A experiência de oito dias sem paladar de um cozinheiro com Covid-19
Por cinco dias fiquei completamente sem paladar e olfato e precisei cozinhar. Aqui, divido as angústias e sensações
atualizado
Compartilhar notícia
Confesso que quando passei a entender melhor como se manifestava a Covid-19 eu tinha dois medos intensos: infectar alguém e perder o paladar e olfato. Vários amigos e conhecidos desenvolveram a doença e alguns não se livraram destes sintomas por meses. Há relatos de pessoas que permanecem assim após várias semanas.
Infelizmente é dos sintomas mais comuns da doença. Um estudo recente contabilizou que 86% dos contaminados tiveram seu olfato afetado. Embora haja tratamento, é algo com pouco consenso pois é muito recente.
Pois bem, além de ser minha profissão, comer e preparar pratos é também o meu maior prazer e o medo era grande. Faz-se necessário reforçar que permaneci em isolamento total por 15 dias, sem sequer pedir delivery.
Primeiro dia
No quinto dia a partir dos primeiros sintomas da doença, percebi que meu paladar e olfato não estavam normais. Isso foi piorando progressivamente por mais dois dias. Me recusava a aceitar que era Covid e me convencia que era a perda comum, como a que temos com resfriados, por exemplo, já que o sistema respiratório comprometido acaba afetando esses sentidos.
Na medida em que os dias passavam, a situação ficava pior, até que ao fim do sétimo dia não havia mais como negar, eu estava sem paladar e olfato. A última coisa que comi tinha um sabor bastante fraco, mas ainda existia.
Completamente sem gosto
No oitavo dia acordei, fiz meu café e o sabor era de algo quente, sequer água, pois água tem um sabor. Assustado comecei a cheirar os diferentes grãos que tenho em casa. Nenhum tinha cheiro de nada. Peguei um preparo meu que tinha na geladeira, apenas textura.
Apelei para sabores fortes e peguei uma barra de chocolate ao leite bastante doce: parecia que eu comia massa de modelar, por sua textura macia e sabor de nada.
Duas coisas juntaram nesse momento, um desespero por não sentir sabor e a incerteza de quanto tempo isso duraria.
Ao fim da tarde ainda tive uma live (em casa) na qual eu ensinei a preparar cookies. Bizarramente, na memória me vinha o aroma que já conheço bem, então como um placebo eu sentia o perfume enquanto assavam, mas na hora que fui provar no vídeo, tive que fingir, pois não tinha gosto de absolutamente nada para mim.
Disso desenvolveram-se duas coisas completamente opostas: um completo desânimo por comer e uma compulsão alimentar devido à ansiedade que me causou. Quanto tempo o problema duraria?
Retornando
Foram quatro dias assim, completamente desanimado, porém comendo muito. E a compulsão te manda buscar sabores fortes. Eu preparava pães de queijo congelados recheados, pipoca com condimentos fortes e comi todos os doces da casa.
No quinto dia, descongelei uma refeição pronta e, para minha surpresa, comecei a perceber sabores de especiarias e hortelã. Era como se eu estivesse comendo no melhor restaurante do mundo. No terceiro dia a partir disso, meu paladar estava completamente normal, mas confesso que a compulsão e a ansiedade permanecem.
Há quem mencione chefs famosos que perderam seus paladares e continuam criando, mas reforço que isso ocorre devido à memória que se tem. Embora seja louvável, não é mais possível se criar nada que saia da enciclopédia de sabores de suas mentes. É um tiro no escuro inventar novos sabores nessa situação.
Finalizo o relato ressaltando o óbvio: se cuidem. Eu tive sintomas leves e recuperei completamente o paladar. Porém, há dois meses já tenho um quadro depressivo com compulsão alimentar, que não é claro se é ou não ocasionado pelo vírus que, comprovadamente, pode afetar o sistema nervoso.