metropoles.com

Mostra no CCBB revela ao público um dos mais fascinantes e singulares artistas brasileiros

Um trabalho de garimpo e sensibilidade do curador Luiz Camillo Osorio orienta a exposição reunida para o centenário do pintor gaúcho Iberê Camargo, em cartaz até janeiro

atualizado

Compartilhar notícia

Reprodução
313970ce873c2068d96de7a6878f01ee979a0c21
1 de 1 313970ce873c2068d96de7a6878f01ee979a0c21 - Foto: Reprodução

Iberê Camargo (1914-1994) tomou um carretel, um pequeno cilindro de madeira, e colocou uma carga tão imensa de drama e de movimento ali dentro que suas pinturas parecem romper a tela. Suas pinturas, de fato, escapam da tela em grossas camadas de tinta que emprestam volume, dão vida e levam aquele simples carretel a um novo lugar.

Os carreteis vêm girando desde sua infância, passada no interior do Rio Grande do Sul nas décadas de 1910 e 1920. Sua mãe vivia a fiar, com os carreteis assim se tornando o brinquedo mais comum ali à mão. No fim dos anos 1950, quando uma hérnia de disco limitou os movimentos e aprumou a postura de Iberê, confinando o artista em seu estúdio, os carretéis voltaram à sua fantasia. Talvez se lembrando dos rigores do inverno na campanha gaúcha, quando era melhor mesmo ficar dentro de casa, perto do fogo, perto de sua mãe.

Dono de técnica tão exata que trabalhara como arquiteto sem nunca ter feito o curso, dono de uma vocação tão evidente que ainda na juventude tinha sido aluno de André Lhote e Giorgio de Chirico, dono de um conhecimento tão amplo que chegou a dar aulas para Carlos Vergara e Regina Silveira, Iberê então dispunha os carretéis em fileiras diante de si para deflagrar uma pequena revolução pessoal — que se tornaria enorme no panorama da arte nacional.

Primeiro ele alinhava seus carretéis sobre a mesa e os usava como elementos para peculiares naturezas mortas. No entanto, com o passar dos anos, aquelas formas foram sendo abauladas até desaparecerem. Ou melhor, até se tornarem outras coisas, assumirem outra natureza: superfícies coloridas, para usar uma expressão cara a Mark Rothko. E assim como o colega americano, tão em voga naqueles anos 1960, Iberê fez de suas cores o movimento, fez de suas cores o drama.

"Núcleo" (1963): óleo sobre tela *Reprodução*
“Núcleo” (1963): óleo sobre tela *Reprodução*

 

Vertigem e psicodelia
Esse processo, que durou praticamente uma vida inteira, pode ser acompanhado com os olhos em alguns poucos passos dentro da mostra “Iberê Camargo — Um Trágico nos Trópicos”. Com mais de uma centena de originais do artista gaúcho (entre pinturas, gravuras, desenhos e esboços), esta retrospectiva foi reunida em torno do acervo da Fundação Iberê Camargo com o acréscimo de peças de colecionadores particulares.

Um trabalho de garimpo e de sensibilidade erguido por Luiz Camillo Osorio, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, bem a tempo do centenário de Iberê, comemorado em novembro do ano passado. Após passar por Rio de Janeiro e São Paulo, a mostra fica em cartaz aqui em Brasília, no Centro Cultural Banco do Brasil, até 11 de janeiro.

Ocupando a Galeria Principal do CCBB e se prolongando até a Galeria II, ali ao lado, esta exposição traz uma oportunidade única para o brasiliense entender um dos mais fascinantes e singulares artistas brasileiros.

No comecinho da exibição, algumas telas de Iberê, datadas da segunda metade dos anos 1950, dão conta de um artista ainda formalista, ainda preocupado em equilibrar a cena e dispôr bules e garrafas em simetria para suas naturezas mortas. Aqui e ali, nessas cenas, uns carreteis já se infiltram discretamente. Mas logo adiante, na parede oposta, e em toda a comprida parede circular que limita o espaço interno da galeria, os carretéis fogem de controle e rodopiam em êxtase.

Em “Núcleo” (1963), o óleo reproduzido acima, os carretéis se derretem, se fundem e ganham um aspecto vizinho ao abstracionismo. Em “Brinquedo” (1969), as cores terrosas, marrom, verde musgo, preto, são contaminadas pelo vermelho, pelo amarelo, pelo branco. Esses dois movimentos, ilustrados em ambas as telas, primeiro fugindo do figurativismo, em seguida escapando do realismo cromático, podem hoje parecer meros arroubos, sem impacto nos rumos que a arte contemporânea tomou.

Porém, com este par de movimentos, que aqui no bojo de sua obra e no contexto de sua pintura parecem tão naturais, Iberê Camargo se lançava em uma aventura solitária para além de qualquer retorno. Iberê rompia uma longa linhagem figurativista e temática e estética do modernismo brasileiro. Pense em Di Cavalcanti e estique a corda passando por Candido Portinari e Djanira até chegar a Glênio Bianchetti… Iberê Camargo não está ali. Nem parece que um dia poderia ter estado. E essa foi apenas a primeira de suas revoluções, a primeira. Haveria ainda uma segunda.

"A Idiota" (1991): óleo sobre tela *Reprodução*
“A Idiota” (1991): óleo sobre tela *Reprodução*

 

Bicicletas no parque
Soltos e indóceis, os carretéis rodopiam pela Galeria Principal do CCBB, rolam pelas escadas e chegam ao andar debaixo. Esse espaço, a curadoria poeticamente reservou para as gravuras e os desenhos, duas linguagens que correram subterrâneas ao longo de décadas de trabalho de Iberê Camargo.

Nesse trecho da exposição, despontam em guaches e nanquins as primeiras formas humanas. Em desenhos datados já da década de 1990, esses nus e esses retratos chamam a atenção pelo aspecto repugnante dos personagens. Corpos envelhecidos, deformados, decaídos. Rostos derretidos como sebo de vela, como vítimas de desastre nuclear. Eis o trailer do que se verá no trecho final da mostra, dedicado aos últimos anos de vida do artista, e responsável mais direto pelo subtítulo desta “Iberê Camargo — Um Trágico nos Trópicos”.

Espalhados pelo amplo salão chamado de Galeria II, apenas alguns quadros enormes — que Iberê tratava por quadralhões, pela envergadura inédita em sua obra — ocupam todas as paredes e, apesar do baita espaço de circulação, largam toneladas de peso sobre o ambiente.

As figuras humanas que Iberê tinha evitado por toda a vida, de repente surgiam gigantescas. Os carretéis tinham se metamorfoseado em bicicletas, que o pintor via circulando pelo Parque da Redenção, em Porto Alegre, quando por lá fazia seus passeios matinais. As bicicletas, no entanto, ao longo dessa série de pinturas vão velozmente perdendo a forma, a simetria e se tornam linhas traçadas num par de gestos.

Todo o esforço que Iberê economiza nessas bicicletas e em suas ambientações é concentrado nos rostos de seus personagens. Todos velhos, ou quase velhos, todos já velhos por conta de suas faces cindidas pela melancolia, pela tragédia, pela dor física, por sabe-se lá o quê. Aquelas massas de tinta que Iberê usava nos carretéis dos anos 1960 vieram para esses rostos enrugados. Vieram para “A Idiota” (1991, acima) e seus seios caídos, sua virilha nua e assexuada.

"No Vento e na Terra I" (1992): óleo sobre tela *Reprodução*
“No Vento e na Terra I” (1992): óleo sobre tela *Reprodução*

 

Horizonte infinito
Por que a Iberê custou uma vida inteira até pintar pessoas? E por que, quando o pintou, o fez assim? As respostas podem hoje ser apenas especuladas.

Comenta-se abertamente sobre o suplício de um homem lentamente a ser minado pelo câncer. Comenta-se também, baixinho, sobre o jovem que Iberê matou a tiros num desentendimento –tragédia abafada de imediato, mas que o fez voltar do Rio de Janeiro para Porto Alegre. Pessoas próximas a Iberê dão conta de uma pessoa gentil e de um artista generoso.

O enigma de Iberê Camargo resta indevassável, monolítico, lançando sua triste e fascinante sombra de dor e morte. Como se o artista que passou a vida trancado no ateliê tivesse encontrado um mundo arrasado ao enfim abrir a porta. Suas últimas telas trazem ao fundo o horizonte plano, chapado, infinito da campanha gaúcha. O horizonte de sua terra natal, Restinga Seca.

Iberê Camargo não deixou herdeiros.

Até 11 de janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (Setor de Clubes Esportivos Sul, Trecho 2, lote 22, 3108-7600). De quarta a segunda, das 9h às 21h. Entrada franca. Livre.

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comEntretenimento

Você quer ficar por dentro das notícias de entretenimento mais importantes e receber notificações em tempo real?