A voz feminina na literatura ganha fôlego em Brasília

Nos clubes de leitura e na produção literária, as mulheres estão se organizando

Rômulo Neves
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Mergulhar sozinho, até o fim, em um livro é muito prazeroso. Ainda mais prazeroso do que isso, entretanto, é, depois do mergulho, compartilhar impressões com quem teve a mesma experiência. É uma satisfação conversar sobre aquele livro que nos impactou, seus personagens e passagens marcantes. Mas essa não é uma experiência que ocorre muito facilmente. É preciso combinar. É preciso encontrar. É preciso falar sobre livros.

Pois é exatamente isso que o clube de leitura Leia Mulheres se propõe a fazer. A ideia é escolher com antecedência um livro para ser comentado conjuntamente, no caso do Leia Mulheres, uma vez por mês. A novidade, digamos, está na seleção dos livros. Somente autoras entram no cardápio. Não é algo trivial. Como em quase todas as atividades, o mercado editorial também é predominantemente dominado por nomes masculinos, ainda que essa realidade esteja mudando aos poucos.

O Leia Mulheres tenta contribuir para que mais autoras sejam conhecidas e apreciadas. Não cabe aqui uma análise dos motivos pelos quais, também na literatura, a voz feminina tem menos ressonância, mas cabe o excelente registro de que o Leia Mulheres é uma iniciativa louvável e – o tempo está provando – muito exitosa

A ideia surgiu em 2014, no Reino Unido e rapidamente se espalhou pelo mundo. No Brasil, atualmente são pelo menos 32 grupos, em capitais e também em cidades menores. Em Brasília, o grupo já está ativo há quase um ano e as reuniões acontecem mensalmente, no auditório da Livraria Cultura, no Casa Park, na segunda quinta-feira de cada mês. Os encontros, felizmente, não são exclusivos para mulheres, e os leitores também são bem recebidos.

No encontro deste mês, que contou com a visita de participantes do Leia Mulheres de Goiânia – ocorreu a análise conjunta do livro “Quarenta Dias”, de Maria Valéria Rezende, ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Romance e também de Livro do Ano, na categoria ficção. O livro narra a experiência de uma mulher aposentada que, ao se mudar para a casa da filha, em uma cidade que não conhecia – Porto Alegre, decide perambular pelas ruas, assumindo uma vida de sem-teto. A experiência dura 40 dias, uma alusão à peregrinação de Cristo no deserto.

Ancorada em pesquisa e experiência prévia da autora, que trabalhou com pessoas em situação de rua, o livro joga luz sobre vários aspectos da vida contemporânea: deslocamento, velhice, solidão, preconceito, a partir dessa experiência. Contada em formato de diário, a narrativa é abundante em sutilezas de interpretação, intertextualidade e referências cruzadas. Maria Valéria Rezende lançou seu primeiro romance em 2001, mas foi a literatura infanto-juvenil que a tornou conhecida inicialmente. Ganhou, nessas categorias, os Jabutis de 2009 e 2013.

O próximo encontro do Leia Mulheres Brasília, em setembro, será para discutir o livro “Vozes de Chernobyl – A história oral do desastre nuclear”, de Svetlana Alexsiévitch, a bielo-russa ganhadora do Nobel de 2015. O livro compila as narrativas de pessoas que viveram direta ou indiretamente o acidente nuclear de 1986, para compor um mosaico impressionista.

Recomendo fortemente essas leituras conjuntas. A experiência é gratificante. Aspectos e detalhes que lhe podem ter escapado podem ser a cereja do bolo que alguém que, tendo enxergado, lhe dá de presente nesses encontros. Às vezes, o livro ganha outro significado. Às vezes, é você quem pode dar esse presente a outra pessoa. O calendário de todos os encontros, além de textos e a apresentação da ideia, pode ser encontrado aqui.

E o Leia Mulheres Brasília já gerou filhotes. Uma parte do grupo organiza eventos paralelos para ler e discutir conjuntamente livros de poesia escritos por mulheres. Trata-se do Leia Poetisas – Brasília. O grupo se reúne no último sábado de cada mês, no Ernesto Café, na 115 Sul. O próximo encontro será no dia 27/08, às 15h, para debater a coletânea “Não sou ninguém”, de Emily Dickinson, poetisa americana que viveu de 1830 a 1886.

Há, ainda, outra iniciativa para fortalecer a voz feminina na produção literária do quadradinho. Dessa vez, não tanto no debate da leitura, mas na produção propriamente dita. Trata-se do coletivo “Escritoras DF”. O grupo é formado por 15 escritoras que se reuniram para apoiar-se mutuamente, criar sinergia e, eventualmente, publicar em conjunto. É um exemplo de cooperação institucional para ampliar a visibilidade que cada uma poderia ter isoladamente.

O grupo é formado tanto por escritoras experientes, como Elaine Elesbão, já com quatro títulos lançados e um no prelo; Vivianne Fair, com nove volumes; Luana Barros, em seu terceiro lançamento, e M.S. Fayes, com cinco títulos já publicados – como também por estreantes, em seu primeiro livro, como Sinélia Peixoto, Mariana Oliveira, Tatyana Azevedo e Patrícia Baikal. O grupo montou um site, para facilitar aos leitores encontrarem suas obras.

Sensíveis às dificuldades de muitos leitores em acessar suas obras, as escritoras disponibilizam, de tempos em tempos, algumas obras para serem lidas gratuitamente na Internet, por meio da Amazon. Aliás, parte significativa de suas vendas é feita pela Internet, já que a maioria delas publica de maneira independente. Cada obra tem sua especificidade, mas, claramente, essas escritoras perceberam a força do trabalho em conjunto.

Seja lendo, debatendo ou escrevendo, chama atenção o suporte e a solidariedade da abordagem feminina na literatura. Amigos, elas têm muito a nos ensinar. Aproveitando o gancho, fecho com dois poemas de poetisas.

 

Desejo

A prece de uma pele

que só amor-tece

noutra pele

Natália Cristina, Emaranhados Cerebrais

 

Último Poema

Agora deixa o livro

volta os olhos

para a janela

a cidade

a rua

o chão

o corpo mais próximo

tuas próprias mãos:

aí também se lê

Ana Martins Marques

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