para equilibrar tanta cultura artística ocidental – o yin e o yang.

Yoga, meditação e aikido são maneiras, para Iracema, de entender o instante presente, viver o instante presente e não se esquecer, nem pelo intervalo de uma respiração, do espaço que ocupa no mundo.

A arte também.

Compartilhar notícia

Todos os direitos reservados

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?