Saulo Araújo
Michael Melo

O uniforme impecavelmente alinhado nem parece ter sido guardado numa gaveta por quase duas décadas. De terninho azul-escuro, saia xadrez, meia-calça preta e lenço amarelo no pescoço, Vera Lúcia Amorim rememora alguns dos anos mais alegres de sua vida. “Fui muito feliz aí dentro”, suspira ela, diante da carcaça de um imponente Boeing 767-200 da extinta Transbrasil.

O esqueleto está estacionado na Avenida Elmo Serejoconheça o caso, próximo ao Parque Ecológico Saburo Onoyama, em Taguatinga – periferia do Distrito Federal e distante 22 quilômetros da região central de Brasília.

Ex-comissária da companhia aérea que encerrou as operações em 2001, Lilian Amorim – seu nome de guerra na aviação –, 55 anos, emociona-se ao narrar histórias de bordo. O olhar nostálgico, no entanto, dá lugar a uma expressão sisuda quando ela fala sobre o fim melancólico da empresa.

De um dia para o outro, Lilian ficou desempregada. Para piorar, a ex-gigante dos ares não lhe pagou centavo algum de direitos trabalhistas. “Foi um baque enorme. De repente, me vi sem chão, sem salário e completamente desamparada”, conta. A fim de conseguir se sustentar, ela começou a desfazer-se de bens conquistados ao longo de toda a vida.

“Primeiro, vendi um apartamento no Rio de Janeiro; depois, um em Brasília. Meu padrão de vida despencou abruptamente.”

Lilian Amorim, 55 anos, ex-comissária da Transbrasil

Hoje aposentada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por tempo de contribuição, Lilian ainda aguarda na Justiça um desfecho favorável do processo movido para receber cerca de R$ 200 mil. Drama compartilhado – em maior ou menor grau – por milhares de aeronautas e aeroviáriosconheça a diferença brasileiros. Além da Transbrasil, as igualmente gigantes do setor Vasp e Varig também fecharam as portas na década de 2000 e deram calote bilionário em seus funcionários.

Segundo levantamento do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), em São Paulo, há 7.191 processos trabalhistas em tramitação contra os três grupos: a Vasp é acionada em 4.315 deles; a Varig, em 2.050; e a Transbrasil, em 826. O débito ultrapassa os R$ 3 bilhões, em valores atualizados. Se forem consideradas dívidas com fornecedores, fundos de pensão e impostos não pagos ao governo, o montante beira os R$ 20 bilhões.

“Perdi a audição e a dignidade”

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As três empresas se apresentaram sólidas durante décadas. Seus fechamentos repentinos foram duros golpes na vida de profissionais que nunca tiveram outros empregos e já se encaminhavam para a aposentadoria. A maioria dos trabalhadores mais jovens conseguiu se recolocar no mercado em outras companhias aéreas. Os grupos em atividade, contudo, preteriram aeromoças, comissários e pessoal de áreas administrativas com idades acima dos 40 anos.

Sem espaço na aviação, muitos profissionais mais experientes engoliram o orgulho e, para sobreviver, passaram a se virar em subempregos. O ex-planejador de escalas de voos Eduardo Chermont de Barros, 56 anos, entrou para as estatísticas de brasileiros desocupados em julho de 2006, ao receber um telegrama de desligamento da Varig. “A primeira reação foi a de não acreditar. Como uma das empresas que já foi a maior da América do Sul quebra assim?”, questiona-se.

A duras penas, ele assimilou a demissão. Pensou que os 18 anos e seis meses de serviços prestados à aérea lhe renderiam uma boa indenização e tranquilidade até arrumar outro ofício. Contudo, assim como os colegas dispensados pela Varig – foram cerca de 9 mil no total –, Eduardo Chermont saiu de cena com uma mão na frente e outra atrás.

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Sem renda fixa, começou a fazer bicos de segurança informal em eventos e estabelecimentos. O drama pessoal de Eduardo se agravou com o diagnóstico de que havia perdido 45% da audição nos dois ouvidos.

O problema é consequência das centenas de deslocamentos feitos até as aeronaves já ligadas para repassar à tripulação informações sobre alterações em escalas. Naquela época, a empresa não fornecia equipamento de proteção auricular.

“É muito revoltante saber que temos direito e não podemos usufruir dele. Tiraram o meu emprego, a minha audição e a minha dignidade.”

Eduardo Chermont de Barros, 56 anos, ex-planejador de escalas de voos da Varig

De comissário a
vendedor de doces

Arquivo pessoal

Ao ingressar na Vasp, em 1982, Bruno Cappocanoli sonhava em se aposentar pela empresa. Durante 20 anos, o projeto parecia caminhar conforme o planejado, até que, em 2002 – três anos antes do fechamento definitivo da companhia –, ele foi demitido sem ter acesso à sua rescisão contratual. Bruno prefere não revelar quanto tem a receber, mas diz ser um valor que representaria alívio em seu orçamento.

Já fora da Vasp, aos 45 anos, fez diversas entrevistas de emprego em outras aéreas, mas percebeu que a experiência acumulada mais o atrapalhava do que ajudava a conseguir voltar ao ofício de comissário de bordo. “O fator idade pesou. Ou virava a página ou sucumbia”, conta, resignado.

Sem bagagem em outro ramo profissional, teve de se reinventar para manter a família. Com economias guardadas, montou um escritório de telefonia móvel. O negócio vingou por cinco anos. Hoje, ele ganha a vida vendendo docinhos italianos caseiros em uma loja batizada com seu sobrenome.

“Estava empregado num serviço que eu achava estável e só tinha plano A. De repente, a vida te obriga a elaborar planos B, C… Além de ter migrado para a gastronomia, também me viro fazendo bazar, feiras e eventos.”

Bruno Cappocanoli, 61 anos, ex-comissário de bordo da Vasp

O declínio das três potências da aviação nacional provocou uma corrida de desempregados em busca de reposicionamento no mercado de trabalho. Nem o surgimento da Gol Linhas Aéreas, em 2001, e o crescimento da TAM – atual Latam – foram capazes de absorver toda a mão de obra.

Para se ter ideia do tamanho do problema, em 2000, a Transbrasil, a Vasp e a Varig tinham, juntas, 24 mil funcionários, entre pilotos, comissários, mecânicos de avião, auxiliares, vendedores de passagens e outros profissionais.

Do caviar ao churrasquinho

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João Ricardo Motta, 53 anos, também faz parte da massa mandada para o olho da rua com as garantias trabalhistas completamente ignoradas. Embora fluente em espanhol e inglês, inclusive com experiência de guia turístico em Nova York (EUA), deparou-se com enormes dificuldades para permanecer no ofício de comissário.

Além da frustração por não conseguir voltar a voar, a preocupação com as contas o assombra. Com as reservas perto do fim, está prestes a perder o apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal, devido ao atraso no pagamento das prestações. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu a revisão da dívida e, agora, João Motta espera uma decisão judicial para saber se será despejado do imóvel com seus quatro filhos.

Não bastasse a batalha para manter a moradia, João Motta luta como pode para levar alimento à família. Cansado de peregrinar de porta em porta entregando currículo, decidiu vender churrasquinho na esquina de casa, uma realidade bem diferente da época em que servia caviar aos passageiros da classe executiva da Varig.

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O negócio informal nem de longe lhe rende o suficiente para voltar a ter uma situação financeira estável, mas garante o necessário para se manter. Curioso, também aprendeu a consertar computadores e fazer estampas de camisetas, atividades que ajudam a pagar as dívidas. Apesar de exercer a função de vendedor ambulante com bom humor, João Motta confessa – com os olhos marejados – sentir saudade dos tempos áureos da aviação.

“Sonho quase todos os dias que estou dentro de um avião, servindo as pessoas. Era a coisa que eu mais amava. Quando acordo, sento na cabeceira da cama e choro. Sei que, pela idade, é algo que não vou mais voltar a fazer.”

João Ricardo Motta, 53 anos, ex-comissário da Varig

O mendigo e o suicida

Ricardo de Camargo, 50 anos, é o mais triste exemplo de como a morosidade da Justiça brasileira pode sugar a dignidade humana. Ex-comissário de bordo da Varig, fluente em inglês e com uma bagagem cultural moldada ao longo de quase duas décadas de viagens mundo afora, ele, agora, implora por comida nas ruas de São Paulo.

Imagem cedida ao Metrópoles

Após perder absolutamente todos os bens materiais, entrou em depressão, virou alcoólatra e passou a mendigar para sobreviver. Os “Variguianos” – como se intitulam os ex-trabalhadores da companhia – tentaram ajudá-lo, fornecendo roupas, comida e moradia.

Ele ficou hospedado durante um tempo na casa de João Motta – o ex-comissário que hoje vende churrasquinho no Rio de Janeiro –, mas regressou à situação de vulnerabilidade social ao voltar para São Paulo. Atualmente, os ex-colegas não têm mais notícias de Ricardo.

“É praticamente alguém de muletas tentando ajudar outro em uma cadeira de rodas. Como somos solidários na dor, tentamos nos unir e caminhar juntos. Mas somos todos Ricardos, todos enfrentamos nosso calvário diário esperando uma luz no fim do túnel.”

João Motta, sobre o colega Ricardo de Camargo

A história de degradação humana de Guilherme Gottel, 52 anos, culminou em tragédia. Contemporâneo de João Motta no comissariado da Varig nas décadas de 1990 e 2000, Gottel não suportou o fardo de viver em dificuldades extremas. No último dia 25 de julho, na casa de sua mãe, na Ilha do Governador (RJ), o ex-comissário se matou.

“Mostra o abdômen”

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Após dedicar mais de duas décadas ao transporte aéreo, Luiz Motta, agora com 60 anos, tira parte do sustento com a prestação de transporte terrestre. Anos depois de conhecer o mundo pernoitando nos mais sofisticados hotéis, o ex-comissário complementa sua aposentadoria pelo INSS rodando em um aplicativo de corridas de passageiros.

Assim como a esmagadora maioria dos colegas demitidos da Varig, ele também tentou entrar em outra companhia aérea, mas viu suas chances desaparecem na entrevista de emprego quando revelou a idade. “Fiquei [de fora da seleção] por causa da idade, considerada avançada. Chegaram ao absurdo de pedirem para eu e outros candidatos tirar a camisa e mostrar o abdômen, pois não queriam homens com barriga na empresa”, revela.

Luiz Motta dividiu por anos a função de bordo com a colega Moema Ribeiro, 60. Em terra firme e bem distante do glamour de outrora, a dupla agora junta forças para cobrar seus direitos. Ao tirar de dentro de uma caixa de papelão as centenas de fotos do glorioso e próspero tempo da aviação, a mulher se emociona.

Mesmo tendo cerca de R$ 1 milhão a receber da antiga empregadora, Moema vive com dificuldade. Um câncer agressivo no pulmão, descoberto em 2016, a fez gastar seus últimos R$ 16 mil. Desiludida com o mercado de trabalho e debilitada, passou a se dedicar exclusivamente a cuidar da mãe, uma idosa de 89 anos que já não consegue mais andar sozinha.

“Tiraram de mim não só um emprego; tiraram uma paixão, meu orgulho.”

Moema Ribeiro, 60 anos, ex-comissária de bordo

Duas décadas de angústias e litígios nos tribunais

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Em quase 20 anos de ações e recursos na Justiça, apenas os ex-empregados da Vasp, entre 2015 e 2016, conseguiram receber cerca de 15% dos valores aos quais têm direito. O pequeno alívio foi possível após o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Sindicato Nacional dos Aeronautas e o Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo ajuizarem uma Ação Civil Pública contra a companhia, seus administradores e empresas que formavam o grupo econômico Canhedo Azevedo.

Depois de um longo embate nos tribunais, a Fazenda Piratininga, localizada no norte de Goiás e à época pertencente à família do empresário Wagner Canhedo, SAIBA QUEM É?foi arrematada, em lance único de R$ 430 milhões, pela Conagro Participações Ltda. Além de ser dono da Vasp, Canhedo era proprietário da Viação Planalto (Viplan), que transportou passageiros em coletivos no Distrito Federal por quase quatro décadas. Em 2017, a Justiça do DF decretou a falência da Viplan.

No caso Vasp, Canhedo sofreu mais uma derrota após o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), em São Paulo, determinar a alienação de outras duas fazendas de sua propriedade: a Santa Luzia e a Rio Verde, ambas em Goiás. Na ocasião, em 2015, as posses rurais foram vendidas por R$ 177 milhões.

No entanto, os pagamentos estão suspensos. Os administradores da massa falida da Vasp exigiram que os valores fossem destinados à antiga companhia aérea para posterior repasse aos trabalhadores. Massa falida é uma espécie de firma criada por determinação judicial com objetivo de localizar e gerenciar o restante de aeronaves, obras de arte, imóveis, sucatas e outros bens passíveis de serem negociados, a fim de liquidar o débito do grupo.

Segundo o advogado e especialista em direito aeronáutico Carlos Duque Estrada, que representa mais de 800 ex-funcionários das três gigantes de outrora, no caso da Vasp, há ainda a possibilidade de o governo de São Paulo se responsabilizar pelo restante da dívida da companhia. “O estado chegou a ter 40% das ações da Vasp e representação no conselho administrativo da empresa. Portanto, é dever chamá-lo à responsabilidade e quitar [com sua participação] esse passivo”, defende.

A Justiça concordou com o argumento do defensor e colocou o governo paulista no polo passivo da ação, mas o Palácio dos Bandeirantes – sede do Executivo estadual – recorreu. O agravo tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ainda não foi analisado pela Corte.

Um longo caminho pela frente

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Das três empresas, a situação da Varig, em teoria, é a mais bem encaminhada para um desfecho favorável aos ex-trabalhadores. Na prática, contudo, o descumprimento de decisões por parte do próprio Estado trava a liberação de um recurso bilionário que poderia aliviar a penúria dos antigos funcionários.

Em 2017, os demitidos da companhia venceram um imbróglio judicial ao cobrarem da União a reparação de prejuízos causados pela política econômica de congelamento de preços das passagens aéreas imposta pelo Plano Cruzado (1985–1992). A medida iniciou o processo de quebra da empresa.

Em agosto do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a União indenizasse o grupo em R$ 3 bilhões. Com as correções aplicadas, os valores ultrapassam a cifra de R$ 7 bilhões. Apesar de se tratar de decisão transitada em julgado – portanto, não mais passível de recurso –, esse dinheiro pode ficar retido com o próprio governo federal, que cobra da Varig uma dívida bilionária referente a impostos.

Além disso, o pagamento dos ex-funcionários pode atrasar ainda mais porque não está estabelecido quem receberá primeiro. O dinheiro deve ser usado para honrar passivos trabalhistas individuais e reforçar o caixa do Aerus – fundo de previdência privada criado para pagar os aposentados da Varig, mas que ficou sem recursos com a derrocada da empresa.

No entanto, ex-empregados que aderiram ao Aerus no passado, com a esperança de gozar de uma renda a mais na velhice, não sabem se serão contemplados. O advogado Carlos Duque Estrada também considera difícil o saldo ser suficiente para amparar os aposentados. Apesar da vitória na Justiça, o defensor admite a improbabilidade de os ex-colaboradores verem a cor do dinheiro em menos de 5 anos.

“Mesmo com o acordo, o governo alega não ter dinheiro. É bem possível que essa dívida se transforme em precatório. Não vejo solução antes de 5 ou 7 anos.”

Carlos Duque Estrada, advogado, especialista em direito aeronáutico

DO AUGE AO DECLÍNIO

“Golpe clássico”

Para o vice-presidente da Associação de Pilotos da Varig (Apvar), Élnio Borges Malheiros, o processo todo de recuperação da Varig não passou de uma “fraude”. A empresa foi uma das primeiras a se beneficiar, em 2005, da Lei de Falências – como é popularmente chamada a Lei Federal nº 11.101/2005. Porém, além de não ter se recuperado financeiramente, a companhia acumulou uma dívida ainda maior: aumentou de R$ 7 bilhões para R$ 18 bilhões, um salto de 157%.

“Vendeu-se a empresa para recuperá-la, o que já é uma incoerência jurídica. A situação só piorou e não pagaram absolutamente nada aos trabalhadores. Foi um golpe clássico e descarado”, protesta Malheiros.

Autor da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Varig, o deputado estadual do Rio de Janeiro Paulo Ramos (PDT) denuncia ter havido uma trama na gestão da massa falida da empresa aérea.

“Ele mandou um parecer para a Superintendência Nacional de Previdência Complementar [Previc] dizendo que o ideal seria enviar os recursos referentes à indenização direto para a massa falida. Foi parcial, prejudicando os aposentados. Isso não é aceitável”, acusa Paulo Ramos.

O “ele”, ao qual se refere o parlamentar da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), é Luís Gustavo da Cunha Barbosa, designado liquidante do Plano Aerus de Seguridade da Varig. De acordo com o deputado carioca, a forma como o processo foi conduzido praticamente excluiu os aposentados do rateio bilionário de recursos a serem pagos pela União. Até a última atualização deste texto, a reportagem não havia conseguido localizar Luís Gustavo.

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Os ex-funcionários da companhia também reclamam da postura do atual administrador judicial da massa falida da Varig, o advogado Wagner Bragança. Eles o acusam de falta de transparência na gestão dos processos. O grupo reprova ainda as últimas decisões do juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, da 1ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

O magistrado chegou a negar o pedido de um ex-trabalhador que exigiu de Bragança a apresentação de notas fiscais, recibos e contratos de prestação de serviço. Por ser o gerenciador da massa falida, o escritório do advogado tem direito a receber 3% de todos os bens vendidos da empresa, cujos valores ficam retidos em conta judicial.

O Metrópoles ligou e deixou recados no escritório de Bragança, mas não houve retorno dos contatados. A reportagem encaminhou ainda, por e-mail, os questionamentos ao juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, todavia não obteve resposta também.

Na visão do presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Goiás (OAB-GO), Georges Ferreira, o dilema envolvendo a destinação do ressarcimento da União pode ser dirimido com bom senso.

“Primeiro, estamos falando de um valor que causará impacto muito grande à União e, portanto, deve demorar para começar a ser pago. Segundo, é preciso ser razoável e aplicar a proporcionalidade para que aposentados, pensionistas e aqueles que moveram processos trabalhistas individuais sejam contemplados com alguma quantia”, opina Georges Ferreira.

Panair: a primeira grande falência da aviação brasileira

Bem antes da derrocada de Transbrasil, Vasp e Varig, uma gigante dos ares também sucumbiu. A Panair dominou o mercado da aviação comercial brasileira entre as décadas de 1940 e 1960: tinha a exclusividade de rotas para Europa, África e Oriente Médio, além de operar em vários países latino-americanos e em todo o Brasil.

Orgulho nacional, imortalizada na música Saudades dos aviões da Panair, de Milton Nascimento e Fernando Brant, a companhia teve sua licença de operação cassada pelo regime militar e, em seguida, foi liquidada judicialmente.

Com apenas uma canetada e sem apresentar qualquer motivo, em 1965, o então presidente da República, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, cessou os efeitos da concessão do que era a maior companhia aérea do país. A Varig assumiu, imediatamente, as linhas para a Europa. As rotas domésticas ficaram com a Cruzeiro do Sul.

O ato presidencial deixou a Amazônia isolada, já que as aeronaves da Panair faziam a integração de 43 localidades da região e nenhuma companhia assumiu esses voos. Do dia para a noite, 5 mil pessoas ficaram desempregadas. Assim como os trabalhadores das três gigantes citadas nesta reportagem, os funcionários da Panair também enfrentaram dificuldades para obter seus direitos trabalhistas: muitos ainda brigavam na Justiça por indenização 50 anos após o desmonte da companhia.

As famílias controladoras da Panair travaram uma guerra judicial com a União durante 15 anos, tiveram ganho de causa, mas não receberam reparação financeira ou moral. A Comissão Nacional da Verdade concluiu, em 2014, que a empresa foi liquidada por motivos políticos, e não financeiros.

Imbróglio de milhões de dólares

A situação dos ex-funcionários da Transbrasil também parece estar longe de ser resolvida. Atualmente, os representantes dos demitidos tentam garantir na Justiça uma vitória que permita o sequestro de bens da família de Omar Fontana, fundador da companhia, morto em 2000.

Além disso, a massa falida da Transbrasil espera receber da General Electric Capital Corporation (GE) cerca de US$ 20 milhões. A GE fazia manutenção de aeronaves e foi a autora do pedido de falência da empresa, sob argumento de impontualidade em uma nota promissória no valor de US$ 2,6 milhões.

No entanto, em 2010, ministros da 3ª Turma do STJ entenderam que o protesto movido pela GE contra a Transbrasil correu de forma injustificável. Por meio de perícia feita na documentação apresentada à época, a Corte concluiu: a companhia já havia quitado a dívida de US$ 20 milhões relativa a contratos de leasing de aeronaves e motores.

Existia, ainda, um pedido de indenização à Transbrasil no valor de R$ 402 milhões, mas o STJ o indeferiu por depreender que, apesar do protesto indevido, a GE não agiu de má-fé. O Metrópoles entrou em contato com o escritório de advocacia Manhães Moreira, representante da GE, mas os defensores alegaram não ter autorização para repassar informações sobre o processo.

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Omissão do Estado

Na opinião de Marthius Sávio Lobato, professor de direito coletivo de trabalho da Universidade de Brasília (UnB), o Estado é o principal culpado pelo calvário judicial dos milhares de ex-empregados da Vasp, Varig e Transbrasil. Para o docente, os órgãos de controle falharam ao permitir que essas companhias chegassem ao fim sem tomar medidas para evitar o bilionário calote trabalhista.

“No decorrer da vida útil das empresas, as relações delas devem ser transparentes, e era notório que [as aéreas] deram vários sinais antes de quebrar. Se o Estado assistiu suas concessionárias se desmantelarem sem fazer absolutamente nada, ele deve, sim, responsabilizar-se solidariamente.”

Marthius Sávio Lobato, professor de direito coletivo de trabalho da UnB

Justiça sob pressão dos “Variguianos”

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Enquanto o Poder Público não age para sanar as gigantescas dívidas trabalhistas e sociais das empresas que foram à bancarrota, os ex-empregados que ainda gozam de saúde tentam pressionar a Justiça para acelerar as decisões.

Todas as quartas-feiras, um grupo de ex-funcionários da Varig se reúne em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) para protestar contra a letargia do Judiciário e pedir transparência nas operações financeiras feitas pelos gestores da massa falida da empresa.

“É algo absolutamente incompreensível e fora de propósito. Aplicaram um golpe numa empresa sólida que levava com orgulho a bandeira brasileira para qualquer lugar do mundo. Agora, o golpe é nos direitos dos trabalhadores. Parece que cometemos um crime por ter trabalhado na Varig.”

Roberto Bastos Rangel, 62 anos, ex-despachante operacional de voo

Mesmo atravessando em terra uma turbulência aparentemente longe do fim, a maioria dos trabalhadores mantém a confiança em dias melhores. André Andrade, 45 anos, é um deles. O também ex-comissário de bordo – com R$ 125 mil a receber – passou a dormir de favor em um colchão inflável na casa de um amigo, em Copacabana (Zona Sul do Rio). As roupas ficam guardadas em uma mala que ele usava na época de serviço na companhia.

Para economizar no dia a dia, André optou por uma alimentação baseada em frutas e verduras, itens mais baratos. Nos piores tempos do desemprego, admite ter passado fome. “Já fiquei sem dinheiro para comprar qualquer coisa. No auge da depressão e antes de vir morar com meu amigo e padrinho do meu filho, pedia dinheiro ao porteiro do meu prédio e bebia água da bica”, conta.

Apesar das agruras, não perde o bom humor. “Fico saudável e magro”, diverte-se. Confiante, André aposta que a vida está prestes a dar uma guinada. Seu menino de 9 anos, que mora com os avós em Porto Alegre (RS), vai se mudar para o Rio de Janeiro em dezembro. “Pelo meu filho, estou indo à luta”, diz o ex-comissário da Varig.

Em 2 de julho, alugou um carro e virou motorista de Uber. Na praia, em Copacabana, onde nasceu e foi criado, olha o mar e profetiza ao falar dele e dos amigos de aviação: “A vida é um ciclo. Agora, estamos girando na parte de baixo da roda, mas creio que ela vai girar de novo e vamos parar na parte de cima”.



Diretora-Executiva
Lilian Tahan
Editora-Executiva
Priscilla Borges
Editora-Chefe
Maria Eugênia Moreira
Coordenação
Olívia Meireles
Edição
Ana Helena Paixão
Reportagem
Saulo Araújo e Michael Melo
Revisão
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Edição de Fotografia
Daniel Ferreira
Fotografia
Michael Melo
Edição de Arte
Gui Prímola
Design
Gui Prímola, Moisés Dias
Vídeo
Tauã Medeiros e Michael Melo
Edição de Vídeo
Gabriel Pereira, Tauã Medeiros
Tecnologia
Allan Rabelo, Saulo Marques e Jhonantans Rocha
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