1. Uma mulher sai de casa de manhã para trabalhar na capital do país

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Arapoanga, sexta-feira, final de agosto. Letícia saiu de casa apressada, às 7h da manhã, com uma mochila nas costas, cadernos, livros e o filho de 3 anos dando a mão. Deixou a criança na van escolar, que passava na porta de casa, e seguiu para o trabalho. Ela era funcionária terceirizada do Ministério da Educação. Também fazia curso de pós-graduação na Escola Superior do Ministério Público. Tinha só 26 anos.

O combinado era almoçar com a mãe, Kenia, mas Letícia não deu notícias. A advogada ligava, ligava, no telefone da caçula, e nada, até que o aparelho, à tarde, acusou estar desligado. Quando o celular de Letícia não chamava mais, a mulher, desesperada, foi ao emprego da filha e ouviu: ela não havia ido trabalhar. Então, entrou em contato com a faculdade, mas ela também não apareceu para a aula. Isso nunca tinha acontecido antes. Menina pobre, responsável, trabalhadora, estudiosa, Letícia não faltava. Ela queria seguir a profissão da mãe.

Arquivo Pessoal
Letícia trabalhava no MEC e fazia pós-graduação. Era casada e tinha um filho
Letícia trabalhava no MEC e fazia pós-graduação. Era casada e tinha um filho

Assim, a família entendeu: Letícia havia desaparecido.

2. Uma mulher desaparece

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Ela estava de saia jeans longa e tênis na manhã do crime. Quando uma pessoa desaparece, precisamos procurá-la em sua última forma: saber as roupas escolhidas naquele dia e relembrar seus hábitos diários. Caso a vítima seja uma mulher, sabemos das chances de não encontrá-la bem. Procura-se com a esperança de 1) achar o corpo e 2) achar o corpo inteiro. O corpo de uma mulher é onde a violência chega de frente. Em qualquer lugar deste país.

Em Brasília, o transporte público é precário. As pessoas ficam mais de meia hora esperando o ônibus em paradas sem nenhuma segurança. Os donos de carros e vans piratas viram nessa realidade uma oportunidade de crescer. Esses veículos cobram o mesmo valor da passagem dos coletivos e te levam ao destino final em menos tempo. Seria uma alternativa boa, caso não fosse extremamente perigoso para uma mulher confiar seu deslocamento a um estranho em um ambiente privado.

A região administrativa onde Letícia morava é uma das mais distantes do Plano Piloto. Dali, só duas linhas vão para o centro. A estudante de direito trabalhava na Esplanada dos Ministérios, área nobre de Brasília. A capital federal foi desenhada para veículos. Por isso, acabou sendo dividida em um centro elitizado e as periferias pobres. O desenho é desonesto com as mulheres trabalhadoras e prejudica principalmente as que moram longe de seus empregos e não têm carro.

Segundo uma vizinha, Letícia entrou em um Gol branco na manhã do dia do desaparecimento. Ela costumava usar transporte por aplicativo, mas não apareceu nenhuma viagem debitada no cartão de crédito naquela manhã. A estudante tinha um problema de vista e usava cartão de deficiente para se deslocar de ônibus. Era raro pegar transporte pirata. Mas estava atrasada naquele dia.

Era casada com Kaio, viviam juntos há oito anos, os dois e o filho. O marido, ao receber a notícia, disse que Letícia nunca deixaria o pequeno de 3 anos para trás. Pensou em sequestro, surto psicótico. Lembrou também da última discussão que tiveram: Letícia era evangélica e insistia para que ele parasse de beber cerveja. Mas logo descartou a ideia do desentendimento bobo ser o motivo da fuga. Não podia ser, ela nunca tinha ficado sem dar notícia. Por volta das 18h, resolveu ir à delegacia denunciar o desaparecimento.

Michael Melo/Metrópoles
Kaio manteve, até o último segundo, a esperança de encontrar a mulher
Kaio manteve, até o último segundo, a esperança de encontrar a mulher

A possibilidade de surto era improvável. Letícia vivia a melhor fase da sua vida, passou, semanas antes, na OAB e em dois concursos – do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Ministério Público da União (MPU). Esperava apenas ser chamada. Conseguiu um trabalho no Ministério da Educação (MEC). Fazia pós-graduação, com bolsa. Estava tudo muito bem.

Os investigadores estiveram na casa do casal na noite do desaparecimento e ficaram entre as 23h de sexta e às 3h de sábado colhendo depoimentos. De acordo com o marido, os vídeos de todas as câmeras de segurança das redondezas estão com a polícia, mas ele não teve acesso à gravação que mostrava Letícia caminhando no bairro. Kaio ficou em contato com a Delegacia de Repressão a Sequestros (DRS) e com os investigadores da 31ª DP em Planaltina. Segurou a onda durante todo do tempo, a sogra estava muito abalada, chorando copiosamente quando ouvia o nome da filha.

O menino ficou na casa da tia, aos 3 anos, ele precisava ser poupado. Kaio levou um monte de brinquedos e pediu aos primos para brincarem com o garoto. Sabia que ao pisar em casa o filho perguntaria: “Cadê a mamãe?”.

O investigador dizia que a maioria dos relatos sobre a localização da desaparecida era mentiroso. Falou sobre a possibilidade de ela estar em Taguatinga; em um cárcere na região de Planaltina; e ter sido vista em uma parada de ônibus próximo ao MEC. Tudo falso.

A família e os amigos permaneciam rezando, procurando, divulgando. Enquanto esperavam notícias da polícia, organizaram buscas, entraram no mato, estiveram por todas as partes. As noites de Kaio agora eram em claro. Uma espera assim pede a criação de um segundo corpo – que reveze o medo, que duplique a esperança, um corpo que aguente a possibilidade de nunca mais ver o outro.

3. Um homem é encontrado

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Assim a família ficou, até dois dias depois do desaparecimento, quando finalmente os agentes da 31ª DP encontraram e prenderam o suposto responsável. No seu carro, foram achados os objetos da vítima: relógio, fichário, material escolar. O celular da advogada estava atrás do banco, e também se encontrava, no veículo, uma nota de R$ 5 — valor que Letícia pegou com o marido antes de seguir ao ponto de ônibus. Nas imagens do circuito de segurança, a jovem aparece em uma parada no Setor Arapoanga, em Planaltina, entrando no veículo do acusado, depois de conversarem por uns 10 segundos.

Em um primeiro depoimento à polícia, o homem mentiu dizendo que comprou aqueles objetos; confirmou ter estacionado em frente ao tal ponto de ônibus; mas negou qualquer conversa com Letícia. Marinésio contou ter parado no local apenas para deixar um carro passar. De acordo com ele, no dia do desaparecimento da vítima, foi levar a filha no colégio e seguiu para a casa da irmã por volta das 9h50. Não soube explicar, porém, onde estava entre o momento do sumiço de Letícia e o horário que chegou no condomínio onde moram parentes. A polícia desmentiu as respostas do cozinheiro com as imagens da câmera de segurança. Com esses indícios de sequestro, foi pedida a sua prisão temporária.

O assassino se chama Marinésio Santos Olinto. Tem 41 anos, 1,60m, fala mansa. É cozinheiro, trabalha como funcionário terceirizado em um supermercado. Casado, pai de uma filha de 16 anos. Não bebe nem fuma. Nenhuma passagem pela polícia. Não tinha relação com Letícia, diz que não a conhecia. Também contou não fazer transporte pirata e nem emprestou o veículo para ninguém, mas confessou ter dado algumas caronas.

A polícia procurou a moça na área rural perto do Vale do Amanhecer, onde mora Marinésio, o único suspeito até aqui. A última localização do celular da vítima foi da casa dele, próximo ao Arapoanga.

Enfim chegamos à narrativa do episódio: Marinésio levou os investigadores ao local do crime. O cadáver estava dentro de uma manilha perto da fábrica de sementes Pioneer, na DF-250. Marinésio disse que conhecia a vítima de vista. Deu mais detalhes sobre a parada no ponto de ônibus e contou ter oferecido carona para a jovem até a rodoviária do Paranoá. Ela teria aceitado e, no caminho, assediou Letícia, que o recusou. Marinésio, então, teria esganado a funcionária do MEC até a morte e desovado o corpo dela em uma manilha situada às margens de uma estrada perto da região do Vale do Amanhecer, em Planaltina. Após matar a mulher, confessou o furto de seus pertences pessoais.

4. A misoginia compulsória, compulsiva

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Arquivo Pessoal
Marinésio confessou também o assassinato de Genir Pereira de Sousa, de 47 anos
Marinésio confessou também o assassinato de Genir Pereira de Sousa, de 47 anos

A história era sempre essa: usando sua Blazer prata, ele abordava as vítimas em paradas de ônibus ou a caminho dos pontos de ônibus, as vítimas acreditavam que se trata de um loteiro e eram assediadas. Ele tinha o hábito de pegar o carro nos dias de folga e circular pela cidade atrás de mulheres. Chama atenção o fato de escolher vítimas, de forma aleatória, mais altas que ele.

A polícia também investiga se outras mulheres desaparecidas no DF têm ligação com o cozinheiro. Há cerca de um ano e meio, por exemplo, uma babá sumiu no Altiplano Leste após embarcar em um ônibus e descer nas proximidades da Barragem do Paranoá. Outro caso ocorreu em Sobradinho: uma residente de Nova Colina nunca mais foi vista após sair de um posto de gasolina. Pelo menos três mulheres foram à 31ª DP e disseram ter escapado dos ataques de Marinésio após aceitarem embarcar no carro dele. No fim do mês de agosto, uma garota de 17 anos e uma dona de casa de 43 anos contaram ter sido abordadas em paradas de ônibus e estupradas. A jovem diz que ele a asfixiou, depois de violentá-la, mas não a matou. É difícil calcular a extensão do horror praticado por esse homem.

Sua frieza é assustadora. Menos de 24 horas depois do assassinato de Letícia, duas irmãs denunciaram que foram atacadas por ele na Rodoviária de Planaltina.

Preso, Marinésio deu declarações à imprensa no dia 26 de agosto de 2019, horas após o corpo de Letícia ser encontrado. E disse: “Perdão. Eu quero que vocês tenham raiva de mim, mas essa família que eu tenho não merece essa pessoa que eu sou. Só peço desculpas para todos. Minha família não merecia estar passando por isso. Vou pagar o que eu fiz”.

A lista de acusações contra ele inclui crimes como assassinato, estupro, assédio sexual, furto e ocultação de cadáver. O laudo de Letícia, especificamente, descarta ter havido abuso sexual. Indica o assédio, os gritos, o esganamento.

Marinésio ficou conhecido como o maníaco de Planaltina. De acordo com os vizinhos, ele era um cara tranquilo, quase não falava com ninguém, comprava pães, levava a filha na escola. Nunca o imaginaram como um maníaco.

A companheira de Marinésio, que viveu 19 anos ao lado dele, também não sabia de nada. Era um bom marido e um bom pai. Agora ela teme pela integridade dela e da filha. Estão sendo ameaçadas. Mais uma vez, a violência de um homem recai sobre mulheres inocentes.

O enterro de Letícia foi muito triste. Estava cheio. Pessoas que a conheciam e que não a conheciam, todas comovidas com essa vida interrompida. Os loteiros, revoltados com o caso, fizeram um protesto: uma carreata em Planaltina. Escreveram em seus carros “Loteiros, sim. Assassinos, não”, e outras frases de luto pelo assassinato brutal. Na Rodoviária do Plano Piloto, mulheres se manifestaram contra os crimes para chamar a atenção à insegurança do transporte pirata. E para ecoar o apelo: parem de nos matar.

5. Quais palavras enquadrar

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A cada 10 dias, uma mulher é vítima de feminicídio no Distrito Federal. Que há homens que nos violentam e nos matam, que se desfazem de nossos corpos com a mesma falta de humanidade com que os tratam com vida, já sabemos. Que há homens que fazem isso em sequência, que banalizam e repetem a violência, também vemos às vezes. Mas esse caso traz um novo ponto de vista jurídico: as mortes de Letícia e Genir foram as primeiras a serem enquadradas como feminicídios cometidos em razão do desprezo ao gênero feminino. Desde a vigência da legislação, os crimes registrados são clássicos de violência doméstica. Nesses, assassino e vítima se conhecem, mantém relação íntima.

No caso de Marinésio, são atuações de um “predador sexual”, um homem sem respeito às mulheres como pessoas. Claramente crimes de ódio.

Exatamente 26 dias após o crime, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) denunciou Marinésio à Justiça por homicídio quintuplamente qualificado no caso de Letícia. As qualificadoras incluem motivo torpe, porque a vítima se negou a manter relações sexuais; meio de execução (esganação); dissimulação, por fingir ser loteiro; feminicídio; e por ele tentar manipular a cena do crime para disfarçar tentativa de estupro. O cozinheiro foi denunciado, ainda, por tentativa de estupro, ocultação de cadáver e pelo furto dos pertences de Letícia, uma vez que foram encontrados fichário, celular e bens da vítima dentro do carro do assassino confesso.

A denúncia de feminicídio foi oferecida ao Tribunal do Júri de Planaltina e a Justiça acatou a denúncia do MPDFT no início do mês de outubro. Marinésio pode pegar 46 anos de prisão, caso condenado, segundo estimativa do Ministério Público. Mas em audiência de instrução realizada há duas semanas, no Fórum de Planaltina, a defesa do cozinheiro tentou desqualificar o caso como feminicídio. Segundo o advogado do acusado, o réu confesso teria tido um surto quando assassinou a vítima. As teses completas, porém, serão apresentadas pela defesa no julgamento de Marinésio, no Tribunal do Júri, que ainda será marcado.

A PCDF também indiciou Marinésio por feminicídio no caso Genir, com qualificadora de asfixia e motivo fútil, além de ocultação de cadáver. Em outro processo, o maníaco se tornou réu por estupro cometido na região de Sobradinho. O nome da vítima, que sobreviveu, é mantido em sigilo. Digitais da moça, de 21 anos, foram encontradas na Blazer do cozinheiro.

Michael Melo/Metrópoles
A Polícia Civil do DF indiciou Marinésio por feminicídio cometidos em razão do desprezo ao gênero feminino
A Polícia Civil do DF indiciou Marinésio por feminicídio cometidos em razão do desprezo ao gênero feminino

Marinésio também foi indiciado por tentativa de feminicídio de uma adolescente de 17 anos, a primeira vítima a denunciá-lo após o crime de Letícia ser solucionado. Ela escapou por pouco da morte. Em depoimento, a menina disse que Marinésio a chamou de lixo, indicando menosprezo e discriminação. O inquérito que apura o estupro cometido contra a adolescente ainda será relatado e depende de algumas informações produzidas pelo Instituto de Criminalística (IC). O caso aconteceu em abril deste ano.

Em relação à pena, não há tanta diferença entre um homicídio qualificado e um feminicídio, os dois dão de 12 a 30 anos de cadeia. Promotores explicam que, no geral, como os casos de ódio à mulher são mais raros, e os feminicídios oriundos da violência doméstica aproveitam a Lei Maria da Penha, os feminicídios do espaço público ainda têm pouco conhecimento jurídico específico.

Nossa luta é justo por isso – que se faça o conhecimento jurídico, que os crimes indiquem a violência de gênero, independente do tempo da pena ser o mesmo. A tipificação dentro da Lei nº 13.104/15 é uma marcação política. Ao acumular repertório nesse enquadramento, dá pra ver a misoginia desses crimes, além de atentar para a necessidade de políticas públicas que garantam nosso direito à cidade. Para que o debate avance e suas chances de se repetir diminuam. Sabemos que nossa luta avança com as palavras. E que precisamos delas para empurrar as leis, que raramente são escritas ou votadas por nós mulheres. Mudar esse quadro precisa contar com um esforço amplo, coletivo, didático, urgente. Até que não tenhamos mesmo nenhuma a menos – nem dentro nem fora de casa.

Antonia Pellegrino

Antonia Pellegrino

Roteirista e fundadora do Agora É Que São Elas. Se tornou uma das vozes mais ativas do feminismo com sua influência nas redes sociais, falas e textos públicos. Venceu prêmios da Academia Brasileira de Letras, Academia do Cinema Brasileira, ABRA, New York Film Festival. Escreveu três longas metragens de ficção. É coautora de cinco novelas e cinco seriados, produzidos por canais como TVGlobo, HBO e Multishow, entre 2004 e 2017. Foi colaboradora do roteiro do documentário “Democracia Em Vertigem”, de Petra Costa.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até terça-feira (12/11/2019), 14.130 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 29 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

DIRETORA-EXECUTIVA
Lilian Tahan
EDITORA-EXECUTIVA
Priscilla Borges
EDITORA-CHEFE
Maria Eugênia
COORDENAÇÃO
Olívia Meireles
EDIÇÃO
Érica Montenegro
TEXTO
Antonia Pellegrino
Maria Isabel Iorio
REVISÃO
Juliana Afioni
EDIÇÃO DE ARTE
Gui Prímola
DESIGN E ILUSTRAÇÃO
Yanka Romão
TECNOLOGIA
Allan Rabelo
Saulo Marques
André Marques