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Nações de IDH mais baixo aproveitam a policlínica da Rio-2016

Espaço recebe visitas de milhares de atletas e membros de delegações (quase) anônimos que usam o centro para dar um upgrade na saúde, uma vez que seus países têm limitações

atualizado

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Rio 2016/Gabriel Heusi
policlinica
1 de 1 policlinica - Foto: Rio 2016/Gabriel Heusi

O tornozelo de Jade Barbosa passou por ali. Também o cotovelo de Sarah Menezes e o dente da frente de um boxeador medalhista de ouro. Até Michael Phelps deixou seu registro no pedaço. Mas o que marca a Policlínica da Vila Olímpica da Rio-2016 é menos a fofoca celebrativa e mais a visita de milhares de atletas e membros de delegações (quase) anônimos que usam o centro médico para dar um upgrade na saúde, quando a saúde de seus países tem lá suas limitações.

No galpão de 3,5 mil metros quadrados, que fica entre o restaurante e a academia de ginástica, especialistas de diferentes áreas abrem prontuários digitais a nações cujo atendimento médico muitas vezes nem chegou ao analógico. “A gente acaba consultando principalmente as delegações de países com IDH mais baixo”, diz Eduardo Tinoco, ex-jogador de vôlei de praia e professor da UERJ. “Os africanos vêm em peso, o pessoal do Leste Europeu, asiáticos, muita gente do Oriente Médio.”

Desde a abertura da clínica, em 22 de julho, só na parte odontológica foram cerca de 1,6 mil atendimentos clínicos, 600 exames de imagem e 350 protetores bucais, recorde olímpico em todas as categorias. Os técnicos cambojanos Kiey Hein e Vichet Thin, o primeiro da natação e o segundo da luta olímpica, aproveitaram para fazer limpeza dental. “We feel fresh”, sorriu timidamente Hein, apontando um dente quebrado que iria para conserto. Já a garota do taekwondo Aniya Nicol Louissaint, que lutará pelo Haiti, tinha tirado um molde para fazer um protetor bucal.

Esportes como taekwondo e boxe exigem protetores no kit básico, e era de se presumir que todos os lutadores viessem com os seus. “A questão é que muitos desses protetores são comprados em farmácias, e os nossos são customizados, feitos sob medida, recebem uma cor diferente, e aí o atleta usa esse como titular e deixa o que trouxe como reserva.” Os protetores são doados pela Oral-B, que patrocina o setor odontológico da Policlínica.

O Brasil tem fama mundial de ter bons dentistas, tanto na parte clínica quanto na estética, e isso se espalhou para a Vila Olímpica. O promissor boxeador não pensou duas vezes em recorrer a ela depois de quebrar um dente no treino. Banguela no pódio não é exatamente a imagem que gostaria de perpetuar. A coroa foi feita rapidamente, e à noite a equipe da clínica comprovou o trabalho exemplar nas fotos para a posteridade. Outro boxeador preferiu aguentar firme a mexer num molar que poderia exigir um remédio. Tinha medo de ser pego no doping. “Nenhum medicamento usado pelos dentistas está na lista da Wada”, garante Tinoco, para quem o ideal seria o atleta fazer uma radiografia panorâmica durante a preparação para qualquer evento esportivo – Olimpíadas, nem se fale. Assim, rastrearia eventuais problemas bucais e evitaria, no mínimo, noites em claro por causa de uma abscesso inoportuno.

Oftalmologia
Panorama parecido, de alta procura, vive o setor oftalmológico da Policlínica. Ele soma, até agora, 2,1 mil atendimentos e 1,7 mil óculos doados, ante 1.402 e 937, respectivamente, de Londres – fora encaminhamentos para o hospital de casos mais graves, como descolamento de retina, retinopatia diabética e glaucoma agudo. “Na maior parte dos países, quem cuida dos olhos é um optometrista, especialista em óculos, e não um oftalmologista, que tem formação médica, como é o caso do Brasil”, explica a oftalmologista Lilian Gomide.

Na Policlínica, que atende das 7h às 23h, por turno, são três oftalmologistas, dois tecnólogos, dois enfermeiros e uma contatóloga, que ensina a colocar e tirar lentes. Já foram abertas 100 caixas de lentes de contato one day. E a média de idade dos pacientes é de 35, 40 anos, patamar alto se mirarmos nos atletas, mas condizente com a faixa etária de membros da delegação. “Atendi um técnico de 60 anos que nunca soube se tinha ou não de usar óculos”, diz Lilian. Ela detectou ceratocone, deficiência na córnea, informação que arregalou os olhos do paciente.

“Nessa idade é difícil a adaptação a lentes mais rígidas, então indiquei óculos que poderiam melhorar uns 30% da visão.” A audiência maior, afirma o técnico em oftalmologia Leonardo Pecoraro, é das delegações da Ucrânia, Nigéria, Angola e Camarões. Saem quase todos com pedidos para óculos e lentes, doados pelo H. Olhos, que banca o serviço. “Muitos dizem que deixaram os óculos em casa, esqueceram no avião e agora estão sem enxergar direito”, continua Pecoraro, e sabe-se lá se contam a verdade, relativa naquele momento, mas talvez importante em levantamentos de pesquisa posteriores. Auguste Arani Coffi, do Benin, tira do bolso da calça um papelzinho mostrando que receberia seus acessórios oculares dali a um dia. Na intenção de explicar para que serviam, fez o gesto universal do braço curto, que caracteriza a presbiopia, a tal vista cansada.

Mímica é um recurso que nem sempre funciona nas consultas. Como explicar a gravidade de um glaucoma para alguém que se acostumou com a perda paulatina da visão? É quando entra em cena a equipe de intérpretes, voluntários, poucos com a experiência de Gabriel de Souza, que se graduou em farmácia na Rússia e se vira nos 30 para atender à demanda de armênios e de membros de países da antiga União Soviética. “Numa das consultas, o médico me chamou porque não sabia se o paciente russo estava lendo direito as letras e os números que o projetor lançava na parede.” Outra do pronto-socorro da linguagem, a francesa Clémence Bornanan, que já sonhou ser médica e hoje estuda business, traduzia o pedido de check up de uma corredora da Mauritânia. Estava quase apelando para a mímica. Sua voz sucumbia sob o forte ar condicionado.

A baixa temperatura é necessária para manter a aparelhagem de última geração nos trinques. No setor de ortopedia, dois aparelhos de ressonância magnética, um raio X e um ultrassom se juntam a nove ultrassons portáteis, os Vscan. “Eles cabem no bolso, pesam menos de um quilo e permitem ao médico da delegação saber, no local de prova, se é o caso de encaminhar ou não o atleta para a Policlínica ou mesmo para o Americas Medical City, hospital de referência dos Jogos”, explica Daurio Speranzini Jr., presidente da GE Healthcare para a América Latina. A empresa estruturou o local e doou outros equipamentos de imagem ao Hospital Municipal Souza Aguiar (mais informações no boxe). Com essa aparelhagem, a clínica chegou aos 1.085 exames de imagem.

EMR
O menino dos olhos de Daurio e dos médicos da clínica, no entanto, é o EMR (Electronic Medical Records), que registra digital e confiavelmente a saúde dos atletas num único sistema. “É possível saber todo o histórico, idade, peso, altura, lesões anteriores, se têm alguma alergia”, enumera Marcelo Patrício, gerente geral de serviços médicos da Rio-2016.

O EMR teve resultados dourados em Londres e Sochi, em 2014. Nessa última Olimpíada de Inverno, um esquiador teve lesão medular após uma queda e não conseguia esboçar palavra. Antes de entrar com a medicação, um dos médicos acessou o EMR pelo smartphone e confirmou que o atleta tinha alergia ao tal remédio. Com um sanduíche globalizado do McDonald’s em mãos, Eva Villalta, médica do esporte de Honduras, era só elogio à Policlínica. Um de seus atletas de luta olímpica teve o ligamento lateral do joelho “desgarrado” e agora fazia sessões de ultra-som, laser e massagem na fisioterapia. “No meu país, o sistema público é bom, pero tem carências, por supuesto.” A cicatriz que ela exibia no tornozelo vinha de uma queda que quase a tirou da Olimpíada. Fora cuidada pelo atendimento privado. Em coro, seus pupilos também fizeram limpeza nos dentes. Estão todos fresh.

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