Delegado xingado de macaco divulga carta: “Aos racistas, meu silêncio”

No texto, Ricardo Viana contou ter se encontrado com parentes do ofensor, que lhe pediram desculpas. Texto foi lido durante sessão da CLDF

Francisco Dutra
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Em uma carta divulgada nesta terça-feira (11/8), o delegado da Polícia Civil no Distrito Federal Ricardo Viana (foto em destaque) revelou ter se encontrado com familiares do homem que o xingou de “macaco” na semana passada, em um comércio do Lago Sul. Segundo contou, os parentes do ofensor – Pedro Henrique Martins Mendes – pediram desculpas pelo ataque.

“Hoje, recebi o irmão e o pai da pessoa que ofendeu a mim e a minha filha na última sexta-feira (7/8). Condicionei esta conversa a nada pedirem em relação ao processo que há de vir. Ambos se retrataram em nome do ofensor”, afirmou o policial. “Neste momento, creio que não há espaço para se alimentar o ódio. Conversamos de forma polida, assim como três pessoas diferentes e tolerantes devem se ater”, destacou.

Em outro trecho, o policial se lembrou da sua origem e, independentemente do cargo que ocupa, da necessidade de exigir uma sociedade igualitária.

“Não nasci delegado, mas sim, negro, caçula de oito irmãos, filho de uma Raimunda e de um Antônio, ambos nordestinos, os quais migraram para esta cidade em busca de melhores condições de vida. Aqui nasci e pretendo viver como cidadão, isto é, em igualdade com os demais que aqui habitam”, escreveu.

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Delegado Ricardo Viana
Ele trabalha na Delegacia do Cruzeiro
Pedro Henrique foi preso na sexta-feira, após insultar delegado negro, e solto no domingo (9/8)

O delegado citou nominalmente vítimas de ataques racistas pelo país neste ano, entre elas o motoboy Matheus, destacando que muitas delas sofrem ainda no anonimato o preconceito gerado pelo tom da pele. “De onde vem tanto ódio?”, questionou.

“Sem dúvida, este debate encontra-se aberto há 131 anos, momento em que meus antepassados, escravos, ou melhor, escravizados, foram ‘libertados’ e até hoje, nós, negros, lutamos por direitos básicos”, ponderou. “Creio que chegou a hora não de incrementar, mas de incendiar este tema, para que possamos, um dia, termos uma sociedade mais justa e igualitária”, assinalou Viana.

E concluiu o texto: “À minha filha, meus sinceros sentimentos de lhe ter exposto o mundo preconceituoso de forma tão truculenta. Aos racistas, o meu silêncio. Respeito!”.

Durante a sessão virtual da Câmara Legislativa desta tarde, o deputado Chico Vigilante leu o texto escrito por Ricardo Viana. O petista e o deputado Fábio Felix (PSol) fizeram o alerta para o número crescente de casos de racismo em Brasília neste ano.

Leia a carta na integra:

“Hoje, recebi o irmão e o pai da pessoa que ofendeu a mim e a minha filha na última sexta-feira. Condicionei esta conversa a nada pedirem em relação ao processo que há de vir. Ambos se retrataram em nome do ofensor. Neste momento, creio que não há espaço para se alimentar o ódio. Conversamos de forma polida, assim como três pessoas diferentes e tolerantes devem se ater. Não sei o porquê de Deus me colocar naquele cenário com uma pessoa que jamais vi e acontecer o que todos já sabem, mas a minha voz ecoou muito além do que eu imaginava. Talvez por ocupar um cargo em uma das melhores polícias judiciárias do país. Sim, talvez. Uma coisa é certa, não nasci delegado, mas sim, negro, caçula de oito irmãos, filho de uma Raimunda e de um Antônio, ambos nordestinos, os quais migraram para esta cidade em busca de melhores condições de vida. Aqui nasci e pretendo viver como cidadão, isto é, em igualdade com os demais que aqui habitam. Passamos uma semana com incidentes incomuns, Matheus, Ricardo, Francisco e muitos outros que estão anonimato foram subjugados, simplesmente pelo tom da pele. De onde vem tanto ódio? Sem dúvida, este debate encontra-se aberto há 131 anos, momento em que meus antepassados, escravos, ou melhor, escravizados, foram “libertados” e até hoje, nós, negros, lutamos por direitos básicos. Creio que chegou a hora não de incrementar, mas de incendiar este tema, para que possamos um dia termos uma sociedade mais justa e igualitária. À minha filha, meus sinceros sentimentos de lhe ter exposto o mundo preconceituoso de forma tão truculenta. Aos racistas, o meu silêncio. Respeito!”

Acusado pediu desculpas

Após a repercussão do caso, Pedro Henrique Martins Mendes divulgou uma nota, por meio de sua defesa, na qual pede desculpas ao delegado da PCDF. Ele foi preso em flagrante, mas solto após pagar fiança.

No texto endereçado “ao senhor Ricardo, à sua filha, aos familiares e a todos os seres humanos”, o homem pede perdão. “O injustificável ato não é reflexo da educação, do amor e do respeito que recebi e que carrego como preceitos básicos”, diz. “Solidarizo-me com a dor causada a todos e, mais uma vez, peço desculpas!”, completa, em outro trecho.

O texto, encaminhado pelo advogado Danilo Bomfim, termina assinado não apenas por Pedro Henrique, mas também pela família dele.

Restrições

No final de semana, Pedro Henrique pagou fiança no valor de R$ 3.117, o equivalente a três salários mínimos, e poderá responder em liberdade desde que cumpra todos os requisitos da Justiça. Ele deve comparecer a todos os atos do processo, não se ausentar do DF por mais de 30 dias – a não ser que seja autorizado – e não mudar de endereço sem comunicação prévia às autoridades.

Pedro também está proibido de sair de casa entre as 20h e as 6h em dias úteis. Aos sábados, domingos e feriados, deve cumprir recolhimento domiciliar em regime integral, sendo, inclusive, monitorado eletronicamente.

A princípio, o homem usará tornozeleira eletrônica pelo período de 90 dias. Depois disso, deve comparecer à unidade responsável pela retirada do equipamento, caso a Justiça não determine que o prazo de monitoramento seja postergado.

Relembre o caso

A ofensa ao delegado da PCDF aconteceu na noite de sexta-feira (7/8), no Mc Donald’s da QI 23 do Lago Sul. Ricardo Viana estava com a filha de 15 anos dentro da lanchonete quando Pedro Henrique passou a insultá-lo gratuitamente, segundo o policial.

O delegado conta que deu voz de prisão ao agressor e que ele ainda tentou fugir, mas foi preso pela Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), que deu apoio à ação. “Falou que iria me pegar, me chamou de macaco e viado. Arremessou um pé de sua chinela em minha direção”, narra o delegado.

No carro do homem, foram encontradas porções de maconha. O criminoso foi detido em flagrante e a ocorrência foi registrada na 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul).

“Até o momento, não entendi por que tanto ódio em uma só pessoa, o pior é saber que este tem histórico de violência e já praticou fatos semelhantes com outros negros”, disse Viana, no dia das agressões.

Em vídeo (assista abaixo) divulgado no dia seguinte ao ataque, o policial afirmou estar muito consternado e que não poderia se calar neste momento. “Eu declaro a vocês que nós vivemos um racimo estrutural. O racismo está entranhado em todas as classes sociais e, eu, convivo com isso desde que eu sou menino. Todas as vezes que a gente vai galgando algum espaço na nossa sociedade, essa ferida é tocada”, destacou.

 

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