Em seus 49 anos de vida, Eliane Maria de Sousa de Lima dedicou-se a ajudar o próximo. Nunca trabalhou, o seu tempo era voltado para os filhos, os pais e a família. Na noite de 21 de abril de 2019, domingo de Páscoa, ela cumpria pela última vez a missão pela qual era conhecida. Foi à casa de uma das irmãs para protegê-la da fúria do companheiro violento e, na tentativa de salvá-la, perdeu a própria vida.

Passava das 23h30, quando, depois de ser agredida pelo padrasto, Josué Pereira da Silva Filho, a sobrinha, de 12 anos, ligou para a tia pedindo ajuda. Desesperada, a criança disse que a mãe, Paula Otacílio de Lima, 43 anos, estava apanhando. Eliane morava a poucos metros da irmã e não pensou duas vezes, dirigiu-se ao apartamento para deter o cunhado. Ao se deparar com o casal discutindo e o homem com uma faca na mão, ela ficou entre os dois e foi atingida no peito pela lâmina de 32 centímetros. Morreu na hora a mulher que sempre cuidou de todos à sua volta.

O feminicida vivia há oito anos com a irmã da vítima e fugiu depois do crime. Mas acabou contido por moradores da Quadra 11 do Gama Leste, que tentaram linchá-lo. Bastante machucado, Josué só não foi morto porque a Polícia Militar chegou ao local. Na manhã seguinte, o juiz Gustavo Fernandes Sales determinou a prisão preventiva dele. “Verifico que o autuado foi preso em flagrante delito pela suposta prática de crime de homicídio praticado contra a mulher, em razão da condição de gênero, o que, por si só, evidencia a gravidade abstrata do delito”, observou o magistrado.

O velório e o enterro de Eliane aconteceram no dia seguinte e, como não poderia deixar de ser, a despedida foi dolorosa para familiares e amigos. Junto ao caixão, a filha de Eliane, Victoria Sousa de Lima, pedia, em vão, que a mãe acordasse. Com o filho de 8 meses no colo, ela questionava o porquê de aquilo ter acontecido: “Minha companheira, minha mãezinha, foi embora. Acorda, acorda, por favor!”, repetia a jovem de 22 anos. Victoria estava presente no momento do crime e chegou a ser golpeada por Josué com a mesma faca usada para matar a matriarca.

Mãe e filha tinham uma profunda ligação. Moravam juntas com os pais de Eliane, João Otacílio de Lima, 77 anos, e Maria do Socorro Sousa de Lima, 71 anos. O filho de Victoria, Miguel, era o xodó da avó. “Minha mãe, muito reservada, não frequentava a casa de ninguém. Estava sempre cuidando de mim, do neto e do meu avô”, contou à reportagem. Em uma inversão de papéis, o pai também recebeu bastante atenção, especialmente depois de ter sofrido um derrame, em 2017.

Os vizinhos confirmam a personalidade discreta de Aninha, apelido carinhoso pelo qual João Otacílio chamava a filha. “Eu a conhecia desde criança. Era uma boa pessoa, não fazia mal a ninguém”, comentou a aposentada Raimunda Maria da Conceição, 88 anos. A mulher chegou ao Distrito Federal na década de 1960, vinda do Ceará, assim como a mãe de Eliane. As duas teriam se aproximado em uma invasão da W3 Sul e, mais tarde, se mudado para o Gama. Na cidade, que hoje abriga pouco mais de 130 mil moradores, Maria do Socorro constituiu sua família. Os seis filhos nasceram lá: Eliane, Paula, Raquel, Ana Lúcia, Marcos Antônio e Roberto. Os dois últimos já falecidos.

No Gama, Eliane estruturou a própria vida. Terminou o ensino médio, mas nunca trabalhou. Caseira desde jovem, dedicou-se às atividades do lar. Adorava fazer crochê. Era católica e ia à missa diariamente. Sempre cuidou dos pais e se doava muito aos filhos. Além de Victoria, ela deu à luz um menino, Victor Henrique. O jovem morreu em 2009, aos 15 anos, vítima de homicídio. Segundo Raimunda, o crime ocorreu porque o adolescente, o primogênito de Eliane, “se envolveu com pessoas erradas”.

Em uma rede social, Victoria desabafou sobre a perda: “Vamos relembrar os dias com você e tudo que nos deixou de bom. Você já não está conosco fisicamente, mas a sua lembrança é muito viva e o amor continua presente. Irmão, a saudade hoje é ainda maior, será inevitável chorar. Pedimos a Deus serenidade, paz e luz para confortar nosso coração. Sinta-se abraçado. Nós te amamos!”. A mensagem foi publicada seis anos após a morte de Victor, em 27 de agosto de 2015, data do aniversário do garoto.

Eliane nunca foi casada formalmente, mas vivia com Giovani de Freitas, companheiro e pai dos seus filhos. Segundo Victoria, eles brigavam, mas a mãe nunca havia sofrido violência física. No dia da morte de Aninha, Giovani a acompanhou até o apartamento onde ocorreu a tragédia.

A violência doméstica, no entanto, era comum na rotina da irmã. “Josué vivia batendo na Paula e Eliane a aconselhava a largá-lo”, lembra Raimunda Maria da Conceição. Outra conhecida da família, a aposentada Maria do Socorro Rosário Borges, 60 anos, confirma os desentendimentos e agressões entre o casal. De acordo com Victoria, a mãe não gostava do cunhado e já havia ficado longos períodos sem falar com ele. “Todo final de semana íamos à casa da minha tia separar as brigas. Nunca imaginamos que poderia acontecer algo com ela, mas ficávamos preocupados”, lembra.

Depoimento, Victoria Sousa de Lima, filha de Eliane

No dia do crime, à polícia, Paula confirmou que Josué, descrito como um homem explosivo e violento, costumava ficar ainda mais alterado quando ingeria bebida alcoólica e isso havia ocorrido antes da morte de Eliane. “De acordo com a companheira do autor, era necessário esconder as facas quando ele bebia, uma vez que ficava agressivo e ameaçava utilizá-las, inclusive contra ela”, destaca trecho do boletim de ocorrência registrado na 20ª DP.

O homem nasceu em Itaberaba, cidade do interior da Bahia, e trabalhava como açougueiro no Gama. Segundo a filha de Eliane, ninguém da família gostava de Josué. “O marido da minha tia não vale nada, é usuário de drogas, violento. Todo mundo reclamava dele, até o pessoal da nossa rua”, conta Victoria.

Além de responder pelo feminicídio da cunhada, Josué tem outros dois registros de violência doméstica na Justiça, de 2014 e de 2018. Paula e o companheiro estavam juntos havia cerca de 10 anos. No Tribunal do Júri e Vara de Delitos de Trânsito do Gama, consta ainda contra ele outro processo do ano passado, no qual é acusado de dirigir embriagado.

A tragédia do dia 21 de abril poderia ter sido ainda mais grave se não fosse por Hiago Otacílio de Lima, sobrinho de Eliane, filho caçula de Ana Lúcia. O homem, de 26 anos, morava no mesmo prédio onde viviam Paula e Josué. “Certamente, se esse jovem não tivesse contido o suspeito, teríamos cinco ou seis pessoas mortas, todas mulheres que foram apartar a briga. Ele ia matar o pessoal todo lá. Era forte, mas o Hiago era mais”, afirmou o delegado da 20ª DP Vander Braga, responsável pelo flagrante.

No mesmo dia que o homem foi preso, a defesa de Josué entrou com um pedido de relaxamento de prisão. O advogado alegou que o cliente teria atacado os familiares da vítima a fim de se proteger de eventual agressão, mas o argumento não convenceu a juíza Maura de Nazareth. Na decisão, ela esclareceu o motivo: “O fato de o réu ser primário, possuir residência fixa e pretender colaborar com toda a persecução penal não afasta, por si só, a necessidade de se garantir a ordem pública”.

Muito abalados, os familiares pouco falaram com reportagem, apesar das inúmeras tentativas de ouvi-los. Na última semana de junho, procurada mais uma vez pelo Metrópoles, Paula se negou a conceder entrevista. Ela disse entender a importância da matéria, mas preferiu não participar para “não reviver o assunto”. Dias depois da morte da irmã, deixou o apartamento onde vivia com Josué, localizado em um prédio comercial que abriga um supermercado. Hoje, mora na casa dos pais.

Crime triplamente qualificado

O feminicídio de Eliane foi o segundo registrado no Gama neste ano. O Ministério Público ofereceu a denúncia à Justiça em 6 de maio, 15 dias depois do assassinato. “Josué é acusado de homicídio triplamente qualificado: por motivo torpe, por ter dificultado a defesa da vítima, que não esperava o ataque, e por feminicídio, pois o crime ocorreu em contexto de violência doméstica”, explica o promotor responsável pelo caso, João de Sá. Como matou a cunhada na frente da filha dela, a pena pode ser agravada em ⅓, conforme a Lei Maria da Penha.

O promotor destaca que, apesar de gravíssimas, mortes como a de Eliane são de fácil apuração, já que normalmente ocorrem dentro de casa e na presença de testemunhas. “Normalmente, levamos um feminicídio a júri em seis meses.” Não há dados nacionais a respeito do tempo médio de tramitação de processos desse tipo de crime, mas artigo produzido pela professora Maria Tereza Sadek aponta que esses casos foram julgados de forma significativamente mais célere: 1,75 vez mais rápido em relação aos demais.

Para Tainã Góis, advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, o Brasil reproduz uma estrutura que normaliza a violência contra a mulher, impedindo que as denúncias venham a público e dificultando que as mulheres encontrem meios de se libertar. “Mais do que uma resposta rápida da Justiça, uma investigação coerente, que consiga equilibrar o direito à ampla defesa e a importância de preservar a palavra e o valor das vítimas, levando em consideração a desigualdade social de gênero e a especificidade dos tipos penais, é essencial para que o Judiciário comece a fazer frente à violência contra a mulher”, observa.

Essencialmente simples

Uma tia de Aninha, que preferiu o anonimato, destaca a personalidade da sobrinha, sempre dedicada a cuidar dos outros. “Tudo na vida dela foi muito simples, queria proteger todo mundo. Nunca achamos que isso aconteceria com a gente, mas, aos poucos, as coisas estão se ajeitando.”

Os familiares tentam seguir a vida, mas Eliane faz muita falta, em especial para a filha. “Estou ficando doente por causa disso tudo, evito sair. A morte da minha mãe está me afetando demais”, disse Victoria à reportagem. O único neto também sentiu a morte da avó. No dia do enterro, a filha ressaltou a forte ligação entre os dois, destacando que naquela manhã o bebê, hoje com 10 meses, acordou passando mal.

“A minha avó ainda está abalada, só vive triste, sente falta dela, que era seu braço direito”, diz Victoria. Apesar do luto, a matriarca tenta manter a rotina. “Socorro é forte. Não parece, mas é. Sentimos muita saudade, mas a vida tem que continuar”, revela a tia. Josué aguarda preso pelo julgamento, enquanto a família espera por Justiça.

Colaborou Luísa Guimarães

Thaís Cieglinski

Thaís Cieglinski

Jornalista graduada pela Universidade de Brasília (UnB), passou pelas redações do Correio Braziliense e do Metrópoles. Foi assessora de imprensa na Câmara dos Deputados e na Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e atualmente ocupa cargo de chefe de reportagem na Secretaria de Comunicação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Venceu o Prêmio Correios de Jornalismo.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (05/07/2019), 8.098 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatarem abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 14 feminicídios. Segundo a polícia, apenas uma pequena parte das mulheres que vive situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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