Três corações acertados pela cultura do machismoConheça o enredo de violência e os personagens do caso ocorrido esta semana em Minas, em que a vigilante Edvania é brutalmente agredida ao tentar ajudar a delegada da Mulher, que apanhava do namorado

20/12 20:47

Mirelle Pinheiro e Daniel Ferreira, enviados especiais a Três Corações (MG)

Três Corações (MG) – No último sábado (17/12), uma cena bárbara de agressão contra uma mulher na cidade de Três Corações, Minas Gerais, chocou os brasileiros. As imagens que rapidamente caíram nas redes sociais mostram um recorte do que ocorreu naquela tarde. Edvania Nayara Ferreira Rezende, 23 anos, fazia a segurança no clube de sua cidade quando foi atacada com um bofetão no rosto, caiu no chão e levou um violento chute na cabeça.

O vídeo é forte e as imagens, revoltantes, mas revelam apenas o desfecho de um processo degradante de violência contra a mulher. Não uma. Todas. Naquele dia, aliás, Edvania não foi a única vítima. Antes de ela ir ao chão, a namorada do agressor já havia apanhado.

Edvania testemunhou tudo. Viu quando Luiz Felipe Neder Silva, 34, descrito pelos moradores da cidade como um cara “problemático” e “esquentadinho”, bateu no rosto de sua namorada. Flagrou quando ele a puxou para dentro do carro pelos cabelos. E atendeu ao pedido de socorro da vítima.

Ana Paula Kich Gontijo, 44, é titular da Delegacia de Mulher da cidade. É ela quem dá voz de prisão para homens violentos que batem em mulheres. Os colegas de trabalho disseram ao Metrópoles que a delegada é uma boa profissional. No sábado, ela apanhou de seu namorado. E não conseguiu impedir que ele machucasse também a mulher que lhe estendeu a mão.

A delegada fugiu da cena do crime, sem ter, talvez, condições psicológicas, físicas ou emocionais para se defender ou proteger Edvania. Em entrevista ao Metrópoles, a vigilante disse que sente raiva da atitude de Ana Paula. Não entende por que ela se esquivou. “Tenho mais raiva dela do que dele”, desabafou.

Mas Ana Paula também é vítima. E esse é um caso emblemático da cultura do machismo, que parece não ser novidade na cidade onde, diariamente, uma média de sete mulheres denunciam seus companheiros à delegada.

Além das duas mulheres, descontrolado, Luiz Felipe ainda agrediu o caminhoneiro Enioberto José de Jesus, que tentou ajudar Edvania. O homem perdeu dois dentes.

Ao explicar o que ocorreu aos repórteres, um amigo do caminhoneiro nos dá, com sua fala simplória, sinais do tamanho do problema que ainda temos de enfrentar.

Escute o relato dele sobre o episódio:

Poucos se mobilizaram

Na cidade mineira, todos comentavam o caso, mas pareciam não se chocar com a ação de Luiz Felipe, que está preso preventivamente por decisão da Justiça. Considerado “brigão”, no dia em que agrediu Edvania, ele se encontrou com a vítima na delegacia. E mesmo detido, não economizou ironias. “Me chamou de guardinha de merda, segurança de merda e disse que não ia dar nada para ele, pois a mulher dele era delegada”, contou a vigilante.

Daniel Ferreira/Metrópoles

Na noite desta segunda (19), 40 moradores se reuniram em protesto na praça principal pedindo justiça. Pouca gente se mobilizou em favor de Edvania no município de quase 80 mil habitantes, localizado a 287 km de Belo Horizonte, capital do estado.

Se esse fato não fosse filmado, o meu caso seria igual ao de tantas outras mulheres. Não daria em nada.Edvania Nayara Ferreira Rezende

Edvania tenta voltar à rotina simples. Uma tarefa difícil, pelo menos neste momento. A repercussão da agressão foi grande. Prova disso é que, durante a entrevista concedida na casa em que mora com a mãe e uma amiga, o celular da jovem segurança não parava de tocar. As ligações e mensagens vinham do mundo todo.

“Espero que isso se torne uma mensagem positiva, de coragem. Não me arrependo do que fiz. Se eu voltar a presenciar qualquer outra cena de covardia, vou agir da mesma forma”, contou. Ela ficará afastada do trabalho por uma semana, mas não pensa em desistir da profissão. As marcas da agressão foram cicatrizadas e o que restou, segundo ela, é ainda mais força de vontade para continuar.

O caso

No sábado (17), Edvania, que estava há um mês no emprego, foi convocada para trabalhar fazendo a segurança do clube. O expediente começou às 8h e seguiria até as 18h. Ela disse que sairia no horário, se não tivesse recebido o pedido para que aguardasse mais um pouco. “Como algumas pessoas estavam na piscina, me pediram para ficar de olho. Cerca de 20 minutos depois, ouvi os gritos. Ele (Luiz Felipe) puxava a mulher pelos cabelos”, lembra. O episódio não durou mais do que cinco minutos.


Testemunhas contam que Luiz Felipe chegou a colocar a delegada no carro e sair com o veículo. No entanto, a mulher teria se jogado para fora do automóvel, provocando ainda mais a ira do agressor. “Ela pegou a chave do carro e me pediu para sumir. Nesse momento, ele veio falar comigo. Dizia que tinha vergonha dela. Eu avisei que pedi reforço na segurança e que chamaria a polícia se ele continuasse com a covardia. Foi aí que ele me deu um soco. Naquele momento, pensei que tinha quebrado a boca”, detalhou a vigilante.

O ataque foi seguido de pontapés. Só então, Luiz Felipe foi contido pelos populares. O caminhoneiro Enioberto José de Jesus também levou um soco na boca quando tentou separar os dois. “Quando caí no chão, veio uma força tão grande, que mesmo sem saber se conseguiria levantar, queria falar com ele, dizer que a justiça vai ser feita. No fim das contas, 10 pessoas tiveram que me segurar. Foi Deus quem me ajudou”, contou a vigilante.

Revolta

Edvania diz que poucas pessoas ofereceram ajuda a ela. “Talvez, se alguém tivesse o segurado logo no começo, isso não teria acontecido”, acredita. A postura da delegada também revoltou a agente de segurança. A jovem disse que esperava uma atitude mais enérgica da policial. “Fui ajudar e acabei virando vítima. Ela fugiu, me deixou sozinha com ele. Eu tenho mais raiva dela”, destacou.

A vigilante lembra que, durante a sua infância e adolescência, nunca foi agredida pela mãe ou por qualquer outra pessoa. Com apenas 1,60m, Edvania se mostra gigante ao encarar os problemas. O pai faleceu enquanto a mãe estava grávida dela. O irmão morreu 16 anos depois.

Desde então, uma cuida da outra. A renda da família vem da pensão, deixada pelo pai, e do salário mínimo que recebe pelo trabalho de segurança. A casa de construção simples é alugada.

Daniel Ferreira/Metrópoles

Edvania gosta de trabalhar. Mesmo jovem, já foi dona de uma lanchonete. Há dois meses, ela entregou a parte que tinha na sociedade e se arriscou em outras áreas. “Eu me encontrei nessa profissão. Sonhava em ser policial, mas, com o tempo, fui desistindo. Agora, quero me especializar cada vez mais para ser melhor no que faço”, disse.

Por causa da repercussão do vídeo, Edvania ganhou um curso de segurança no Rio de Janeiro.

Não vou deixar que ele (Luiz Felipe) estrague o meu sonho. É isso que gosto de fazer e vou continuar. A profissão é de risco, mas é o que me completa. A frase que levo para minha vida é: não adianta ter vontade se não tiver coragem.Edvania Nayara Ferreira Rezende

A delegada

Ana Paula Kich Gontijo chegou há nove anos em Três Corações. A princípio, comandou a Delegacia de Narcóticos e, há cinco, está à frente da Delegacia da Mulher.

Daniel Ferreira/Metrópoles

É respeitada e admirada pelos colegas de profissão. A reportagem conversou com agentes, que não quiseram se identificar. Os policiais descrevem Ana Paula como uma mulher dedicada e comprometida com o trabalho. “Por dia, recebemos uma média de sete flagrantes de Maria da Penha. Ela conduzia os casos com seriedade e já ajudou muita gente aqui”, disse uma servidora.

A equipe é unânime em afirmar que Ana Paula é uma das melhores delegadas que a especializada já teve. Ela entrou de férias na última quarta-feira (14/12). Desde o episódio de violência no clube, está proibida de dar entrevista pela corporação e ficou reclusa em casa.

Daniel Ferreira/Metrópoles

“Ficamos sensibilizados quando vimos o vídeo. Porque não imaginávamos que ele chegaria a esse ponto. Ficamos com dó dela”, disse um policial que atua na cidade.

O agressor

Ana Paula e Luiz Felipe namoram há um ano e dois meses. Amigos próximos contam que, com o relacionamento, acreditavam que o vendedor de tijolos iria se “endireitar”.

Arquivo pessoal

Policiais da cidade reconhecem que, desde criança, ele era “problemático”. “Sempre foi esquentado. Crescemos juntos. Chegou a ser contratado como agente penitenciário em Belo Horizonte, mas foi exonerado”, relatou um policial. O motivo seria o fato de ele ter sido flagrado com armas e drogas.

O homem que agrediu Edvania, a delegada e o caminhoneiro já foi preso em outra situação, por lesão corporal. Ele teria agredido o filho de um juiz de Lambari, cidade vizinha. Em outro caso, foi levado à delegacia acusado de associação ao tráfico de drogas.

Luiz Felipe tem pai, servidor aposentado da prefeitura de Três Corações, e duas irmãs. A mãe morreu há cerca de três anos, vítima de câncer. Amigos dizem que ele ficou “bastante transtornado” depois do falecimento de dona Bia. A família dele é muito conhecida na cidade.

Arquivo pessoal

Ele já foi casado e tem um filho de 10 anos, que mora com a mãe em Belo Horizonte. A ex-mulher trabalha na Federação Mineira de Futebol. Os amigos dizem que “Felipe da Bia (nome da mãe)” é brincalhão, gosta de sair e teve muitas namoradas na região. “Mas, quando ele bebe, se transforma. Ninguém segura”, conta um deles.

Talvez por isso, ele crê, ninguém interferiu no episódio em que Luiz Felipe bateu na namorada e em Edvania.

Felipe e as duas irmãs foram criados efetivamente pelos avós. Nos anos 1990, o rapaz formou um grupo chamado “Companhia da cachaça”. Os integrantes eram conhecidos na região por serem brigões. Por isso, “Felipe da Bia” virou “Felipe da Briga”.

Os amigos tinham um código, um assovio semelhante ao de um Bem-te-vi. Foi esse assovio, inclusive, que ele fez no vídeo, após agredir a vigilante. Segundo os amigos ouvidos pelo Metrópoles, era sinal de que ele pedia ajuda, mas ninguém apareceu.

Enioberto José de Jesus, caminhoneiro, 30 anos, que também é sócio do clube onde ocorreu o episódio de agressão, foi o único a interferir na situação. “Na hora que eu vi ela (Edvania) caída e ele chutando a cabeça dela, fiquei abismado. Todo mundo olhando e ninguém ajudou. Tanto homem olhando”.

O caminhoneiro lembra que a todo momento pedia para ele ficar calmo. “Ele passava a mão na cintura o tempo todo. Como se estive armado. Dizia que não dava nada para ele porque a mulher era delegada”, confirmou.

“Na delegacia, o advogado pediu para o delegado soltar o Felipe, mas o próprio policial falou que não poderia fazer aquilo por conta da repercussão da história. O vídeo já estava rodando na internet”, acrescentou o caminhoneiro.

Luiz Felipe foi transferido, por questões de segurança, para um presídio de Belo Horizonte. Ele deve responder por lesão corporal e agressão a duas mulheres (Lei Maria da Penha).

Repercussão

O caso ocorrido em Três Corações repercutiu entre autoridades de outros municípios. A Procuradoria Especial da Mulher do Senado repudiou a ação de Luiz Felipe.

“A circunstância mostra o grau de extensão social da cultura machista que semeia a violência de gênero em domínios privados e em domínios públicos, desafiando qualquer autoridade que tente lhe conter, na casa ou na rua”, diz a nota.

O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, também condenou o episódio. Além de solidarizar com a vigilante Edvania, ele deu um dado estarrecedor.

“Como Edvania, que cumpria bravamente seu papel como agente de segurança, cerca de 130 mil mulheres em Minas Gerais sofrem com a violência de gênero”, disse.

A impunidade pela violência contra a mulher agrava os efeitos de dita violência como mecanismo de controle dos homens sobre as mulheres. Quando o Estado não responsabiliza os autores de atos de violência e a sociedade tolera, expressa ou tacitamente, tal violência, a impunidade não só estimula novos abusos, como também transmite a mensagem de que a violência masculina contra a mulher é aceitável, ou normalDiretrizes Nacionais Sobre Feminicídio da ONU Mulheres

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