Foram as crianças da rua sem asfalto que levaram a reportagem até a casa abandonada onde Gláucia Sotero, 45 anos, foi assassinada pelo ex-marido, Bruno Rodrigues Vidal, 30. Como quem anda até um lugar mal assombrado (talvez pelo cachorro Negão, que avança em quem tenta chegar perto), os quatro meninos param no meio do caminho e apontam: “É ali, cuidado, moça”.

A casa cor-de-rosa, de portas e janelas sem esquadria, foi o sonho de Gláucia. Lá ela reunia a família e abrigava os familiares que estavam sem dinheiro para pagar o aluguel. Mas também foi onde Bruno acabou com a vida da diarista, um pouquinho de cada vez, até o momento final. No lugar vazio, restam os móveis, um caderno aberto, um colchão no chão.

Continuando pela rua de lama, as crianças contam que boa parte da família de Gláucia mora nas proximidades. A área da Chácara 02 é considerada uma das mais perigosas do Sol Nascente, em Ceilândia. Aqui é a casa do irmão, ali, a da tia, lá, a da filha mais velha. A primogênita foi a primeira a nos abrir a porta e falar de Gláucia: “Minha mãe era doida”.

Jacqueline Lisboa/Especial para o Metrópoles
Gláucia Sotero foi assassinada na casa cor-de-rosa onde morava no Sol Nascente

Jéssica Sotero, 26, era muito próxima da mãe. Foi, inclusive, quem a apresentou a Bruno, há quase 10 anos, quando ele ainda era um “cara bem legal”. A jovem também acompanhou a mãe na delegacia muitas vezes para registrar os boletins de ocorrência de violência doméstica. E, por fim, foi ela quem achou a mãe no chão, morta com marcas roxas do estrangulamento no pescoço.

No sofá da pequena casa de Jéssica, onde ela mora com o marido, os três filhos e, agora, as duas irmãs mais novas, de 10 e 5 anos, ela conta que Bruno era melhor o amigo de seu então namorado. Unha e carne. Ele era um homem bonito, trabalhador, inteligente. A manicure e uma amiga decidiram: Bruno e Gláucia fariam um belo casal.

Os dois se apaixonaram e foram morar na casa cor-de-rosa de Gláucia, no fim da rua de lama, onde há um enorme pé de manga. Mas Bruno começou a fazer uso de drogas e a beber muito. Transformou-se. Tinha tanto ciúme de Gláucia que arrancou parte dos seus cabelos. Deu socos até ela ficar quase sem os dentes. Tentou esfaqueá-la, deixando-a com a mão praticamente inválida. Gláucia foi se apagando. Para não despertar a ira do marido, deixou de se arrumar e sair de casa.

Tentou fugir da violência, chegou a morar em outro lugar, mas Bruno reapareceu, prometendo mundos e fundos. Ela deu mais uma chance.

Gláucia arranjou emprego como auxiliar de serviços gerais, mas Bruno ligava de 20 em 20 minutos e ela não conseguiu manter o serviço. Passou a viver de diárias. “Ela era infeliz demais”, lembra a filha.

O assassino

Bruno era conhecido na vizinhança pelo descontrole, pelo temperamento violento.

As crianças tinham muito medo dele. Já apareceu de madrugada na casa de um morador com uma foice. Derrubou o portão de outro a chutes. Jogou um tijolo na direção de uma mulher e quase acertou um recém-nascido que estava com ela. Estuprou uma sobrinha de Glaúcia. Por pouco não afogou uma irmã dela em uma panela de óleo quente.

Bruno criou uma pistola com pregos e canos e tentou assassinar a própria irmã, Suelen Vidal. Por esse crime, chegou a ser preso mas, antes de a polícia chegar, apanhou dos vizinhos até ter o maxilar quebrado. Gláucia sentiu dó: vendeu o carro e a televisão para pagar um advogado que o tirasse da cadeia.

Apesar das agressões, ele pedia desculpas e Glaúcia sempre voltava. Quando ele estava louco de álcool e drogas, alguém corria para chamá-la e ela entrava no meio para evitar o pior. Em 2017, Bruno cruzou um limite para o qual não haveria retorno. Ele ameaçou matar a filha de Gláucia e o genro, invadindo a casa de Jéssica e quebrando portas e janelas. A diarista não o quis mais. Foi a gota d’água.

Preso, mais uma vez, por tentativa de homicídio, Gláucia não saiu em seu resgate. Contou para a filha que já tinham terminado antes do ocorrido e que ele se recusava a sair da casa cor-de-rosa. Bruno queria o terreno. Foi um alívio quando ele foi levado pela polícia. “Ela dizia não ter mais amor por ele, só nojo.”

“Quando ele se foi, a feição dela mudou, acabou aquela cara de sofrimento. Começou a se arrumar, vinha aqui e pedia para eu fazer as unhas dela, consertar a sobrancelha. Engordou um pouco. Arrumou um namorado, o Edilson, que a ajudou a pagar o tratamento dos dentes. Estava tudo indo bem”, lembra Jéssica. Ela nos mostra fotos de uma festa de aniversário em que a diarista aparece feliz com as amigas.

A mulher

Claro, Gláucia não era santa. Quando bebia, brigava com todos os amigos, xingava a família. No dia seguinte, pedia desculpas. Jéssica nunca viu, mas já ouviu dizer que ela também usava drogas — quando o fazia, não dormia em casa, só aparecia no dia seguinte, poupava os filhos. No sistema do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, a diarista consta como acusada de injúria e lesão corporal contra algumas mulheres e homens. Uma das vizinhas nos diz que prefere não falar, não se dava bem com a família. “Ela era problema”, murmura.

A diarista nasceu e foi criada em Ceilândia e morava no Sol Nascente há 10 anos. Era a segunda mais velha de sete filhos e era conhecida, além do pavio curto, pela generosidade. Quando conseguiu a casa cor-de-rosa, fez questão que a mãe largasse o aluguel e fosse morar na chácara. Trouxe uma irmã de outra comunidade e construiu uma casinha simples nos fundos do lote. Ajudou a família inteira a ter onde morar.

Conhecia todo mundo, era simpática, e se encontrasse alguém passando necessidades na rua, chamava para morar com ela. “Tirava do dela para dar aos outros, ninguém acreditava”, diz a filha. O histórico de relacionamentos abusivos não começou com Bruno. Gláucia viveu muitos amores cheios de dor. No site do MPDFT, há registros de violência doméstica contra quatro homens diferentes, além do ex-marido.

Gláucia teve cinco filhos. Além de Jéssica, era mãe de Marcelo, 20, Júlia, 10, Jeovana, 8, e Jamilly, 5, esta última, filha de Bruno. Tem o mesmo sorriso do pai, contam. A mãe não gostava de flores, pedia a todos para guardá-las para o dia em que morresse. A casa, ela repetia, garantiria o teto dos filhos caso algo acontecesse com ela.

A casa tão sonhada esteve em risco. Uma reportagem de janeiro de 2017 do jornal Estado de S.Paulo conta sobre as milícias do Sol Nascente, e Gláucia aparece como personagem. Um homem, identificado como Amarildo, teria feito ameaças de morte a ela exigindo a casa. A diarista não deixou por menos, denunciou o caso à polícia, e conseguiu na Justiça uma medida de proteção. Meses depois, a casa foi arrombada, revirada e roubada. Gláucia não arredou o pé.

O meio do fim

Quando Bruno saiu da cadeia, depois de cumprir pena pelas tentativas de homicídio contra a filha de Gláucia e o marido, em 24 de outubro de 2019, ninguém soube. Ficou escondido na casa da mãe e só saía de lá de madrugada. Gláucia deixava a filha Jamilly com a avó, mas não encontrou o homem. Duas semanas depois, Júlia foi buscar a irmã e o viu. Ficou petrificada. Apesar da pouca idade, a menina já presenciou tanta coisa que hoje fala como adulta. Ela conta que ele saiu correndo e se escondeu. Só depois Júlia foi avisar a família.

Marlon, 8, o filho mais novo de Jéssica, quase teve um treco. “Achei que ele ia ter um ataque do coração, saiu correndo para a casa de uma das tias”, lembra Júlia. Sabendo da volta de Bruno, Gláucia começou a se despedir. Prevendo o próprio futuro, começou a pedir perdão a antigos desafetos. Sabia que o ex não aceitaria seu novo relacionamento, sua felicidade, viria atrás dela.

Na noite do dia 15 de novembro, feriado, um grande incêndio na subestação da Companhia Energética de Brasília (CEB) deixou 76 mil casas em Ceilândia e no Sol Nascente sem luz. A família estava toda reunida na casa de Gláucia e, no escuro, Marcelo, o filho mais velho, saiu para comprar velas em uma mercearia. Edilson, o namorado, estava no trabalho. Jéssica foi para casa com os filhos. Gláucia dormiu.

Ela no colchão, no chão, e Jeovana, 8, e Jamilly, 5, no sofá. Bruno entrou na casa cor-de-rosa pela última vez e Gláucia acordou sendo estrangulada pelo ex-marido, com quem viveu todo tipo de emoção por oito anos. Jeovana viu tudo. Na noite de lua cheia, o astro iluminou os últimos momentos da diarista.

Quando o Samu chegou pela rua de lama e sem luz, a primeira hipótese foi de suicídio por overdose, pois o corpo não apresentava marcas nem sangue. Jéssica chegou correndo e lembrou das palavras da mãe nos últimos dias. Preferia morrer a ter Bruno de volta. A família foi chegando com as velas e acenderam todas ao redor de Gláucia. Olhando o corpo da mãe, a filha mais velha viu sangue saindo do nariz e marcas que começavam a escurecer em volta do pescoço. “Soube na hora: tinha sido o Bruno”.

Desespero e vingança.

Marcelo, o filho mais velho, que havia saído apenas para comprar velas, ficou transtornado com a morte da mãe. Andava de cima para baixo. Jeovana, que tinha se escondido na casa de uma vizinha, encontrou Jéssica e contou o que tinha presenciado. Todos foram para a delegacia, onde a criança-testemunha conversou com um psicólogo e detalhou a cena do crime. Bruno usava camisa verde. “Eu nem falei nada pro Marcelo, ele estava muito nervoso”, lembra a irmã mais velha.

No dia seguinte, sábado, Jéssica, o marido e Edilson voltaram para a delegacia para ter mais notícias e lidar com toda a burocracia que segue uma morte. No Sol Nascente, Jeovana encontrou o irmão, o abraçou e disse, baixinho, o nome do culpado pela morte de Gláucia.

Marcelo não perdeu tempo, nem pensou duas vezes. Pegou a arma que Bruno criou para tentar assassinar a própria irmã (ele achou a .12 escondida pouco depois do crime), subiu o muro da casa da mãe do assassino e ficou no alto com a arma na mão. Bruno se encontrava sentado do lado de fora, com um facão, preparado para se defender da vingança dos Sotero. Com um tiro na cabeça, o terror da vizinhança morreu. Marcelo fugiu.

Arquivo Pessoal
Bruno, o feminicida, de camisa listrada, Gláucia e Marcelo, o filho que matou o assassino da mãe

“Foi todo mundo lá ver o corpo. As pessoas não acreditavam, queriam ter certeza que ele tinha morrido. Muita gente saiu rindo”, conta a manicure. Jéssica estava na delegacia quando ficou sabendo do assassinato cometido pelo irmão e correu de volta para a família.

A mãe de Bruno estava em casa na hora do crime e disse à polícia que Marcelo, Lauro (primo dele) e Edilson (que estava na delegacia) eram os responsáveis pela morte do filho. “Ela acusou os homens da nossa família. A polícia prendeu Lauro, que não tinha nada a ver com o assunto. O Marcelo foi na polícia confessar, ele agiu sozinho”, defende Jéssica.

O delegado Maurício Iacozzilli, da 23ª DP, explica que Marcelo responde o processo em liberdade porque o Ministério Público não acatou os argumentos apresentados para que ele fosse preso preventivamente. O caso corre em segredo de Justiça.

A família de Gláucia, despedaçada, passou o primeiro Natal sem a matriarca. A casa cor-de-rosa, onde a diarista fazia questão de reunir todos para a celebração de fim de ano, está abandonada.

Jeovana, traumatizada, não quer voltar nem para a casa da irmã, que fica muito perto de onde vivia com a mãe. Jéssica procura um lugar para se mudar e sair de vez dali. Agora ela cuida de cinco crianças, três suas e duas da mãe. A mãe de Gláucia também se mudou. A família de Lauro, com filhos pequenos, sofre pela ausência do pai que continua preso. Marcelo pode ser preso a qualquer momento.

Para Jéssica, uma mulher corajosa que conta toda essa história sem derramar uma lágrima, tão acostumada com o contexto de violência no qual cresceu, a culpa dessa situação é da Justiça. “Se ele tivesse ficado preso da primeira vez, nada disso teria acontecido.”

Onde não chega nem asfalto, onde vítima e algoz moram a algumas casas de distância, as medidas protetivas não funcionam. Onde homens são criados aprendendo a usar a força quando faltam as palavras, e as mulheres usam o silêncio quando deveriam gritar, a violência doméstica é cotidiana.

Em uma das palestras do projeto Elas por Elas nas escolas do Distrito Federal, escutei de uma delegada que talvez os números altos de ocorrências só comecem a cair nas próximas gerações. Como a quantidade de casos segue subindo, a conscientização da importância da denúncia, da posição da mulher na sociedade e no relacionamento, e da problematização do machismo estrutural é essencial.

Nesse ambiente de violência, Gláucia não sabia que estava presa em um ciclo muitíssimo documentado: essa convivência conturbada, entre tapas e beijos, não está nem perto da definição de amor. A história dela precisa ser contada não só para lembrar quem foi Gláucia Sotero, mas como um alerta a quem vive a situação. O final pode ser, sim, uma tragédia.

Enquanto isso, no Sol Nascente, uma família despedaçada planeja doar a casa abandonada para um centro espírita próximo que sempre ajudou Gláucia. Ninguém quer ficar no imóvel cheio de lembranças.

Juliana Contaifer

Formada em jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB), em 2012. Foi estagiária do Correio Braziliense e do Jornal da Comunidade. Atuou como repórter do Correio Braziliense, na editoria Revista, por três anos. Desde 2017, trabalha no Metrópoles, antes em Vida & Estilo e, desde janeiro de 2019, em Saúde. Venceu o Prêmio Bradesco Longevidade e o 25º Prêmio CNT de Jornalismo na categoria Internet.

Elas por elas

Em 2019, o Metrópoles criou projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal foram contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até terça-feira (31/12/2019), 16.954 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Foram registrados ainda 33 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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