“O ano de 2020 será dos anjos”, dizia Luciana de Melo Ferreira, 49 anos, sem saber que em breve se tornaria um deles. Assassinada pelo ex, Alan Fabiano Pinto de Jesus, 45, a servidora não teve tempo de realizar os seus sonhos. Ela costumava confessá-los aos colegas, em voz alta, enquanto criava bonecos, feitos de papel A4. Os origamis dobrados pelas mãos de Luciana enfeitaram o Natal da sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde ela trabalhou por mais de 22 anos.

Um dos desejos mais urgentes era poupar dinheiro para viajar a Paris, na França. A vontade, porém, não era conhecer a Torre Eiffel, ou os famosos pontos turísticos da Cidade Luz. Ela queria rever o filho, a quem não dava um abraço havia três anos, quando o primogênito decidiu morar no país europeu. “Se gostar de lá, nem volto”, brincava Luciana com a chefe, e amiga, Ana Cláudia Mendonça.

Os enfeites natalinos colocados na repartição pública ainda estão lá. Ninguém teve coragem de retirá-los. A mesa da vítima também permanece intocada, do jeito que ela deixou quando saiu de férias, no início de dezembro. O local se tornou uma espécie de memorial onde os amigos e colegas do TSE têm deixado os origamis feitos carinhosamente por Luciana.

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Os origamis dobrados pelas mãos de Luciana enfeitaram o Natal da sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Eles estão lá até hoje

A paciência e a delicadeza necessárias para os trabalhos manuais se misturavam a outros traços da personalidade de Luciana. Dona de si, falava o que vinha à cabeça, sem meias palavras. “Ela sempre foi direta. Algumas pessoas interpretavam como frieza. Mas, quando a conheciam, viam o quanto ela era leal e cuidadosa”, lembra Ana Cláudia. O jeito altivo pode ter desencadeado algumas das brigas com o ex. “Se ela não gostava de algo, não ficava acuada, calada. Não tinha medo de expor o desagrado”, reflete a colega de sala. “Era assim no trabalho e na vida.”

Divorciada, Luciana falava com muito amor e orgulho sobre a criação dada ao casal de filhos. A servidora era uma mãe dedicada, mas nunca abriu mão de suas necessidades enquanto mulher. Vaidosa, estava sempre bem-arrumada, de unhas feitas e com colares lindos. Gostava de sair com as amigas para bares, shows e viagens de fim de semana. Amava a vida e não deixava nada para ser vivido depois. “Nada de amanhã, vamos resolver hoje”, decretava a secretária executiva sempre que Ana Cláudia pensava em adiar uma decisão.

Foi num desses passeios, durante um encontro de motociclistas, que a servidora conheceu o vigilante, morador de Ceilândia, Alan Fabiano Pinto de Jesus, 45. No começo, o romance novo deu ares de adolescente a Luciana. Com pensamento longe e um sorriso indisfarçável, foi flagrada pela chefe desenhando corações na agenda, com seu nome e o do paquera no centro do desenho. Segundo a amiga, ao ser provocada sobre a situação, a vítima, envergonhada, teria dito que eles ainda estavam “só ficando, se conhecendo”. Era abril de 2019.

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Luciana era paciente e delicada, mas também era dona de si e falava o que vinha à cabeça, sem meias palavras

No entanto, com cerca de dois meses de relacionamento, fase em que, normalmente, os casais vivem em clima de lua de mel, Luciana já percebia sinais de perigo e relatava as primeiras discussões com Alan. Após uma viagem de moto a Pirenópolis (GO), a vítima contou para a amiga ter ficado assustada com a velocidade e a forma irresponsável como o segurança dirigia. “Vou brigar com ele e dizer que não ando mais com ele”, afirmou. “É preciso ter cuidado, as estradas são muito perigosas”, preocupou-se Ana. “Eu sei, não vou mais”, prometeu Luciana.

Com o tempo, a vítima foi ficando cada vez mais reservada e discreta sobre o namoro. Deixou de fazer qualquer comentário a respeito do relacionamento. Mas no final de agosto, durante uma conversa sobre relações abusivas, deixou escapar para a parceira de sala que não estava mais tão feliz. “Eu penso em me afastar do Alan. Às vezes sinto que ele me faz mais mal que bem”, contou.

O desabafo aconteceu na mesma época em que o criminoso teve sua primeira explosão pública. Depois de uma discussão, Luciana deixou o ex falando sozinho e subiu para o apartamento dela. Como não quis deixar o vigilante subir, Alan quebrou toda a vidraça da portaria que dava acesso à casa da servidora. A confusão assustou os demais moradores do bloco localizado no Sudoeste. “Eu pensei que fosse assalto, pois ele estava quebrando tudo”, disse uma vizinha que não quis se identificar.

Ao Metrópoles, o zelador Geraldo Gonçalves de Sousa contou que, passado o rompante de raiva, Alan teve medo de alguém acionar a polícia. Conversou com o síndico e, no dia seguinte, levou dinheiro para quitar o prejuízo. O imbróglio foi resolvido sem o envolvimento das autoridades. O descontrole emocional de Alan aconteceu na mesma época em que o feminicida Marinésio dos Santos Olinto tomou as manchetes dos noticiários do Distrito Federal.

De acordo com Alexandre Sena, outro amigo do tribunal, Luciana ficou muito chocada com o caso. “A gente comentou muito. Ela ficou indignada, perguntava até quando isso aconteceria”, recorda o funcionário. A situação extrema de violência contra o sexo feminino serviu de alerta para perceber os riscos que corria, mas o ponto final entre ela e o criminoso ainda demoraria mais um mês para chegar.

Em outubro, ela conheceu o lado mais sombrio de Alan. Após tentar dar fim à relação, o acusado jogou o carro no qual estavam, de propósito, em direção a uma árvore. Para se salvar, a vítima pulou do veículo em movimento, momentos antes da colisão, e se feriu.

O costumeiro bom humor no ambiente profissional escondeu dos colegas de trabalho o drama pessoal pelo qual ela estava passando. Na época do acidente, o raro pedido de licença médica chamou atenção e preocupou a chefe. “Bebi tanto que caí”, explicou Luciana como desculpa para o joelho machucado.

Na ocasião, Alan foi preso em flagrante e denunciado por tentativa de feminicídio. O homem passou duas semanas detido, mas a Justiça concedeu liberdade provisória para ele. Em 21 de outubro, foi realizada a audiência de custódia. Para ser solto, Alan precisou, além de usar a tornozeleira, pagar fiança de R$ 2 mil e se comprometer a manter distância de, ao menos, 500 metros da vítima.

O trauma não paralisou Luciana. A servidora resolveu seguir a vida, sem olhar para trás. “Acabou, não volto mais”, ressaltava aos amigos.

Mas algo ainda a incomodava. Mesmo tendo experimentado a violência extrema do ex, não queria se sentir responsável por prejudicar seu futuro. Despretensiosamente, aproveitou uma nova notícia de violência doméstica para perguntar a Alexandre se uma pessoa denunciada na Lei Maria da Penha poderia prestar concurso público. “Eu não soube responder direito. Mas achava que não. Na hora nem imaginei a dúvida ser sobre o ex dela”, recorda o colega.

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Luciana falava com muito amor e orgulho sobre a criação dada ao casal de filhos

No dia 4 de dezembro, a vítima pediu a retirada da medida protetiva contra Alan, alegando não estar mais em situação de risco. Para Ana Cláudia, apesar do histórico de agressões, Luciana nunca acreditou na possibilidade de ele voltar a procurá-la. “Para ela, esses casos de feminicídio aconteciam com quem tinha anos de relacionamento, eles haviam ficados juntos pouquíssimo tempo. A Lu pensou que ele fosse deixá-la em paz.”

O pedido foi acolhido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), e, diferente das expectativas de Luciana, Alan não a havia esquecido. Apenas 13 dias após se livrar da tornozeleira, em 17 de dezembro, voltou a fazer contato com a servidora. Decidido a reatar o namoro, deixou um bilhete no para-brisas do carro da vítima. “Eu te amo, faça contato comigo pelo WhatsApp”, escreveu o assassino.

Luciana não respondeu ao vigilante. Comentou a tentativa de contato com alguns amigos e familiares e foi convencida por eles a prestar queixa. Porém, pela primeira vez, protelou uma resolução. Ocupou-se dos preparativos para a ceia de Natal em família e resolveu esperar até a segunda-feira seguinte, dia 23/12/2019, para ir à delegacia. Não deu tempo. No sábado, 21/12/2019, ao chegar à porta de casa, deu de cara com seu algoz.

Imagens do circuito de segurança mostram que o vigilante chegou ao edifício de Luciana às 20h31. Com o crime premeditado, Alan digitou a senha de acesso na portaria e subiu as escadas. Ninguém o viu e ele ficou à espreita por cerca de duas horas. Às 22h32, foi a vez de a vítima entrar no prédio. Luciana estava sozinha, tinha passado a tarde no shopping com a filha e, depois, a deixado para passar o fim de semana na casa do namorado.

As investigações apontam que Alan ficou de tocaia no quarto andar do prédio. Quando Luciana percebeu a presença dele no corredor, tentou bater a porta, mas ele travou com as mãos e forçou a entrada no apartamento. Em depoimento, o assassino confesso diz ter ido ao local para tentar voltar com a vítima, mas a mulher não quis ouvir. Segundo ele, ao encontrá-lo, ela tentou tirá-lo da residência. No momento da briga, a ex pegou uma tesoura para atacá-lo e ele apenas “se defendeu”.

A cena do crime e os ferimentos em Luciana contam uma história bem diferente. No corpo ensanguentado, os peritos criminais encontraram 48 perfurações. Vários ferimentos foram sobrepostos e se concentraram na parte cervical posterior da vítima, ou seja, a maioria dos golpes foram desferidos nas costas, de forma brutal e covarde. A polícia acredita que os dois discutiram até o vigilante começar a esfaqueá-la com um objeto cortante, possivelmente uma faca, e uma tesoura.

A frieza do assassino surpreendeu até mesmo o delegado-chefe da 3ª DP, Ricardo Vianna. Segundo o responsável pelas investigações, Alan disse aos agentes que após dar as tesouradas ainda permaneceu no apartamento por cerca de 30 minutos, vendo a vítima agonizar, gemer e gesticular. “Ele confessou que deixou Luciana ainda com vida quando fechou o apartamento”, contou Viana.

Em nota, os legistas informaram que a causa da morte de Luciana foi choque hipovolêmico determinado por objeto cortante e perda de sangue. Luciana sangrou até morrer. “Se ele tivesse fugido do local, mas avisado alguém, ela poderia estar viva”, ressaltou o delegado.

As mesmas câmeras que flagraram a invasão do assassino também registraram o momento que ele deixa o local. Vestido com uma calça vermelha, camisa de capuz e com a bolsa da vítima na mão, ele desceu os degraus silenciosamente, com cuidado para não ser visto. Em determinado momento, apressa o passo e deixa o prédio. Os investigadores acreditam que a intenção de carregar consigo os pertences de Luciana era para simular um latrocínio – roubo seguido de morte.

No domingo, 22/12/2019, enquanto o corpo de Luciana jazia esquecido no apartamento, o vigilante assumiu, normalmente, seu posto de trabalho, no Ministério da Economia. Dia e noite correram sem ninguém dar falta da servidora. Na segunda-feira, 23/12/2019, passadas mais de 24 horas do assassinato e com o corpo já em decomposição, o mau cheiro começou a incomodar os vizinhos. “O odor passava por debaixo da porta, estava forte, mas ninguém sabia o motivo”, lembra o porteiro.

O crime só se tornaria público por volta das 17h, com o retorno da filha à casa. Acompanhada do namorado, ao chegar ao local, a moça percebeu que o apartamento estava trancado com uma chave tetra e precisou de um chaveiro para abrir a porta. O primeiro a dar de cara com a cena foi o rapaz. Ele correu para abraçar e tentar impedir a amada de ver a mãe morta.

Enquanto a menina sofria pela perda, Alan Fabiano dava entrada no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) com traumatismo cranioencefálico. Na terça, foi transferido para o Hospital de Base, onde foi encontrado. Não se sabe ao certo, porém, se as lesões foram provocadas pela vítima, ou se o assassino teria tentado suicídio depois. O fato comprovado pela perícia da Polícia Civil do Distrito Federal é: Luciana lutou para não morrer. Cortes no antebraço atestam a tentativa de se defender.

Quando Ana Cláudia leu em uma das reportagens do Metrópoles que a amiga havia lutado até o fim, não teve dúvidas. “Quando falávamos desses casos de violência doméstica, ela sempre dizia: ‘Eu posso até apanhar, mas eu também vou acabar com o cara’”, lembra.

No dia 2 de janeiro, Alan Fabiano foi transferido para o Centro de Detenção Provisória (CDP), localizado no Complexo Penitenciário da Papuda. O homem estava internado no Hospital de Base desde o dia 24 de dezembro. Em audiência de custódia, realizada no dia 25/12/2019, a Justiça decretou sua prisão preventiva.

“O crime está enquadrado em homicídio qualificado pela emboscada, motivo fútil e feminicídio desde que ele foi preso em flagrante. Essa parte está finalizada”, explicou, ainda, Ricardo Vianna.

A partir de agora, o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, terá novo sentido para Ana Cláudia. Nos últimos dois anos, ela e Luciana aproveitavam a data para organizar diversas atividades e palestras no Tribunal Superior Eleitoral. Durante o evento intitulado Delas, as duas amigas conscientizavam homens e mulheres sobre o machismo no ambiente de trabalho e repetiam aos quatro cantos da instituição: “Não queremos flores, nem bombons, queremos respeito”. Luciana não conseguiu salvar a si mesma, mas sua história há de salvar muitas vidas.

Raquel Martins Ribeiro

Formada em jornalismo pela Universidade Estácio de Sá (Brasília). Tem passagens pelo Correio Braziliense, Jornal de Brasília, Brasiliagenda e pelas assessorias de imprensa da Objetiva e do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Elas por elas

Em 2019, o Metrópoles criou projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal foram contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até terça-feira (31/12/2019), 16.954 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Foram registrados ainda 33 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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