A civilização brasileira e o rescaldo do Museu Nacional

Desafortunado e inconsequente é este nosso país que, governo após governo, trata de arte e cultura como algo supérfluo

Bernardo Scartezini
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Séculos podem arder numa única noite e assim se perder para as gerações futuras. Escorrendo pelos dedos como pó, num incêndio provocado por um coquetel inflamável de negligência política e desinteresse coletivo.

Um incêndio que pode até ter começado num instante, no estampido dum curto-circuito. Mas que não pode, não deve ser entendido como causado apenas pelo voo desafortunado e inconsequente de um balão vadio, como quis crer o excelentíssimo senhor ministro da Cultura.

Desafortunado e inconsequente é este nosso país que, governo após governo, trata de arte e cultura como algo supérfluo, a ser contingenciado no orçamento, a ser empurrado para a próxima gestão, a ser conduzido em editais da mão para a boca, numa política de varejo que agrada os produtores da ocasião enquanto perde o foco sobre o patrimônio e a preservação.

Porém, como em tantas outras arenas, nesta também o governo vadio que lá está nada mais é do que o reflexo da sociedade que aqui construímos. Neste ano eleitoral, até a noite de domingo (2/9), quando os bombeiros tentavam lidar com as chamas que consumiam o Museu Nacional, quantos candidatos à Presidência da República ou aos governos estaduais tinham se manifestado sobre arte e cultura? Quantos tinham abordado esses temas por vontade própria e preocupação legítima? Quantas vezes tinham sido inquiridos em debates e entrevistas?


Também são parte do problema os veículos de imprensa que, nos últimos vinte anos, enxugaram as redações e dilapidaram seu jornalismo cultural, abrindo mão de continuar sendo instância de crítica e debate para substituir as editorias de Artes & Espetáculos por seções de Entretenimento e agenda de serviços.

No vácuo deixado pela chamada “opinião pública”, campeiam os oportunistas de redes sociais – trolls, robots, doutos comentaristas de portais de notícias, toda a fauna desse admirável mundo novo. No vácuo de ideias e propostas, grassa o anti-intelectualismo.

Postura abertamente assumida por políticos de expressão nacional. O caso mais significativo sendo o de Jair Bolsonaro. Candidato líder nas pesquisas de intenção de voto, ele defende o fim do Ministério da Cultura (como bem tentou Michel Temer ao assumir a Presidência). Exemplo de atitude que, uma vez chancelada pelo líder, passa a ser amplificada por seus seguidores, muitos dos quais recentemente não conseguiram esconder nas redes sociais a satisfação diante do iminente colapso das bolsas Capes para mestrado e doutorado.

São as mesmas pessoas que atacam a liberdade de expressão, atacam as manifestações artísticas e, no limite, conseguem constranger e mesmo interditar iniciativas como a exposição Queermuseu (setembro de 2017) simplesmente por não serem de seu agrado.

Num crescendo de intolerância que já se tornou paranoia política, quem pensa diferente logo passa a ser visto como inimigo. Numa espécie de macarthismo online, tão apropriado à Era Trump, revelou-se ligeiro que Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição responsável pela gestão do Museu Nacional, seria membro do PSOL – e daí todo o sinistro ocorrido logo se explicaria.

Antropólogo e professor da UFRJ, Eduardo Viveiros de Castro concedeu entrevista ao jornal português Público sobre o Museu Nacional, lugar onde passava boa parte de seus dias. Ainda sob o impacto do episódio, comentou sobre a possibilidade de reforma – porque logo se deram mil planos de retomar casa, reconstrui-la de diversas formas, tentativas de se reparar o irreparável.

“A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio”, sugeriu Viveiros de Castro. “Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu, e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da internet – não duvido nada que surjam com essa ideia. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas, apenas com a fachada de pé, para que todos vissem e se lembrassem. Um memorial.”

O Museu Nacional reduzido a uma fornalha serve como perfeita metáfora para as trevas que descem sobre este triste país. Se nada aprendemos com a arte e a história, talvez a fumaça e o fogo nos ensinem. Talvez as ruínas nos ensinem.

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