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Morre Dib Lutfi, o poeta das imagens do Cinema Novo

Mítico operador de câmera e diretor de fotografia, Dib Lutfi morreu nesta quarta (26/10) e deixou um legado inigualável no Cinema Novo

atualizado

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Divulgação
Dib Lutfi
1 de 1 Dib Lutfi - Foto: Divulgação

Em 1997, há quase 20 anos, Márcia Derraik Barbosa fez seu trabalho de dissertação na Universidade Federal Fluminense sobre Dib Lutfi. Entrevistou muitos dos diretores com quem ele trabalhou. Cacá Diegues cantou a bola – “A força do Cinema Novo se estruturou sobre quatro pernas – a câmera Arriflex, mais leve, a película Tri-X, mais sensível, o gravador Nagra, mais potente, e as pernas do Dib Lutfi.” As pernas de Dib eram monumentos. Com a câmera na mão, ele firmava o corpo sobre elas e torcia o peito para seguir o movimento que devia filmar. Virou, assim, o homem-câmera.

Vem de longe, dos anos 1960 – há mais de 50 anos –, o culto a Dib Lutfi no cinema brasileiro. Na quarta (26/10), no fim da tarde, às 18h20, ele morreu no Hospital Vitória da Barra, no Rio. Estava internado desde sábado (22/10), para tratamento de pneumonia. Tinha 80 anos e há oito sofria de mal de Alzheimer.

O anúncio da morte foi feito pelo cantor, compositor e cineasta Sérgio Ricardo, no Facebook. “Comunico com muito pesar o falecimento do meu irmão Dib Lutfi, considerado o grande poeta das imagens do Cinema Novo.” Na quinta (27/10), sua sobrinha, Adriana Lutfi, emitiu um comunicado da família, informando que o velório será nesta sexta-feira, 28, às 10 h, no cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador (RJ). O enterro será às 11 h.

Para falar do grande Dib Lutfi talvez seja bom viajar um pouco no tempo. Em 1929, o cineasta russo Dziga Vertov fez um filme chamado O Homem com a Câmera, ou O Homem da Câmera. Vertov conceituou o que se tornou conhecido como ‘cinema-olho’. Seu irmão, Boris Kaufman, virou grande fotógrafo nos EUA, colaborando principalmente com Elia Kazan e Sidney Lumet. Nos anos 1960, no Brasil, surgiu o homem que radicalizou a máxima vertoviana, e foi Dib Lutfi. Com sua mão poderosa, e muito antes da invenção da steadycam, Lutfi viabilizou o conceito de Glauber Rocha na base do Cinema Novo – “Uma câmera na mão e uma ideia (ideias?) na cabeça.”

Por mais firmes que fossem as mãos de Dib Lutfi, o prodígio das pernas alicerçou seu mito. A prodigiosa contribuição de Dib Lutfi ao Cinema Novo tem sido lembrada (e incensada) graças ao documentário de Eryk Rocha sobre o movimento transformador do cinema brasileiro. Em “Cinema Novo”, o filme, a câmera cola ao corpo em transe de atores que erigem na tela uma estética do movimento. O movimento do movimento. Antônio Pitanga corre nas ruas do Rio em “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues, de 1965. A câmera segue Annecy Rocha numa feira, também em “A Grande Cidade”.

Foi coincidência, mas justamente quinta (27/10), quando circulavam as manifestações de pesar pela morte de Dib Lutfi, “A Grande Cidade” foi apresentado, à tarde, na Mostra São Paulo. Um tributo inesperado ao gênio de Dib Lutfi. Ele operava a câmera no clássico de Cacá.

Começou como cameraman, na TV Rio, no fim dos anos 1950. Estreou no cinema justamente num filme do irmão – o curta “O Menino da Calça Branca”, de 1961, antes de fotografar o longa, também de Sérgio Ricardo, “Esse Mundo é Meu”, de 1963. Seguiram-se “Edu Coração de Ouro”, de Domingos de Oliveira, 1967; “Opinião Pública”, de Arnaldo Jabor, 1967; “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, 1967; “Fome de Amor”, de Nelson Pereira dos Santos, 1968; “Os Deuses e os Mortos”, de Ruy Guerra, 1970; “Como Era Gostoso o Meu Francês”, de Nelson, 1970; “Os Herdeiros”, de 1970, “Quando o Carnaval Chegar”, de 1972, e “Joanna Francesa”, de 1973, os três de Cacá Diegues.

Em alguns filmes, a função era de operador de câmera, casos de “A Grande Cidade” e “Terra em Transe”. No filme de Cacá, Fernando Duarte assinava a direção de fotografia. No de Glauber, Luiz Carlos Barreto. Dib foi fotógrafo e operador em outros filmes do irmão – “Juliana do Amor Perdido”, de 1970, e “A Noite do Espantalho”, de 1974. Houve iluminadores geniais no Cinema Novo, que ajudaram autores como Nelson Pereira e Glauber a criar a estética da fome. Mas o movimento, dentro dos filmes, foi coisa de Dib Lutfi. Seu poder, afinal, não estava tanto nas mãos, mas nas pernas. Com elas, Dib Lutfi tornou-se, enfim, o homem-câmera de Dziga Vertov.

Num texto no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 1997 – quando saiu o documentário “Dib”, de Márcia Derraik Barbosa, em vídeo –, Susana Schild evocava depoimentos. O da diretora, que nunca encontrou ninguém que falasse mal de Dib. “Brincava que ia pagar para ter um depoimento contrário no filme. Todo mundo só ressaltava como ele era do bem.” Ou o do próprio Dib, que contava que utilizou a steadycam apenas uma vez, e achou pesada, mas gostaria de utilizar mais. E ele acrescentava – “Com a câmera na mão, se você prestar atenção, perceberá uma trepidação no canto da tela. É a respiração do operador da câmera.

“Na steady, não tem isso.” Por isso mesmo, Luiz Carlos Barreto, lendário produtor e fotógrafo, gosta de dizer: “Dib era como Garrincha, como Pelé. Quem viu viu, quem não viu nunca vai ver, porque como essas caras não existem mais.” O mito das pernas – dos grandes jogadores de futebol, do maior operador de câmera que já existiu. O poeta das imagens do Cinema Novo. E do povo brasileiro, que ele colocou na tela com tanto brilho.

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