O domingo já havia praticamente terminado quando Eliane Simões, 39 anos, decidiu dar uma passada na casa da amiga Maria dos Santos Gaudêncio, 52 anos. Queria reclamar com a vizinha pelo furo do dia: elas tinham combinado de ir à missa, mas Maria frustrou o passeio. Deixou a Quadra 2 da Fazendinha, no Itapoã, para almoçar com o namorado na residência da filha caçula, em Ceilândia. “Tá me devendo, bicha safada!”, cobrou Eliane, no tom de brincadeira que sempre usava com a colega.

Rente à porta, as duas conversaram animadamente, até ouvirem um prato sendo quebrado na cozinha. Diante da expressão questionadora da vizinha, Maria contou: “O Tonho tá todo esquisito. Passou o dia feliz, mas, quando entramos no ônibus para voltar, ele fechou a cara”. Eliane chegou a propor que a amiga a acompanhasse a sua casa, mas Maria negou. Queria descansar.

Foi a última vez que as duas se viram. Naquela noite, 17 de março de 2019, Antônio Pereira Alves, 40 anos, assassinou Maria. Primeiro a golpeou na nuca, com um pedaço de madeira que a mulher mantinha em casa para fazer massagem nas pernas. Depois, desferiu cinco facadas contra ela. Friamente, embrulhou o corpo em um edredom, o posicionou em cima da cama, trancou a porta do quarto e empurrou a chave de volta para dentro, pelo vão de baixo.

Arquivo pessoal
Antônio golpeou Maria Gaudêncio na nuca, depois desferiu cinco facadas contra ela e, friamente, embrulhou o corpo em um edredom

O crime só foi descoberto dois dias depois, na noite de 19 de março. Ao notar um cheiro ruim persistente, a filha mais velha, com quem Maria dividia a casa, arrombou a porta do quarto. Levantou a coberta e se deparou com a mãe, deitada de lado, com um ferimento profundo abaixo do pescoço.

“Ele a atingiu primeiro nas costas porque, se ela estivesse de frente, teria revidado”

Leidiane Gaudêncio, 28 anos

Essa impressão parece comum a todos que conheciam Maria: negra, nordestina e sem papas na língua. “Ela não era de levar desaforo pra casa. Se precisasse, enfrentava qualquer um, homem ou mulher, ia pra cima mesmo”, conta Taciana Vieira Cordeiro, outra amiga próxima. “Nossa família é do Nordeste, né? Somos esquentadas”, diz Leidiane, que herdou da mãe a baixa estatura e a personalidade forte.

A bravura e o temperamento explosivo de Maria não foram capazes de salvá-la do destino comum a milhares de brasileiras, vítimas de homens possessivos e do machismo que justifica socialmente a violência contra elas. Somente em 2017 (ano do último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), 1.133 mulheres foram assassinadas no país única e exclusivamente por sua condição feminina. No papel de algozes, maridos, namorados, ex e atuais companheiros, todos dominados pela certeza de que elas não podem ser livres nem dizer não.

Com Maria, não foi diferente. Embora não houvesse registro de queixas contra o namorado na delegacia e Leidiane não soubesse das brigas entre os dois, Antônio já vinha dando sinais de agressividade. Ele queria que Maria, proprietária de um pequeno bar contíguo à casa onde vivia, fechasse o estabelecimento. Não gostava da personalidade da namorada, sempre alegre e gentil com os clientes. Desejava que Maria fosse outra, apenas dele. Às amigas mais chegadas, a mulher confidenciou as brigas e as exigências do namorado, mas não percebia que estava em perigo. Ou, talvez, achasse que seria possível se defender, como havia feito em outras ocasiões. Provavelmente, não suspeitava que a crueldade do companheiro podia ser letal.

Michael Melo/Metrópoles
Michael Melo/Metrópoles
Maria Gaudêncio abriu um bar na parte da frente de sua casa. Por uma janelinha gradeada, ela vendia pinga, café e salgados

Ainda sem acreditar no ocorrido, a filha mais velha lamenta não ter sabido das agressões que a mãe sofria. “Por que as pessoas só contam as coisas depois que o pior já aconteceu?”, questiona, revoltada. “Não é uma ‘se meter’, é dar um alerta. Se eu soubesse, teria prestado mais atenção ao comportamento dele”, disse.

Frio e com “cara de sonso”, assassino planejou o crime

Leidiane não esconde, porém, nunca ter gostado do namorado da mãe. “Quando havia alguma briga ou discussão entre os dois, ele ficava calado, sem falar nada. Gente assim não é de confiança”, sentencia. Ela não era a única a ter o pé atrás com Antônio. “Quando bati o olho nele, me deu um sorriso amarelo. Não gostei. Sabe pessoa sonsa? Você percebe logo de cara que não vale nada”, diz Taciana.

As amigas e a filha não sabem precisar quando o relacionamento engatou, mas acreditam que tenha sido no final do ano passado. Antônio já era conhecido da vizinhança da Fazendinha há algum tempo. Por cerca de dois anos, morou quase em frente à casa de Maria. Depois, passou a viver dentro do salão de beleza em que trabalhava como cabeleireiro, em uma das principais ruas do Itapoã.

No salão, era conversador, mas nunca revelava sua própria história. Os colegas e o patrão sabiam apenas que ele era do interior do Maranhão e tinha parentes no Entorno do DF. Alguns dias antes de assassinar Maria, Antônio, um homem de porte franzino, comprou uma faca artesanal e a exibiu para os conhecidos, como um troféu. Ao ser questionado sobre a aquisição, justificou: “Comprei para me defender”.

Em 16 de março, um sábado, ele chegou a anunciar no trabalho: “Estou a fim de matar alguém”. O patrão estranhou, perguntou que bobagem era aquela, mas não levou muito a sério. No fim do expediente, Antônio avisou que não iria trabalhar no domingo, um dos dias mais movimentados no local. Pediu um adiantamento do pagamento para visitar a família em Goiás. Dissimulado, explicou: “Tá lá um corpo estendido no chão”, em referência à suposta morte de um parente.

Maria passou o domingo todo na companhia do namorado. Estava feliz porque iriam visitar a filha caçula dela, Maria Cleidiane, sempre alvo de preocupações. Dias antes, os dois tinham brigado: ele a chutou e desferiu um soco em seu peito. A marca da agressão, roxa, só foi revelada à melhor amiga. “Ela comentou comigo que ele estava um amor e tinha jurado que ia mudar”, lembra Eliane. Maria confiou no namorado, mas foi traída, pelas costas.

“Todo casal briga, mas fazer uma coisa dessas?”, indigna-se Eliane. “Estou com o coração partido. Antes de cicatrizar uma dor, já veio outra”, diz ela, que perdeu o irmão, também assassinado, em 2012. “Eu só espero justiça, que ele apodreça na cadeia.”

Maria Alves (conhecida como Graça), 58 anos, irmã mais velha da vítima, também cobra a condenação do feminicida. Ela e Maria haviam se desentendido quando a caçula chegou a Brasília, no final dos anos 1990. A amizade fora retomada em 2016. “Perdi minha mãe e meu pai, mas essa dor é muito diferente”, pondera, com lágrimas nos olhos. “Minha irmã sofreu muito. Deus me perdoe, mas eu só quero o mal daquele homem.”

Feminicida inventou história e fugiu

Em 18 de março deste ano, o dia seguinte ao crime, Antônio mandou uma mensagem ao patrão pedindo demissão do emprego. Enviou a foto de um suposto bilhete de loteria premiado e anunciou que, com a bolada, iria mudar de vida.

Leidiane, que havia passado o fim de semana fora do DF, voltou para casa também em 18 de março, mas não estranhou a ausência da mãe. Aquele era o dia em que Maria costumava resolver coisas: tinha terapia no posto de saúde, fazia aulas de direção e, por vezes, ia a algum grande mercado comprar ingredientes para fazer os salgados que vendia no bar. Além disso, embora as duas morassem juntas, não tinham uma relação muito próxima.

A jovem começou a notar o mau cheiro na manhã do dia seguinte, uma terça-feira. Abriu as janelas, pois pensou que fosse o esgoto da rua (com frequência, a região alaga e o odor invade as residências). A ocultação do crime também foi favorecida por uma característica da casa: havia espuma expansiva no teto e nas frestas entre as paredes. “Minha mãe gostava de assistir à televisão com o som muito alto. Brigávamos bastante por isso e colocamos a espuma para diminuir o problema”, explica Leidiane.

Antônio ficou foragido até 23 de março, quando a polícia o localizou no município de Santa Quitéria do Maranhão. Em depoimento à delegada-chefe da 6ª Delegacia de Polícia, Jane Klébia, responsável pelo caso, ele disse ter agido em legítima defesa. Maria o teria atacado por ciúmes, depois de ter descoberto um caso do namorado com outra. “Nós fomos mostrando as contradições da versão dele, deixando claro que a história não fazia sentido diante da cena encontrada pela filha e do que foi apurado nas investigações”, conta a delegada.

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A delegada Jane Klébia acredita que o crime tenha sido premeditado

Sonhos enterrados

Maria Gaudêncio chegou a Brasília no final dos anos 1990, depois de uma passagem por São Paulo. A piauiense cumpriu um roteiro comum a tantas mulheres que saem do interior para tentar a vida na capital: veio sozinha para trabalhar como empregada doméstica e, alguns meses depois, trouxe as filhas, à época com 9 e 6 anos.

A família se instalou na então recém-nascida invasão do Itapoã, tomada por barracos de lona e madeirite sobre o chão batido. Durante um tempo, Maria tentou localizar o pai das meninas, de quem havia se separado alguns anos antes, para cobrar a pensão alimentícia. Os parentes do homem, contudo, não revelavam o endereço dele.

Imagem satélite, dá pra mostrar a evolução/expansão do Itapoã desde 1990
Imagem feita por satélite mostra a expansão do Itapoã desde 1990

Sozinha com as duas crianças, ela precisou se virar. Não gostava de trabalhar como doméstica. Sentia-se vulnerável ao humor dos patrões, que, ora podiam ser compreensíveis e boa gente, ora não. As dificuldades de locomoção também a exasperavam: pegar ônibus cheio, em horários ruins e insuficientes diante da demanda dos moradores do Itapoã, deixava a rotina ainda mais desgastante.

Maria, então, passou a preparar e vender marmitas. Depois, abriu um bar na parte da frente de casa. Inicialmente, com mesas na calçada, mas a dor de cabeça com clientes consumidores de álcool a fez transformar o negócio em algo mais modesto. Por uma espécie de janelinha gradeada, ela vendia pinga, café e salgados. A entrada da residência foi transformada em duas pequenas lojas, alugadas a comerciantes da região.

Mesmo com o bar em tamanho reduzido, Maria animava a rua onde morava. Logo cedo, ela ligava o som, amplificado por uma caixinha instalada em cima do telhado “Era Anitta e Sky Love do Forró todo dia. Chegava a enjoar”, conta um vizinho, que não quis se identificar.

Trabalhadora, Maria lutou para dar uma vida melhor às filhas. “Ela era muito rígida com as meninas. Não teve muito tempo de ficar com elas quando pequenas e se ressentia por isso. Estava em uma fase de buscar essa reconciliação e de fazer as duas se darem melhor”, conta Taciana. A busca por terapia no posto de saúde era uma das mudanças nesse sentido.

Alegre e festeira, Maria sempre gostou de namorar. Seu companheiro antes de Antônio, Valdo, tinha o temperamento parecido com o dela. Por ser mais extrovertido e explosivo, sempre despertou desconfiança da filha. Leidiane chegou a se meter em uma discussão dos dois, mandando Valdo baixar o tom de voz e respeitar a mãe. “Todo mundo preocupado com aquele lá, achando que ele pudesse fazer algo com ela, e foi o outro, com cara de sonso, que a matou.”

Arquivo pessoal
A vítima era negra, nordestina e sem papas na língua

De “bonzinho” a agressor frequente

Quando o namoro com Antônio firmou, Maria festejou com as amigas. Estava feliz por ter achado um companheiro “bonzinho”, que se preocupava com ela, comprava marmita. Os problemas começaram pouco depois. Ambos eram ciumentos, mas a possessividade dele, paranoica, se manifestava de maneira cada vez mais violenta. Com um mês de relação, ele a empurrou no sofá durante uma discussão.

Em dezembro, quando Maria visitava Taciana, o marido da anfitriã fez um alerta: havia um homem esquisito rondando a casa. Ao espiar o lado de fora, Maria reconheceu o namorado. “Oxi, Tonho está me perseguindo agora, é?”, estranhou.

À amiga Edivânia Guedes, Maria havia confessado que Antônio andava mexendo em seu celular. Por causa dos excessos, ela pensava em terminar o relacionamento. “Ele anda muito enciumado. Acredita que parou uma festa inteira por minha causa?”, relatou Maria.

No episódio, Antônio ficou irritado com o fato de a namorada estar conversando com outros homens. Descontrolado, foi para o meio da pista de dança e começou a fazer golpes de capoeira, afugentando os presentes.

Em outra ocasião, relatada por Eliane, Antônio passou boa parte da festa de cara amarrada, porque Maria e a amiga dançaram forró com um grupo de rapazes. No caminho de volta para casa, ele a empurrou e xingou: “Sua vagabunda! Você queria era ficar se esfregando nos novinhos!”. Eliane apartou a briga e chamou o cabeleireiro de volta a si, lembrando que Maria era “mulher de caráter” e “não dava ousadia” para ninguém.

Ele se desculpou, mas não houve remédio. Quinze dias depois, assassinou Maria.

Uma entre tantas vulneráveis

O inquérito policial, que apontou Antônio como autor do crime, foi concluído em meados de abril. Mas, desde que a notícia da morte de Maria correu pelo bairro, ninguém teve dúvidas da responsabilidade do cabeleireiro. “Quando eu fiquei sabendo, tive certeza que era ele o assassino”, mencionou um vizinho. “Ela era dona de bar, tinha clientes homens, conversava com eles. Dava para ver que o namorado não gostava.”

Nos relatos dos entrevistados para esta reportagem, há revolta, mas escapam juízos de valor. Maria era guerreira, trabalhadora, alegre e não merecia o fim que teve, todos concordam. Mas ser morta pelo novo companheiro ciumento parece, de certa forma, esperado? “As pessoas têm que saber quem colocam pra dentro de casa”, chegou a falar um dos clientes de Maria, para depois refletir e se corrigir. “Mas como, né? Ninguém tem estrela na testa. Se fosse companheiro de verdade, não tinha matado ela.”

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Após o crime, carroceiro retirou objetos da casa de Maria

No Itapoã, a morte de Maria soma-se a outras tantas, e a velocidade da violência é tamanha que mal dá tempo de viver o luto coletivo. Os casos de abuso e agressão contra as mulheres jorram (embora isso não seja exclusividade do local). Leidiane ainda nem tinha descoberto o corpo da mãe quando um homem tentou matar a mulher e a filha de 3 anos, trancando as duas em casa, abrindo o gás e colocando fogo no colchão. Durante a apuração desta reportagem, ouvi na delegacia uma senhora contando assustada ao agente: “Ele disse que ia me matar”.

Eu pergunto a Eliane, a grande confidente de Maria, se não alertou a amiga sobre a necessidade de se afastar, fazer uma ocorrência, tentar uma medida protetiva. Ela me conta a própria história de violência doméstica e as várias vezes em que quase foi morta pelo ex-marido. “Não existe proteção. Ou você acha que vai ter um policial rondando a minha casa, pronto para me salvar?”

A sensação de desamparo reina, absoluta, ao mesmo tempo que as mulheres se conformam e vivem o possível, reféns do machismo de todos nós. “A gente não pode medir força com os homens”, acredita Edivânia, que ajudava Maria no bar. Para outras, o caminho é se afastar, como faz Graça, irmã da vítima. “Namorei muito, mas hoje não tenho companheiro. Tenho medo de morrer matada.”

CAROLINA VICENTIN

Carolina Vicentin

Colunista do Metrópoles formada pelo Centro Universitário Iesb, com especialização em Bioética e em Marketing Digital. Trabalhou nos jornais Metro, Correio Braziliense e Jornal do Brasil e como consultora do Sebrae e da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Foi também assessora de imprensa da reitora da Universidade de Brasília (UnB). É cofundadora e repórter da Revista AzMina e vencedora de dois prêmios nacionais de jornalismo: Embratel e FBH Synapsis.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (24/5), 6.281 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatarem abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 14 feminicídios. Segundo a polícia, apenas uma pequena parte das mulheres que vive situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

Diretora-executiva
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