Todos os dias, 400 mil motoristas e cobradores de ônibus urbanos deixam suas casas e famílias antes de o sol nascer para garantir o direito constitucional de ir e vir dos brasileiros. Muitas vezes, enfrentam condições precárias para não deixar que o Brasil pare nestes tempos de pandemia do novo coronavírus.

Enquanto a orientação geral é ficar em casa para conter o avanço da Covid-19, esses profissionais vestem o uniforme e vão para as ruas. Motoristas e cobradores se expõem diariamente à infecção que atingiu milhões de pessoas pelo mundo. Só no Brasil, o novo coronavírus ceifou 93.563 vidas – pais, mães, filhos, irmãos, avós, namorados, esposas, maridos – até o dia 1º de agosto, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

A maior parte dos funcionários de empresas de transporte urbano nunca viveu o isolamento imposto devido à Covid-19 – de acordo com pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a categoria tem 71% de chance de ser contaminada pelo vírus. A classe só perde no quesito risco de atuação para os profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros.

Independentemente da aglomeração ou do perigo iminente, motoristas e cobradores carregam vidas todos os dias. Levam 20 milhões de brasileiros aos seus destinos em todo o país. Para exercer o ofício a eles designado, pagam o preço do trabalho com a própria saúde – a qualquer momento podem ser infectados pelo vírus.

Números do transporte e impactos da pandemia

Compare o fluxo de passageiros e a situação econômica das empresas de transporte urbano no Brasil entre março e julho de 2020
Em março
20 milhões
de pessoas se locomoviam por meio do transporte público urbano no Brasil
Em junho
8 milhões
de pessoas usaram o transporte público urbano no país
Em março
100 mil ônibus
de transporte urbano rodavam em 2,9 mil cidades
Em junho
60 mil ônibus
de transporte urbano rodavam em 2,9 mil cidades
Em março
400 mil trabalhadores diretos – entre motoristas, cobradores, mecânicos, fiscais e lavadores – prestavam serviços
Em junho
Trabalhadores com comorbidades foram afastados de suas funções. Cerca de 14 empresas suspenderam as atividades definitivamente. Um grupo econômico grande de Salvador, o CSN, com 900 ônibus, parou de operar. Devolveu a responsabilidade à prefeitura e deixou à deriva 4,5 mil trabalhadores
IMPACTO:
Em março
Até 1º de julho, as empresas de transporte urbano carregavam 40% dos 200 milhões de passageiros de todo o país
Em junho
Com a pandemia, 60% das pessoas deixaram de pegar um ônibus para se locomover

Mortos

São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal já enterraram mais de 94 motoristas e cobradores. Isolados em hospitais, esses profissionais que se contaminaram ao exercer o ofício diário morreram sozinhos em unidades de saúde espalhadas pelo país. Não puderam dar o último abraço em seus familiares.

Juvenal Borges da Silva trabalhou como motorista por 20 anos. Em seu último emprego, conduzia passageiros da São José, empresa que faz uma das linhas com o maior número de pessoas do Distrito Federal. Ele partia de Ceilândia e só finalizava a rota na Rodoviária do Plano Piloto.

Todos os dias acordava muito cedo, por volta de 4 horas da manhã, para iniciar a jornada. Mesmo com os decretos do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que suspenderam diversas atividades na capital, Juvenal continuou a trabalhar. Levava quem não podia ficar em casa ao destino desejado. Sempre com o coletivo superlotado, ele não conseguia manter o distanciamento recomendado pelas autoridades.

Nos horários de pico, entre 6h e 8h, os passageiros ficam muito próximos uns dos outros. Mãos juntas segurando as barras de ferro, para não cair com o balançar do ônibus. Quem está sentado segura a bolsa de quem está em pé. As janelas, muitas vezes, não abrem. Estão emperradas. A ventilação é precária.

No início da pandemia, em meados de março e abril, a doença e as medidas de segurança ainda eram pouco conhecidas. Juvenal ia trabalhar com álcool em gel e, quando possível, fazia a higienização das mãos
– à época, o uso da máscara não era obrigatório. Em maio de 2020, já seguindo as novas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), e mesmo depois de a empresa adotar a limpeza sistemática dos ônibus, ele apresentou os primeiros sinais da Covid-19. A tosse persistente chamou a atenção.

“Ele acreditava que estava com uma gripe e, como não apresentava febre, não procurou ajuda médica. Quando começou a sentir falta de ar, decidiu se consultar em uma unidade de saúde. Realizou uma tomografia, que deu resultado ‘sugestivo para a Covid’. Isso era uma sexta-feira. Voltou para casa. No domingo, piorou e precisou ser internado. Dois dias depois estava na UTI. Após algumas semanas, recebemos uma ligação do hospital. Ele havia morrido”, relata a enfermeira Thalissa Geraldo da Silva, 30 anos, nora da vítima.

Diabético, Juvenal perdeu a batalha contra o novo coronavírus aos 52 anos. Deixou dois filhos, esposa, netos e uma família inteira com medo da gravidade da Covid-19. “Ele era um homem muito comprometido. Gostava de tirar férias, viajar, estar com os netos. Meu sogro faz muita falta”, conta Thalissa, que também é filha de motorista do transporte urbano da capital. “Ficamos preocupados todos os dias”, revela.

Segunda categoria mais afetada

O caso de Juvenal não é isolado – por esse motivo, as situações vividas por ele tornaram-se alvo de estudo. O pesquisador Yuri Oliveira de Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisou todas as profissões do Brasil a fim de entender os contextos e os riscos de cada uma durante a pandemia de Covid-19.

“Sem dúvidas, a saúde é a área mais afetada, pois esses profissionais estão na linha de frente no cuidado com os doentes. Porém, o setor de transporte é a segunda categoria com maior risco. Falamos de 60% a 65% de probabilidade de contágio quando é abordado o setor administrativo das empresas e de 71% para motoristas e cobradores”, ressaltou Yuri Oliveira, que é membro do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ, ao Metrópoles.

O pesquisador frisa que a situação dos empregados de empresas de ônibus é complicada. “Não existe distanciamento dentro do transporte público. Essa interação entre passageiro, motorista e cobrador gera um risco maior para todo mundo”, analisa.

Mesmo com todos os cuidados das empresas em higienizar coletivos, fornecer equipamentos de proteção individual (EPI’s), como máscaras e luvas, a chance de contágio é alta. A partir do momento em que um local gera aglomeração de pessoas, ele se torna um ponto de risco.

Nos ônibus, temos também superfícies de muito contato. Qualquer lugar em que há muita gente e pouca circulação de ar é preocupante”

Ana Helena Germoglio, infectologista do Hospital Regional da Asa Norte (Hran)

Por outro lado, no entanto, é possível tomar providências para aumentar a segurança da comunidade que usa o transporte público no país. Segundo a infectologista Ana Helena Germoglio, do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), é necessário ampliar o número da frota para que haja distanciamento entre as pessoas. A médica ressalta que, apesar de muito importantes no combate ao vírus, as máscaras e a higienização, sozinhas, não eliminam totalmente a chance de contaminação.

A infectologista destaca ainda a importância do teste para condutores, uma vez que, além de correrem o risco de contágio, eles podem virar vetor de contaminação. “Cada vida perdida é uma família inteira em sofrimento. Ao primeiro sinal de infecção, seja tosse, febre, coriza, dor de garganta, perda do olfato e paladar, o profissional deve ser afastado. O tratamento precoce vai ajudá-lo a se recuperar e a não disseminar o vírus. Para cada diagnóstico de Covid-19, a probabilidade é de que outras três pessoas ao redor do infectado testem positivo para a doença”, frisa Ana Helena.

“Só uma gripe”

Motorista e diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Terrestre do DF (Sittraer-DF), Jair Reis não teve acesso a esses testes e perdeu a vida para a Covid-19 dois dias antes de completar 48 anos. Ele não tinha comorbidades que o incluíssem no grupo de risco e, por isso, não imaginava que poderia ser vítima fatal da doença.

Jair trabalhou como motorista no início de sua carreira e seguiu no cargo por mais 10 anos. Por último, atuava como diretor do sindicato da categoria. Ele liderava os colegas na briga por direitos dos integrantes da classe. Todos os dias, acompanhava a rotina dos rodoviários das 8h às 18h. Quando retornava para casa, atendia mais outros tantos companheiros de profissão.

Devido ao medo de ser infectado pelo novo coronavírus, batalhava por medidas de higienização e participava de reuniões com o governo e sindicatos patronais. Queria definir parâmetros de segurança para que os rodoviários continuassem a exercer a função, considerada essencial.

O sindicalista estava sempre nas rodas de conversa. Mesmo diante dos problemas e da rotina pesada, procurava manter o ambiente descontraído. Por querer avançar nos direitos trabalhistas da categoria, continuou trabalhando normalmente, como fazia todos os dias.

“A Covid-19 começou com uma gripe forte. Falei várias vezes para o meu marido ir ao hospital. Mas ele decidiu se automedicar e continuou indo para as ruas. Trabalhou dois dias com dor no peito. Depois disso, piorou muito. Não teve jeito. Levei-o ao pronto-socorro. Ele tinha plano de saúde, sabe? Não tinha por que não se consultar”, relata a esposa de Jair, Guilhermina de Almeida, 47 anos.

Jair só parou de trabalhar porque precisou ser internado. Após uma semana no hospital, teve alta. Voltou para casa com dor nas costas, sem apetite. “Ele não comia nada. Liguei para o médico, e fui orientada a aumentar a dose do Aerolin. Não adiantou. No dia seguinte, falei com profissionais de saúde que ficam na emergência. Logo depois, uma ambulância buscou o meu marido, e nunca mais o vimos com vida”, conta Guilhermina.

O contato era só por telefone. Foram 15 dias na UTI, até que o motorista não resistiu. Jair Reis deixou esposa, três filhos e uma neta de 5 anos. Todos foram contaminados pelo coronavírus. Dona de casa, Guilhermina sentia fortes dores de cabeça no momento em que conversava com a reportagem, no início de julho. Estava com cansaço crônico e dores no corpo.

“Eu não me preocupei comigo. Só queria cuidar dele. Quando meu marido morreu foi que a ficha caiu. A gente não conseguia fazer teste, estávamos com sintomas. Precisei levar o atestado de óbito do Jair ao posto de saúde para nos atenderem. Foram três tentativas de realizar o exame. Quando fizemos, todos estávamos infectados”, desabafa a dona de casa.

Iniciativas das instituições públicas

Jair perdeu a vida batalhando pelos direitos de sua categoria. Mas ele não estava sozinho nessa luta. Órgãos públicos, universidades e especialistas atuam com esse mesmo propósito. Para proteger os trabalhadores, o Ministério Público do Trabalho iniciou um projeto de conscientização junto a governos e prefeituras. Ofícios, sugestões e medidas práticas foram necessários para garantir a redução do número de infecção entre esses profissionais.

Logo no início da pandemia, as Procuradorias Regionais de Trabalho elaboraram, em conjunto, um plano de contenção levando em conta especificidades das categorias e medidas que poderiam ser aplicadas para ajudar cada classe. Além dos profissionais da saúde, os trabalhadores do transporte coletivo foram incluídos nessas ações devido ao risco da atividade.

No Distrito Federal, a procuradora do Trabalho Helena Fernandes Barroso Marques notificou, primeiramente, as empresas de transporte coletivo urbano. “A recomendação previa medidas gerais, como limpeza frequente dos veículos e disponibilização de álcool e máscaras, e garantia a circulação do ar nos ônibus com janela e teto abertos. Sempre buscando minimizar o perigo de contágio. A preocupação com o trabalhador também impacta o usuário”, frisa.

Depois dessa medida, e com o decorrer do tempo, o MPT, em ação conjunta com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), começou a receber denúncias de descumprimento do plano de contenção. Houve relatos de motoristas que, mesmo doentes, iam trabalhar – o que foi confirmado pela reportagem do Metrópoles após entrevistas com familiares de profissionais mortos pela Covid-19.

Jair, o motorista e sindicalista que morreu pela Covid-19, não fez o teste de coronavírus nos primeiros sintomas e foi desempenhar suas atividades. A cobradora de ônibus Taciara da Silva Rodrigues, 50 anos, (veja a história dela abaixo) acredita ter trabalhado infectada por pelo menos três semanas, sem conseguir se testar. “Só fui ao médico quando estava escarrando sangue. Pensei que era só uma gripe”, disse.

O mesmo ocorreu com outros 50 motoristas e cobradores dos 97 testados no Distrito Federal até o dia 20 de julho. Nove morreram pouco tempo depois de serem internados e os demais, assintomáticos, assumiam suas funções normalmente. “Não há teste para a categoria, trabalhamos sem saber se estamos contaminados, levando 500 mil pessoas por dia”, afirmou o diretor do Sittraer-DF, João Osório.

Os procuradores receberam outras denúncias, diferentes das ouvidas pela reportagem. Por isso, iniciaram um processo de fiscalização para o cumprimento das medidas. A única questão sem acordo, no entanto, foi quanto à testagem. Embora os profissionais desejem saber se estão ou não contaminados, o governo não conseguiu garantir o exame para a categoria – por falta do equipamento, dificuldade em comprar, denúncias de corrupção com a interrupção de pregões ou por destinar a testagem aos trabalhadores da área da saúde.

Mudança na rotina e no comportamento

Taciara da Silva Rodrigues sentiu essas mudanças na própria pele. Cobradora há 28 anos, ela precisou mudar toda a sua rotina por causa do coronavírus. O café da manhã no terminal rodoviário não acontece mais. O caminho até a parada de ônibus, que fazia acompanhada de amigos, tornou-se solitário. O batom que sempre gostava de passar agora não colore mais os seus lábios.

Ela foi a primeira cobradora infectada no Distrito Federal pela Covid-19. “Nunca tive medo de morrer. Com essa doença, passei a ter”, revela.

O diagnóstico positivo para o novo coronavírus saiu em 22 de abril. Mas, antes disso, Taciara sofreu com tosse e diarreia por 10 dias. “Eu não conseguia fazer o teste. Só fui ao médico quando comecei a escarrar sangue. Fiquei 14 dias de quarentena, internada três dias, e ainda tenho sequelas do coronavírus”, disse ao Metrópoles.

Depois de curada, a profissional desenvolveu hipertensão, ansiedade e depressão. Em tratamento contra essas doenças adquiridas, ela adotou um ritual diário para sair de casa. “O médico disse que não me contamino de novo, mas eu não acredito. Vou proteger a mim e aos meus colegas”, diz.

A cobradora sai de casa todos os dias às 4h20. É o tempo que precisa para pegar o primeiro ônibus, às 4h30, em Samambaia. Antes disso, ela toma banho, põe o uniforme, coloca máscara e protetor facial (face
shield), separa o álcool em gel e pega uma garrafa de água. “Estamos na linha de frente. Dá medo”, ressalta.

Para chegar ao seu destino, Taciara pega três coletivos. O primeiro, vazio. O segundo e o terceiro, cheios. A empresa para a qual ela trabalha tomou todas as medidas de prevenção: higieniza os ônibus com solução de água sanitária; fornece equipamentos de proteção; orienta para que os vidros sejam mantidos abertos. Mas, no horário de pico, não tem jeito – a aglomeração é inevitável.

O Metrópoles acompanhou a rotina de Taciara por um dia, em todas as conduções, até a chegada ao terminal do Cruzeiro. Foram duas horas. Depois do expediente, são mais duas horas em coletivos para chegar em casa. Ao cruzar a porta do apartamento onde mora, a cobradora coloca imediatamente a roupa no sabão – o objetivo é evitar a própria contaminação e a de amigos e familiares.

Medidas de prevenção

No DF, onde Taciara trabalha, a linha que ela percorre carrega cerca de seis pessoas por viagem. Na capital da República, o governo e as empresas de ônibus optaram por manter 100% da frota em atividade. Com o movimento 60% menor, é possível ver, fora dos horários de pico, coletivos vazios, carregando somente quem de fato não pode cumprir a quarentena. O resultado é uma quantidade menor de contaminados e de óbitos em decorrência do novo coronavírus.

Com a explosão de casos, São Paulo e Rio de Janeiro adotaram medidas diferentes. As autoridades locais determinaram que as empresas de transporte de passageiros reduzissem as frotas em até 40%. Até o começo de julho, os dois estados já registravam mais de 80 mortes entre cobradores e motoristas por causa da doença. No DF, nove profissionais da categoria perderam a vida para a Covid-19.

Um gráfico elaborado pelo Metrópoles, a partir de dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), mostra como a movimentação nos 2,5 mil ônibus urbanos do DF aumentou depois que decretos do governador Ibaneis Rocha (MDB) flexibilizaram a quarentena.

tabela

No Rio de Janeiro, a categoria se sente abandonada pelo governo local. O vice-presidente do Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus do estado (Sintraturb Rio), José Carlos Sacramento, relata que os profissionais estão amedrontados.

“As empresas tiraram 60% da frota de circulação, dos nove mil ônibus existentes. Nos horários de pico, os ônibus andam superlotados. Já temos 180 infectados e 45 óbitos. Com a flexibilização, vai aumentar o número. Nós não temos hospitais. As pessoas morrem sem serem atendidas”, lamenta José Carlos, que é motorista há 40 anos.

No estado fluminense, os condutores de coletivos têm dupla função – além de dirigir, atuam como cobradores. “O passageiro dá o dinheiro, nós damos o troco, esperamos a fila. Os ônibus vão abarrotados, aglomerados. É uma pessoa em cima da outra, só Deus para salvar”, assinala.

Ainda segundo o vice-presidente do Sintraturb Rio, alguns motoristas relatam que há passageiros que se recusam a usar máscara. “Nós não podemos impedi-los de entrar nos coletivos, pois corremos o risco, inclusive, de sermos agredidos. Então, tem quem fique sem a proteção facial mesmo. Os condutores usam EPIs, mas não têm poder de polícia para repreender a população”, pontua.

Em Florianópolis, o cenário é bem diferente – os coletivos ficaram parados por três meses. E os motoristas só voltaram às atividades em 17 de junho, após fazerem testes.

O retorno do transporte público na cidade só foi possível após uma série de restrições, como circulação de coletivos com apenas 40% da capacidade – medida adotada para manter o distanciamento entre passageiros –; liberação de ônibus extras para atender demandas; uso de máscara; janelas abertas; entre outras. Até a última atualização desta reportagem, Florianópolis tinha oito motoristas de coletivos infectados e nenhuma morte.

Em Curitiba, 35 casos de Covid-19 foram confirmados entre os 8 mil profissionais do setor. Na capital do Paraná, a pandemia teve diversas fases. Nas primeiras semanas, com a adoção de medidas de isolamento social, o fluxo de passageiros de transporte coletivo caiu 70%.

Logo no início, assim como ocorreu no Distrito Federal, o prefeito optou por deixar 100% da frota circulando. Algumas semanas depois, decidiu diminuí-la em 35%.

De acordo com o Sindicato das Empresas de Ônibus de Curitiba (Setransp), nesse período, cartazes e áudio dentro dos veículos alertavam sobre a doença e davam dicas de prevenção. Além disso, a higienização dos coletivos e terminais foi reforçada, bem como a recomendação aos idosos para que eles não utilizassem o transporte público nos horários de maior movimento.

Quando o comércio reabriu, as empresas de ônibus entraram em contato com a Associação Comercial do Paraná (ACP) e pediram a flexibilização dos horários de funcionamento dos estabelecimentos, a fim de evitar aglomeração no rush.

De 16 de março a 19 de abril, o déficit no orçamento do sistema de transporte coletivo de Curitiba alcançava R$ 61 milhões devido à diferença entre oferta (frota) e demanda (passageiros).

Em 3 de maio, a Câmara Municipal aprovou o Regime Emergencial de Operação e Custeio do Transporte Coletivo. Assim, foi possível fazer uma política para conter a disseminação do vírus. Depois disso, os ônibus voltaram a rodar com 50% da capacidade de lotação.

Capacidade e contágio

“Com todos os cuidados, conseguimos reduzir o contágio entre os funcionários, mas como garantir esse distanciamento quando as empresas estão quebrando? Esse comércio vive de passagem. É de responsabilidade do poder público colocar uma frota capaz de rodar, sem aumentar o risco de contaminação da população”, ressaltou Otávio Cunha, presidente da Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos (NTU).

Segundo Cunha, a partir de relatos dos associados, em muitas cidades brasileiras há empresas operando com 60% de oferta de serviço, transportando 30% das pessoas. “Isso não paga viagem. Os governos precisam ajudar. Mas há uma incompreensão da Justiça quando se trata desse apoio. Os auxílios para as empresas de ônibus no DF, em Minas Gerais e Goiás foram negados. É difícil manter um equilíbrio econômico”, analisou o presidente da NTU.

De acordo com dados da associação, em condições normais, a população usuária de transporte público faz 37 milhões de viagens por dia. São cerca de 20 milhões de pessoas que se locomovem dessa forma. Hoje, com a pandemia, são 8 milhões.

“Precisamos encontrar soluções. Os horários de comércios, shoppings, empregos, também precisam ser flexibilizados para não haver lotação durante os picos”, frisa. Otávio Cunha ainda ressalta que os motoristas das empresas fazem um trabalho essencial e, muitas vezes, insubstituível. “Eles não transportam carga, transportam vidas, pessoas. É necessário ter apoio para trabalhar”, analisa.

Espaço no ônibus

Em algumas unidades federativas, como DF e SP, parte dos custos do transporte público é subsidiada pelos governos locais. Mas essa não é regra, na maioria das cidades, as empresas se sustentam com a venda de passagens. Com isso, lotam os ônibus para manter os lucros, oferecendo menos opções de linhas e poucos veículos
arte onibus

A Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos buscou experiências na Europa e nos Estados Unidos a fim de criar um protocolo de Covid-19. O documento foi enviado ao Ministério de Desenvolvimento. Confira as normas:

  • As empresas devem higienizar os coletivos diariamente
  • Funcionários e passageiros só podem entrar nos veículos usando máscara
  • Motoristas precisam ser isolados em suas cabines por um vidro (ou acrílico)
  • O dinheiro deve estar contado, para não haver necessidade de troco (acabando com a função do cobrador)
  • Os passageiros têm de manter dois metros de distância uns dos outros
  • As janelas devem estar abertas para ventilar

Até julho deste ano, 14 empresas suspenderam as atividades no país devido à pandemia. Em Salvador, o grupo econômico CSN, proprietário de 900 ônibus, entregou as chaves para o governo por causa dos prejuízos. Cerca de 4,5 mil profissionais não têm condição de atuar porque estão com o contrato suspenso, alternativa possibilitada pela MP nº 936, que prevê o complemento de parte do salário dos trabalhadores.

“Se não houver um socorro, é possível que esse serviço entre em colapso. Vai depender da compreensão do poder público. Em São Paulo e Brasília, o transporte é subsidiado pelo governo, mas essa não é a realidade do país. Belo Horizonte, Salvador, Vitória têm ajudado. Há a necessidade de acordos tanto para a saúde dos funcionários quanto para a saúde financeira das empresas”, complementa o presidente da NTU.

Crise financeira

A Pesquisa de Impacto no Transporte – Covid-19 feita pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) ouviu 619 empresas de cargas e de passageiros de todos os modais de transporte entre os dias 5 e 10 de
junho para entender o impacto da pandemia no setor
  • 34,1% estão com a capacidade de pagamento muito comprometida
  • 64,6% sofreram queda no faturamento em maio
  • 41,7% reduziram custos com foco na mão de obra, como a suspensão temporária do contrato de trabalho e a diminuição proporcional de jornada e salários
  • 34,1% adiaram o prazo para recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)
  • 6,3% usaram linhas especiais de crédito
  • 74,8% avaliam que a atual crise trará impactos negativos para a sua empresa por quatro ou mais meses
  • 23,7% acham que esses efeitos negativos devem perdurar por pelo menos um ano
  • 38,1% precisaram efetuar demissões

Problema social

O transporte urbano é instrumento importante na retomada da economia, mas ele é também um grande vetor de disseminação da doença. Para o professor do Programa de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Rômulo Orrico, os gestores públicos têm de levar em conta as questões de mobilidade quanto à liberação das atividades não essenciais.

“Estão analisando a questão hospitalar, as UTIs, mas esquecem como as pessoas precisam de meios para se locomover até esses lugares. A mobilidade exige uma proximidade entre os indivíduos. No Rio de Janeiro, a cada quatro deslocamentos, três são mediante transporte público. Por conta disso, variações no afastamento dos passageiros no banco de trás podem ser um indicador de contágio”, salienta.

Professor das disciplinas psicologia e sociologia nos cursos de serviço social e pedagogia do Centro Universitário IESB e pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência e Conflitualidades da Universidade de Brasília (UnB), Gilvan Gomes frisa que os profissionais do transporte público estão arriscando a vida por outras vidas, pelo capital e pela economia.

“Eles dirigem pessoas de atividades essenciais, como médicos, policiais. Porém, esse transporte é muito mais pela manutenção da economia. Motoristas e cobradores não têm opção, porque o Estado decidiu quem seria colocado em risco. Eles estão nessa lista e não podem ser demitidos pela necessidade de manter suas famílias”, aponta o psicólogo e sociólogo.

Para o especialista, o transporte da grande massa, de trabalhadores de serviços não essenciais, deveria ser totalmente parado. “Se estivéssemos em guerra, teríamos shoppings? Comércio? Durante os bombardeios de Nagasaki, cerca de 80 mil pessoas morreram. Já temos 90 mil mortos, temos mais de uma Nagasaki. Agora vamos querer uma Hiroshima?”, questiona Gomes.

O pesquisador se referiu aos dois bombardeios realizados pelos Estados Unidos contra o Japão durante a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Bombas nucleares foram lançadas contra civis. Hiroshima teve cerca de 160 mil óbitos e Nagasaki, 80 mil.

“Por que não parar? Por que o governo coloca essas atividades como essenciais e não dá condições para essas pessoas viverem? Não se contaminarem? O papel deles é com a economia. As prioridades são as que tornam a produção essencial”, completou Gilvan Gomes.

“As pessoas precisam trabalhar”

Motorista há 18 anos, Renato Evangelista dos Santos mora em Belo Horizonte (MG). Ele tem três filhos e divide a casa com a mãe – uma senhora de 65 anos, hipertensa e que sofre com fibromialgia.

Todos os dias, Renato sai de casa às 3h30 para fazer a Linha 9404, que liga Nova Esperança a São Lucas. Ele é o responsável por levar moradores de uma favela na região ao trabalho. Passa ainda por um setor hospitalar, onde deixa profissionais da saúde.

“Eu gosto demais de dirigir. Apesar do medo de pegar a doença, não paro de trabalhar. Estou na mesma linha há 7 anos. A gente cria vínculos, espera a pessoa chegar na parada para ela não perder a linha. Pois, se isso ocorrer, ela só terá ônibus de novo em 40 minutos, 1 hora”, comenta o motorista.

Renato se cuida, usa equipamentos de proteção e tenta repassar os conhecimentos adquiridos sobre a doença. Porém, nem sempre encontra compreensão. Os riscos para ele vão além da contaminação. Em junho, foi agredido por passageiros porque se recusou a levar três pessoas que estavam sem máscara.

“O ônibus estava cheio, tinha fila, e um grupo de três pessoas queria entrar sem máscara. Pedi para todos colocarem o item de proteção, eles se recusaram. Então, arranquei com o ônibus e fui embora. Mas três amigos deles estavam atrás de mim, me ameaçaram, disseram que me esperariam na parada. Quando um deles saiu, uma mulher me deu um tapa no rosto”, relata.

No momento desse episódio, Renato teve taquicardia, lamentou o ocorrido e pensou: “O que estou fazendo aqui?”. O motorista disse que, no mesmo instante, os filhos vieram à cabeça, o sustento da casa e o apoio dos outros passageiros. Quem estava no coletivo se solidarizou com Renato, conversou com ele, fez orações. “Aí eu tive forças para seguir e pensar: ‘Vai dar tudo certo’”, conclui o profissional.

DIRETORA-EXECUTIVA
Lilian Tahan
EDITORA-EXECUTIVA
Priscilla Borges
EDITOR-CHEFE
Otto Valle
COORDENAÇÃO E EDIÇÃO
Olívia Meireles
REPORTAGEM
Manoela Alcântara
REVISÃO
Viviane Novais
EDICÃO DE ARTE
Gui Prímola
DESIGN
Moisés Amaral
EDIÇÃO DE VÍDEO
Gabriel Foster
IMAGENS DE DRONE
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EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Daniel Ferreira
Michael Melo
FOTOGRAFIA
Rafaela Felicciano
Igo Estrela
TECNOLOGIA
Allan Rabelo
Saulo Marques
André Marques
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