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Vinte anos após o crime, assassinos de Galdino reconstroem a vida

Duas décadas depois de atear fogo no pataxó Galdino Jesus dos Santos, quatro dos cinco acusados passaram em concurso. O quinto é advogado

atualizado

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Rafaela Felicciano/Metrópoles
capa Caso Galdino
1 de 1 capa Caso Galdino - Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

A quinta-feira (20/4), em Brasília, será de luta e homenagens. Indígenas de todo o país e representantes de entidades de defesa dos direitos humanos — como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) — se unirão a partir das 18h para lembrar os 20 anos do assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. Após ato ecumênico, passarão a noite em vigília, em memória da vítima de um dos crimes mais bárbaros da história da capital.

Na madrugada de 20 de abril de 1997, cinco jovens de classe média atearam fogo no cacique do povo pataxó-hã-hã-hãe, que dormia no banco da parada de ônibus da 704 Sul. Galdino teve 95% do corpo queimado e morreu no dia seguinte ao ataque. Em sua homenagem, a área atrás do ponto da 704 Sul foi rebatizada: agora, é a Praça do Compromisso (veja fotos abaixo), e abriga os atos em defesa dos povos indígenas realizados em Brasília nos últimos 20 anos. A vigília, as preces e os protestos marcados para esta quinta-feira serão ali realizadas.

O evento também será um ato de repúdio. Duas décadas após o crime, a família de Galdino está bastante reduzida. A mãe morreu de desgosto, há cerca de 10 anos. Os três filhos cresceram sem pai, e enfrentaram muitas dificuldades. Por sua vez, os assassinos de Galdino estão livres; já não devem nada à Justiça. Cumpriram suas penas (inclusive com direito a várias regalias) e reconstruíram a vida.

Dos cinco, quatro são servidores públicos. O quinto formou-se em direito e hoje integra a equipe de um importante escritório advocatício da cidade. O Metrópoles relembra hoje a morte de Galdino e conta que fim levaram os personagens desse triste episódio da história brasiliense.

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O  Crime
Galdino de Jesus era um homem forjado na luta. Cacique de um povo que hoje conta com pouco mais de 2 mil representantes, ele saiu da Bahia na véspera do Dia do Índio de 1997 para participar, na capital do país, de manifestações e negociações com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Era porta-voz da luta pela demarcação das terras pataxós. Uma guerra que, em 1986, já tinha matado um de seus 11 irmãos e que, apenas em 2016, provocou 1.295 conflitos e 61 assassinatos de indígenas pelo Brasil, segundo dados do Cimi.

Reprodução

Conforme as investigações da Polícia Civil do Distrito Federal e a peça de acusação do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), Galdino passou aquele Dia do Índio em reuniões que invadiram a madrugada. Ele se perdeu nos poucos metros que separavam a sede da Funai e a pousada onde estava hospedado na W3 Sul.

Quando finalmente chegou ao local, às 3h do dia 20, foi barrado pela dona do estabelecimento: o acesso só era possível até as 22h. O cacique, então, voltou ao ponto de ônibus que viu pelo caminho e decidiu esperar o dia amanhecer ali.

Por volta das 5h, cinco amigos, um deles menor de idade, cruzaram o caminho do cacique pataxó. Na volta de uma festa, avistaram o que disseram (no processo) pensar ser um mendigo naquele ponto de ônibus e tiveram a cruel ideia de atear fogo ao corpo inerte, por diversão. Os cinco foram até um posto de gasolina próximo, compraram álcool e fósforos, e retornaram à parada. Encharcaram o corpo de álcool, acenderam o fósforo e lançaram sobre “o mendigo”. Entraram no carro e deram a partida enquanto Galdino se levantava desesperado, gritando de dor.

A cena foi presenciada por um chaveiro que madrugara para mais um dia de trabalho. O homem anotou a placa do carro em fuga e acionou a polícia, o que possibilitou a identificação e a prisão de Max Rogério Alves, à época com 19 anos; Tomás Oliveira de Almeida, 18; Antônio Novély Vilanova, 19; Eron Chaves de Oliveira, 19, e o caçula do grupo, então com 17 anos.

O julgamento
Entre o crime e o julgamento dos quatro acusados com maioridade penal, em 2001, uma verdadeira batalha judicial foi travada entre a defesa dos réus e a promotoria, que pedia um julgamento por júri popular pelo crime de homicídio. Já os advogados dos quatro adultos do grupo queriam a tipificação do crime como lesão corporal seguida de morte.

Em primeira instância, a juíza Sandra de Santis, do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), acatou o entendimento da defesa. A promotora Maria José Pereira, então, recorreu à Corte, que negou o pedido, e, depois, apelou ao Superior Tribunal de Justiça. Só após a intervenção do STJ os quatro maiores enfrentaram o júri por homicídio, em novembro de 2001 (quatro anos e meio após o crime). Saíram do tribunal condenados a 14 anos em regime fechado, por homicídio qualificado.

Giovanna Bembom/Metrópoles
A promotora Maria José Miranda Pereira representou a acusação durante a maior parte do caso Galdino

 

O quinto e último acusado, adolescente à época, foi condenado a um ano de cumprimento de medida socioeducativa. Saiu após quatro meses e, ao completar 18 anos, teve apagado o registro do crime praticado na adolescência, como determina a legislação brasileira.

Como foram condenados por crime hediondo, os quatro adultos deveriam cumprir pelo menos um sexto da pena antes de terem direito à liberdade. No entanto, em 2002, a 1ª Turma Criminal do TJDFT concedeu aos acusados benefícios que os permitiam estudar fora da penitenciária e prestar expediente em órgãos públicos.

A determinação judicial previa que os condenados voltassem à cadeia logo após o expediente, mas não era isso que acontecia. Em 2003, três deles foram flagrados bebendo em um bar antes de voltarem à Papuda, dirigindo os próprios carros e sem passarem por revista. No ano seguinte, todos conseguiram direito à liberdade condicional e passaram a cumprir o resto da pena já nas ruas, apenas com algumas restrições.

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Os réus
Vinte anos após o crime, os cinco responsáveis pela morte de Galdino Jesus dos Santos parecem ter conseguido reconstruir a vida. Max Rogério Alves, Tomás Oliveira de Almeida, Antônio Novély Vilanova, Eron Chaves de Oliveira e o acusado que à época tinha 17 anos agora são homens de meia-idade. Nos últimos anos, todos foram aprovados em concursos e quatro trabalham em órgãos da administração pública. Apenas um não mora mais na capital federal. Os outros permanecem em Brasília e levam a vida como se o homicídio do indígena fosse uma memória distante do passado.

Primeiro a ser julgado pelo crime, o adolescente de 17 anos hoje tem 37. Irmão de Tomás Oliveira de Almeida e primo de Eron Chaves de Oliveira, o réu foi aprovado em um concurso para agente da Polícia Civil do DF, em 2014. Passou por todas as etapas até chegar à análise de vida pregressa. Nesse momento, a morte de Galdino teve peso e a candidatura foi barrada pela corporação. O homem questionou a decisão na Justiça e chegou a levar o caso ao STJ, mas a determinação foi mantida.

Mesmo com a negativa da PCDF, o desejo do acusado de integrar uma força de segurança não chegou ao fim. No ano passado, ele foi aprovado em um concurso da Polícia Rodoviária Federal e hoje é agente da corporação, lotado em Cuiabá (MT). Atuando desde novembro de 2016, ele recebe atualmente remuneração bruta de R$ 9 mil. O Metrópoles acionou a PRF para pedir esclarecimentos sobre o exame de vida pregressa do rapaz, mas a corporação não havia respondido até a última atualização desta reportagem.

Irmão do então adolescente, Tomás Oliveira de Almeida, 38, foi um dos quatro condenados a 14 anos de reclusão por homicídio qualificado. À época do crime, cursava o primeiro ano de administração. Também aprovado em concurso público, Tomás é hoje técnico legislativo no Senado Federal e recebe, a cada mês, um salário bruto de mais de R$ 18 mil.

reprodução
Eron Chaves de Oliveira, um dos cinco condenados pela morte do índio Galdino

Eron Chaves de Oliveira, 39 anos, primo dos dois, também decidiu seguir carreira na administração pública. No dia do crime, ele e o adolescente de 17 anos foram os responsáveis por derramar combustível no corpo de Galdino. Desde 2013, Eron é agente do Departamento de Trânsito do DF (Detran-DF). Ele foi aprovado em concurso dentro das vagas reservadas a portadores de necessidade especiais. Segundo a banca responsável pela organização do certame, a deficiência foi comprovada.

Hoje, ele recebe salário de aproximadamente R$ 9 mil. Formado em direito por uma universidade particular de Brasília, Eron também atuou na profissão por alguns anos. No entanto, parou de advogar depois que uma emenda constitucional proibiu o acúmulo de funções de advocacia para integrantes de forças de segurança pública, em 2014.

O quarto condenado é Antônio Novély Cardoso de Vilanova, filho do desembargador federal Novély Vilanova. À época do crime, ele tinha 19 anos e foi um dos que atearam fogo ao corpo de Galdino. Nos anos seguintes à saída da prisão, formou-se em fisioterapia pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e hoje é servidor da Secretaria de Saúde do DF, lotado no Hospital Regional de Santa Maria. Por mês, ele tem uma média salarial de R$ 12 mil.

Reprodução
Max Rogério Alves, um dos cinco condenados pela morte do índio Galdino

Max Rogério Alves
Em 2015, a distrital Celina Leão (PDT) apresentou um requerimento na Câmara Legislativa em que pedia a criação da Frente Parlamentar em Defesa dos Interesses dos Indígenas Habitantes no Território do DF. Em seu discurso, a deputada citou o caso de Galdino como o mais emblemático de violência contra essa população.

Por ironia do destino, quase dois anos depois a parlamentar precisou de quem a defendesse. No epicentro do escândalo da Drácon, contratou um dos mais reconhecidos escritórios de advocacia na cidade, liderado pelo criminalista Eduardo Toledo. Na equipe dele está Max Rogério Alves, o quinto condenado pelo homicídio do indígena. O que poderia ser um constrangimento é, na visão do empregador, um motivo de orgulho. Para o experiente advogado, Max está “completamente reabilitado”.

O Max cumpriu a pena. Como advogado, entendo que a função principal da pena criminal é a reabilitação para o convívio social. E ele é um profissional competente, respeitoso no trato com todos.

Eduardo Toledo, chefe do escritório de advocacia onde Max Rogério Alves trabalha

Max está no escritório do criminalista há pouco mais de um ano. Mas o caminho das famílias se cruzou há duas décadas, na época do julgamento do então estudante. Quando o caso subiu para o STJ, o pai de Eduardo Toledo, Francisco de Assis Toledo, era ministro da Corte. Na ocasião, seu voto foi no sentido de que o crime deveria ser tipificado como homicídio culposo e não lesão corporal seguida de morte.

O Metrópoles entrou em contato com Max Rogério Alves, mas ele não quis comentar o caso. A reportagem também tentou contatar Eron Chaves de Oliveira, Antônio Novély Cardoso de Vilanova e o homem que, à época do crime, era menor de idade. No entanto, não houve sucesso. Tomás Oliveira de Almeida não foi encontrado.

Família
A morte de Galdino deixou sequelas na tribo pataxó-hã-hã-hãe, situada no município de Pau Brasil, ao sul da Bahia. Hoje, o representante da família é Wilson de Jesus, 52 anos, sobrinho do índio assassinado e que estará presente durante as homenagens desta quinta-feira (20). O parente afirma que, após o crime, a viúva de Galdino, Genilda Rosa Campos, ficou “desamparada” e teve de lutar para cuidar dos três filhos do casal.

A mãe do indígena, Minervina de Souza, que fez apelos fervorosos durante o julgamento dos cinco acusados, morreu há cerca de 10 anos. De acordo com Wilson de Jesus, ela não resistiu ao desgosto pelo óbito do filho: “Estava tão traumatizada com a morte do Galdino que ficou doente e nunca mais conseguiu recuperar a saúde”, conta. O pai dele, Juvenal Rodrigues, também morreu.

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Mesmo após 20 anos, segundo Wilson, o caso ainda é lembrado na tribo. “Até hoje é uma perda que não conseguimos nem imaginar. A gente fica revoltado e não consegue esquecer. Ele morreu de uma forma que não se deseja a nenhum inimigo”, diz.

Sobre a condenação dos cinco responsáveis pelo homicídio, Wilson de Jesus acredita que não tenha sido justa.

Eles ficaram presos por pouco tempo, hoje já têm empregos. Conseguiram reconstruir a vida, mas para a família foi bem mais difícil. Pelo menos eles pagaram de alguma forma e não ficaram impunes.

Wilson de Jesus, sobrinho de Galdino Jesus dos Santos

A opinião é a mesma da promotora responsável pela maior parte do caso, Maria José Pereira: “Se os 14 anos previstos tivessem sido cumpridos na íntegra, ainda se vai. Mas com as regalias que eles tiveram durante o tempo que estavam presos, acho que a punição não foi justa. Não estou sendo cruel, queria a ressocialização deles. Mas também desejava o mesmo para todos os presos, não só os de classe média alta. Minha luta não era por um caso, mas por uma causa”, argumenta.

Após tanta brutalidade, uma questão conforta a família de Galdino Jesus dos Santos. Quando foi morto, ele estava em Brasília para lutar pela permanência dos índios na terra indígena Caramuru-Paraguaçu, ocupada pela tribo pataxó-hã-hã-hãe. Em 1997, a área era motivo de disputas entre fazendeiros e indígenas, que se enfrentavam em conflitos sangrentos.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu o direito de permanecer na região e a luta de Galdino pela causa não foi esquecida. “A mensagem que ele deixou para a gente foi de não desistir de lutar pela nossa terra. Não fosse pela força do Galdino, talvez não estaríamos aqui hoje”, finaliza Wilson de Jesus.

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