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Cannes: “You Were Never Really Here”, de Lynne Ramsay

Um quase conto-de-fadas brutal e fatalista, conduzido por um protagonista suicida desesperadamente à procura de uma razão para viver

atualizado

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Festival de Cannes/Divulgação
You Were Never Really Here
1 de 1 You Were Never Really Here - Foto: Festival de Cannes/Divulgação

Este filme começa com um homem tentando se matar, deitado numa cama, respirando dentro de um saco plástico. No final das contas, Joe (Joaquin Phoenix) não está pronto pra partir. Ele rasga o saco e vai trabalhar. O tom sombrio deste início é perfeito para “You Were Never Really Here”, 4o filme da escocesa Lynne Ramsay, pois Joe, além de suicida, é um matador profissional que se especializa em resgatar vítimas do tráfico sexual. Aqui ele é contratado por um senador de Nova Iorque (Alex Manette), que teve a filha Nina (Ekaterina Samsonov) sequestrada por uma rede de pedofilia e colocada para trabalhar em um bordel.

Obviamente, o resgate não será tão simples quanto parece, mas, em verdadeira forma noir, o crime da trama não é o centro do filme, mas sim os seus personagens e a maneira que estes lidam com o fatalismo existencial da morte. Já fomos demasiadamente expostos a filmes aonde homens com habilidades de extermínio salvam meninas das mãos de criminosos. Este é diferente, em quase todos os sentidos, e a diferença é incrível. “You Were Never Really Here” flerta constantemente com o onírico, explorando uma realidade brutal e violenta para encontrar lá no meio algo lindo e sublime.

O filme é ancorado na performance de Joaquin Phoenix, sabia escolha da diretora para protagonista. Um dos atores mais interessantes da atualidade, Phoenix consegue oscilar entre filho carinhoso com a mãe e matador frio quando está no trabalho. Na verdade, qualquer bom ator consegue fazer estes dois papeis, mas Phoenix consegue fazer acreditar que estas duas personas habitam o mesmo personagem. Em um filme que convida devaneios, ele é quem mantém tudo coeso.

É importante notar que apesar de apresentar um modo narrativo refrescante, o próprio Joe é um personagem já visto uma dezena de vezes. Um excesso de flashbacks, espalhados pelo começo, meio e fim da película explicam exatamente por que ele acaba virando um matador profissional especializado no resgate de crianças. Várias conversas entre membros da plateia ligam Joe a Travis Bickle, o motorista alienado de “Taxi Driver”. Naquele filme, porém, a única pista que temos do passado do protagonista é um casaco verde típico de ex-soldados no Vietnã, e uma rápida menção, logo na primeira cena, de que ele fora fuzileiro naval.

O filme se agarra ferozmente ao ponto de vista de Joe, e ele está em praticamente todas as cenas. Por se tratar de uma trama política, que envolve tráfico sexual, jogos de poder e assassinato, imagina-se que uma ou outra cena em que poderosos se reúnem para tomar providência, ou para esquematizar algo perturbador. Enquanto outros filmes mostram este tipo de cena, Ramsay investe na vida pessoal de Joe, ou mesmo a falta desta, pois, quando não está numa missão, Joe está cuidando da mãe idosa na casa em que ambos moram. Se não fosse Joe, sua mãe (Judith Roberts) seria a melhor personagem do filme. (Aliás, se algum dia ela for ter um filme só dela, estarei na fila.) Ela e Joe compartilham traumas importantes do passado.

O curioso é que defeitos como este não importam numa apreciação crítica deste novo filme de Ramsay. Eles surgem como meros “porém”, como uma aceitação de que nada na vida, ou na arte, é perfeito. Difícil explicar por que “You Were Never Really Here” funciona tão bem apesar de sua trama batida, especialmente quando se tenta driblar spoilers, mas uma cena embaixo d’água, já no terceiro ato do filme sintetiza tudo: a beleza cinematográfica, a trilha sonora de Johnny Greenwood, uma exploração emocional sem palavras e o embasamento interior que leva o espectador a entender a ação do personagem.

“You Were Never Really Here” estava inacabado em sua première durante o Festival. Apesar do filme estar visualmente e sonoramente completo, de forma a parecer terminado, a ausência de créditos e o burburinho na própria sala. Talvez fosse este o segredo–o filme ainda não tem sua versão mainstream, re-editado por um excesso de críticas do estúdio ou de um teste de audiência. Espera-se que uma premiação em Cannes permita que a diretora Lynne Ramsay mantenha controle do corte final.

Avaliação: Excelente (5 estrelas)

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