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Oito dias separam as mortes de Floyd e Miguel, porém algo mais aconteceu

Dois vídeos denunciam, no Brasil e nos EUA, do que é capaz a supremacia branca, seja com o ódio de um policial ou negligência de uma 1ª dama

atualizado

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Arte/ Metrópoles
Miguel Otávio e George Floyd
1 de 1 Miguel Otávio e George Floyd - Foto: Arte/ Metrópoles

O vídeo de três minutos mostra uma mulher branca segurando a porta do elevador. A mulher segura a porta e conversa com um menino que está dentro do elevador. Ele aperta um botão na altura dos olhos – talvez do térreo ou de um dos primeiros andares de uma das torres gêmeas do Condomínio Píer Maurício de Nassau, no Recife (R$ 2 milhões cada apartamento). A mulher aperta o primeiro botão de cima para baixo, ou seja, um botão para o elevador subir e não descer, como queria o menino.

Por que ela quis que o menino subisse e não descesse é uma pergunta para a polícia e a Justiça. A pergunta para nós, os que têm o coração cortado pela tragédia, é como daremos conta dessa vida que resolveu se mostrar em sua inteira crueldade. Como se algum deus malvado dissesse: vejam o que vocês têm feito.

A morte de Miguel, o garotinho negro de 5 anos, é um resumo gritante e perverso do país em que vivemos, do mundo racista e desigual que habitamos. A patroa loura, a empregada negra que trabalha na pandemia, a patroa é primeira-dama de Tamandaré (PE), o marido, prefeito, paga a empregada com dinheiro público, o sobrenome da patroa é Corte Real, o marido dela, Sérgio Hacker, teve corona, Mirtes e a mãe, Marta, também tiveram mas se curaram. As duas são empregadas da mesma patroa. A patroa faz as unhas enquanto a empregada passeia com o cachorro.

Miguel deixou fotos sorridentes de menino, mas o que vejo são os olhos arregalados de George Floyd, o negro americano morto pelo policial branco Derek Chauvin, em Minneapolis, Estados Unidos, e que provocou a maior revolta negra no país desde o assassinato de Martin Luther King em 1968.

Aqueles olhos esbugalhados de Floyd, como se saltassem para fora do corpo, com o pescoço prensado pelo joelho do policial, são os olhos de nossa ignomínia. Eles nos acusam e condenam, a nós, a espécie, aquela que Flávio Migliaccio deixou escrito que não deu certo. Não deu e não dará. Estamos sobre a Terra há 200 mil anos e até agora só patinamos entre algumas ondas de bonança e sucessivas ondas de desumanidade.

Nem por isso me é dado o direito – a menos que algum dia eu tome uma decisão sem volta como a de Migliaccio – a mim não é me dado o direito de desistir. Só me cabe continuar esperneando e tentando ser minimamente digna de nossa miserável condição humana.

Os olhos de George Floyd atravessam meus dias e minhas noites – são os olhos do racismo estrutural e sistêmico. Oito minutos e 46 segundos de Derek Chauvin apertando o pescoço de Floyd, três minutos de Sarí Gaspar Corte Real conversando com Miguel antes de apertar o botão e deixá-lo sozinho no elevador.

Há em Derek e em Sarí a convicção absoluta de sua supremacia branca. Mas se há alguma coisa muito boa acontecendo é que os negros estão perdendo a paciência. Oxalá.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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