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Seu Waldomiro, o nativo da Chapada que viveu de pura verdade

Antes de construir o rancho a caminho de São Jorge, ele foi tropeiro e aprendeu a ter coragem porque não havia outro jeito

atualizado

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Poraidemochila/Reprodução
Waldomiro-1
1 de 1 Waldomiro-1 - Foto: Poraidemochila/Reprodução

Quando soube que o Waldomiro havia morrido, o peito doeu e a consciência me acusou: por que não fiz a tão adiada entrevista com ele? Waldomiro da Silva Filho era um homem parrudo, envergadura de Tarzan, de uma elegância atávica, porte altivo, sorriso largo e conversa mansa e sábia.

Waldomiro era da mesma espécie que Cássia Eller que Clarice Lispector que Nina Simone que Jackson do Pandeiro, que muitos outros, uma gente que não sabe ser outra coisa senão ela mesma. “Cássia é verdade pura”, escreveu Caetano Veloso. Tem gente que, mesmo de roupa, vive nua, embora guarde segredos entre a carne e os ossos, muitos dos quais nem eles mesmo sabem, tão secretos são.

Muito antes de os primeiros hippies descobrirem a Chapada dos Veadeiros, no começo dos anos 1970, Waldomiro já percorria aquele sertão suspenso em platô, revestido de cristais, com jardins de pedra, savanas idílicas e rios de quedas abissais. Era tropeiro, levava o gado para lugares distantes. Aprendeu a não se desesperar nunca – e viu de tudo, doenças, mortes sofridas, tragédias, ataques de onças, ataques de cobras, bandos de emas e de veados campeiros. E assombração.

Amou o bastante. Devia ter quase 70 anos quando me disse que nunca tinha passado uma noite sem mulher. Talvez fosse pavonice de macho, mas devia ter um fundo de verdade, posto que Waldomiro teve muitas parceiras. Numa das últimas vezes que conversamos, sentados no banco comprido e pesado de madeira, no rancho de palha, ele me contou da namorada que morava em Colina de Goiás, a uns 70 km de distância. Waldomiro estava sempre namorando, sempre de camisa de manga comprida dentro da calça, cinto, chapelão de vaqueiro e frases melodicamente encadeadas, com uma pausa rápida entre elas, como se tivesse feito curso de oratória.

A matula era a comida do tropeiro, feita na trempe no meio do sertão, com a carne de lata, o feijão, a linguiça, a carne de sol, a farinha de mandioca, comida de sustança para gente do trabalho pesado. Matula, no dicionário, é sinônimo de farnel, vasilha com que se carregava o alimento para longos trajetos. Continente e conteúdo viraram uma coisa só. Matula (o continente) virou o nome da comida (o conteúdo). Na gramática, se chama metonímia, uma figura de linguagem (me perdoem os que disso já sabem, mas talvez haja quem não saiba).

Enquanto os nativos foram abandonando a matula, em nome das comidas urbanas e industrializadas, Waldomiro seguiu matulando, até virar atração turística e estar nos mais importantes guias de turismo do país.

Tinha muita sapiência, Waldomiro, todas aprendidas calor da vida (e tem outro jeito?). Uma delas era o de limites: cliente não podia entrar sem camisa nem fumar no seu estabelecimento. E o rancho de palha e chão batido, ao pé da Baleia, recebia e recebe a classe média-média-alta e ricos do país inteiro e de fora, todos ávidos para quebrar os protocolos. Menos no Rancho do Waldomiro, que se impunha com a altivez e o leve sorriso de quem sabe que manda, mesmo tendo no cardápio dezenas de pingas com frutas do cerrado.

Toda vez que me despedia do Waldomiro, ele me dava um abraço forte e eu sentia naquele nativo a força do sertão, a verdade do seu viver. Zygmunt Bauman ficaria encantado com a solidez desse sertanejo goiano. O mundo líquido contemporâneo não ousou se aproximar do Waldomiro nem de seu racho. Nenhum modismo, nenhuma seita religiosa, nenhuma conversa de turista, nenhuma promessa de enriquecimento, nenhuma tecnologia, nada tirou Waldomiro de si mesmo. Saudades, Waldomiro.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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