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Seita no DF: novas denúncias revelam tortura, trabalho escravo e morte

Segundo relato de jovem que passou oito anos no local, seguidores de Ana Vindouro vivem em uma “prisão psicológica”

atualizado

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Michael Melo/Metrópoles
Seita abre
1 de 1 Seita abre - Foto: Michael Melo/Metrópoles

Ricardo* ainda carrega no corpo as marcas do que considera “a pior fase da vida”. No braço, uma cicatriz em forma de cruz o faz lembrar dos oito anos em que esteve submetido às rígidas regras da Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia, seita comandada à mão de ferro por Ana Vindoura Dias Luz, 64 anos. A mulher é investigada por crimes como cárcere privado e trabalho escravo e teve mais de R$ 5,4 milhões em bens bloqueados pela Justiça.

Enquanto a pastora tenta se explicar à polícia e à Justiça, novas vítimas se encorajam a denunciar as barbáries vividas na chácara Folhas de Palmeira, situada na região rural do Gama. Ricardo, hoje com 20 anos, narrou ao Metrópoles as punições em caso de desobediência à mulher. “Eu era amarrado com corda e recebia chibatadas de acordo com a gravidade da travessura cometida. Uma vez, fui condenado a 50 chicotadas. Sempre era a dona Ana quem batia”, diz.

Ouça o depoimento de Ricardo:

Os pais de Ricardo e o irmão mais novo, de 12 anos, permanecem morando na comunidade administrada por Ana Vindoura. Ele diz que o pai, ex-empresário, e a mãe, ex-servidora pública, largaram tudo há mais de uma década para seguirem os passos da pastora.

Tínhamos uma vida sem luxo, mas bem tranquila. Meu pai vendeu a empresa de marcenaria que tinha e minha mãe deixou de ser funcionária pública. Deram tudo o que conquistaram na vida para essa mulher. É uma prisão psicológica

Ricardo*, 20 anos

O rapaz fugiu da seita ao completar 18 anos. Arrumou emprego de vendedor em uma loja e, atualmente, mora sozinho em um barraco alugado. Na adolescência, depressivo por receber tantas punições, ele tomou a decisão de se matar. Começou a se autoflagelar com faca, mas não teve coragem de dar cabo da própria vida. “Fiz uma cruz no braço com uma faca de cozinha de tanta raiva que eu sentia [foto em destaque].”

“Com 11 ou 12 anos, a gente era obrigado a acordar às 4h30, assistir ao culto e trabalhar onde ela quisesse. Perdi minha adolescência inteira. Hoje, estou focado em tirar meu irmão de lá, que já não aguenta mais viver daquela forma. É triste dizer isso, mas já desisti dos meus pais. Eles são cegos por essa mulher”, revolta-se Ricardo.

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Mortes na seita 
Geraldo*, 57 anos, é outro ex-seguidor de Ana Vindoura que decidiu abandoná-la por não concordar com as ideologias propagadas na fazenda. As cerca de 300 pessoas que vivem sob comando da mulher não podem comprar medicamentos convencionais e são proibidas de usar produtos de higiene, como sabonete, além da restrição a qualquer contato com o mundo exterior.

Celulares, televisores e rádios são proibidos aos fiéis que moram no terreno da igreja. A única autorizada a ter tais aparelhos é a própria Ana Vindoura e cinco obreiros, que são os principais auxiliares dela.

Durante os nove anos que viveu na comunidade, Geraldo era o responsável por manipular remédios à base de ervas medicinais. Segundo ele, muitos pacientes não respondiam ao tratamento caseiro e necessitavam de atendimento médico, mas eram proibidos de procurar hospitais.

Geraldo diz ter visto duas pessoas morrerem por falta de tratamento convencional. “Uma menina com 12 ou 13 anos estava com muita febre e tentamos de tudo para curá-la. Num momento de grave crise, quisemos levá-la ao hospital, mas ela [Ana Vindoura] disse que éramos homens de pouca fé. A menina morreu e até hoje não sabemos exatamente as causas”, relata.

Ouça o depoimento de Geraldo:

Em 10 de janeiro, o Metrópoles revelou que outro óbito já havia ocorrido dentro da chácara Folhas de Palmeira. O autônomo Gilmar dos Santos Almeida, 42, conta que a irmã morreu no local em dezembro de 2018 e a família não teve autorização para resgatar o corpo e realizar um velório digno.

Dione dos Santos, 49, era seguidora de Ana Vindoura há nove anos. Embora sofresse com graves crises de hipertensão, ela era impedida de tomar remédios. “Eles não permitiam tratamento convencional. Diziam que todo medicamento deveria ser feito lá. Sem tratamento adequado, minha irmã acabou morrendo”, conta Gilmar.

“Minha mãe foi duas vezes tentar tirá-la de lá, mas não conseguiu, pois era vigiada e era obrigada a costurar dia e noite: começava às 5h e ia até as 22h. Quando soubemos do falecimento, pedi para um sobrinho que estava em Brasília ir ao IML liberar o corpo para enterrarmos em Mato Grosso, mas a chefe [Ana Vindoura] não autorizou. Por telefone, falou que eu era o diabo e não permitiu”, afirma.

O homem descreve que a maior frustração da família foi não ter conseguido prestar a última homenagem à mulher. “Minha sobrinha falou que minha irmã foi enterrada no setor de indigentes do cemitério, sem nenhuma dignidade. Ela [Ana Vindoura] faz lavagem cerebral nas pessoas. Tem de estar na cadeia”, protesta.

Geraldo já havia deixado a seita quando Dione morreu, mas confirma o relato de Gilmar. “A Dione tinha hipertensão aguda. Eu cuidava dela, media a pressão todos os dias, mas ela ficava muito estressada e cansada com o volume de trabalho. Passava o dia costurando”, assevera.

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Operação
As supostas irregularidades na Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia começaram a se tornar públicas em 7 de janeiro deste ano, quando a 20ª Delegacia de Polícia (Gama) revelou ter resgatado, 10 dias antes, uma jovem de 18 anos mantida em cárcere privado no local. Na ocasião, Ana Vindoura chegou a ser presa.

O episódio encorajou outras pessoas a delatarem a seita. Chegaram à unidade policial e em outros órgãos denúncias de crianças impedidas de frequentarem a escola, de pessoas submetidas a trabalhos forçados e mantidas em alojamentos precários.

Diante da gravidade das denúncias, a 20ª DP, o Ministério Público Federal (MPF), auditores ficais do Ministério Público do Trabalho (MPT), o Conselho Tutelar do Gama e a Subsecretaria de Políticas para Crianças e Adolescentes da Secretaria de Justiça e Cidadania do DF deflagaram uma operação a fim de investigar se pessoas estavam sendo submetidas a situações análogas às de escravo na propriedade rural.

No local, foram encontrados ao menos 79 trabalhadores em condição degradante de trabalho e de vida. A operação resultou na interdição dos alojamentos usados pelos fiéis e das áreas de panificação e hortaliça.

O auditor fiscal do trabalho Rodrigo Ramos do Carmo diz que várias anotações com a contabilidade das atividades desenvolvidas na chácara foram apreendidas e estão sendo analisadas. “Vamos fazer uma estimativa de quanto a líder religiosa arrecadava. O fato é que o custo para ela era mínimo, só de matéria-prima e energia elétrica, pois a igreja tinha a função de manter a mão de obra sem custos”, ressalta.

Segundo ele, a situação que os seguidores dela viviam era indigna, o que levou a força-tarefa a tomar medidas duras. “Lá, havia equipamentos de última geração para a fabricação de pães e as máquinas de costura tinham até leitor digital. No entanto, os trabalhadores desenvolviam suas funções não remuneradas em banquinhos de plástico e sem encosto”, detalha.

Também chamou atenção do auditor os dormitórios dos seguidores da seita. “Pessoas passavam a noite em carrocerias de caminhões ou sob estruturas de lonas que eram compartilhadas por homens, mulheres e crianças. Um desses alojamentos ficava ao lado de um depósito de agrotóxico. Fechamos tudo.”

Investigação
Durante os meses de janeiro e fevereiro, investigadores da 20ª DP se debruçaram para analisardezenas de denúncias que chegavam à unidade policial, algumas relacionadas a cárcere privado, crianças não matriculadas na rede de ensino, entre outras.

A apuração corre em sigilo. Segundo a delegada Érika Costa, há desde 2016 relatos de condutas criminosas praticadas na comunidade, mas obstáculos dificultavam o flagrante policial naquela época. “Seja pelo temor que as vítimas demonstravam ter de represálias por parte da líder religiosa e de seus obreiros, seja pela própria conduta destes em burlar e embaraçar a ação policial”, destaca Érika.

De acordo com a delegada, trata-se de uma investigação complexa pelo fato de a maioria dos integrantes – e das vítimas – da seita ser de boa índole e aparentemente não consciente de direitos elementares. “A liberdade e a fé são garantidas pela Constituição, mas esses direitos não podem violar outros, como trabalhistas e o de ir e vir”, ressalta.

*Nomes fictícios para preservar as vítimas

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