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Nós, brasilienses, temos um corpo singular. O corpo-Brasília

O corpo brasiliense é de uma solidão excruciante. Somos astronautas esquecidos do lado de fora da Terra. Tudo é imensidão, vazio, solidão

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Michael Melo/Metrópoles
Corpo brasiliense em relação a cidade
1 de 1 Corpo brasiliense em relação a cidade - Foto: Michael Melo/Metrópoles

Toda vez que vou a São Paulo, fico horas no metrô. Se pudesse, passaria o dia entrando e saindo dos vagões, subindo e descendo a escala rolante. Gente é o que me falta. Corpo de gente passando por mim, gente desconhecida, gente. Tenho uma amiga que vai para São Paulo para ouvir o passo das pessoas. Eu preciso do calor da multidão. É uma felicidade obedecer ao ritmo apressado dos paulistanos nas estações mais movimentadas. Me sinto um peixe num cardume gigante que sabe aonde vai e o que vai fazer. Quase não preciso de meus pés nem de mim mesma. Me entrego à multidão. Sou parte dela.

O corpo brasiliense é de uma solidão excruciante. Somos astronautas esquecidos do lado de fora da Terra. Tudo é imensidão, vazio, solidão. É um nada que nos desumaniza e ao mesmo tempo nos conecta com tudo o que não é humano – as cores do céu, o formato das nuvens, a envergadura das árvores, a cantoria das cigarras. O brasiliense habita a anatomia do universo. O corpo de cada um de nós desenha os contornos da Terra, a trilha do Sol do nascente ao poente. Onde a Lua vai, vamos com ela. Vemos a chuva de longe, ela ali e eu aqui, como se eu nascesse pra ela e ela pra mim, como se fôssemos só nos duas.

Brasília nos permite essa experiência cósmica, Athos Bulcão já disse isso numa noite em que passeava pelo Eixão (está em seu depoimento ao Arquivo Público do DF).

Tanto céu, tanta terra, tanto horizonte que o corpo fica sem bordas. Onde começo e onde termino?

Dia desses vi um rapaz, de não mais de 25 anos, andando nu pelas margens da EPNB (a Estrada Parque Núcleo Bandeirante). Só ele e o próprio corpo. Esguio, aparentemente sereno, caminhava sem pressa. Talvez tivesse se perdido na ausência do corpo do outro e se deixado levar pela onipresença do nada. (Li depois que os bombeiros o levaram para um hospital e que ele parecia ter tido algum surto psíquico).

Na cidade da arquitetura, faltam-nos os volumes da arquitetura. Brasília é um vazio pontuado de monumentos. Entre mim e o outro há anos-luz de distância, como estrelas que se veem mas não se conhecem. Daí que nós brasilienses, especialmente os do Plano Piloto, somos uma espécie demasiadamente altiva, que trata o desconhecido com glacial indiferença.

Poeta da cidade moderna, Baudelarie dizia que o homem livre sempre gostará do mar. O homem livre brasiliense tem uma solidão de pescador. Há um excesso de liberdade espacial que nos deixa sem lugar. Bastam duas voltas na tesourinha e já é difícil saber se estamos indo para norte ou para sul, para leste ou para oeste.

O brasiliense é antes de tudo um solitário. Está sozinho nas ausências de cidade dentro da cidade, está sozinho diante das outras cidades da mesma cidade, está sozinho na angústia de tentar entender esta cidade, está sozinho na busca de saber-se nesta cidade. O brasiliense não tem par a não ser em si mesmo e em seus vazios — desabitados, mas não desprovidos de sentido.

E é um exercício árduo o de buscar o sentido em Brasília, embora nada nela seja casual. Cada vazio tem significado, por mais espantoso que possa parecer. Aquela multidão de inexistências entre a Rodoviária e a Praça dos Três Poderes nos avisa que estamos na capital de um país que se pretendia monumental. (“Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa”, escreveu Lucio Costa no Memorial Descritivo do Plano Piloto.)

Brasília é uma cidade que não começa nem acaba. E lá vamos nós, brasilienses, sem começo nem fim, sem saber por onde começar nem onde terminar. Somos filhos da arquitetura, do cerrado, da solidão, do devaneio. Os vazios nos tranquilizam, nos organizam e nos conduzem. Mas é paralisante a distância que separa um corpo do outro corpo. É uma lonjura que nos protege e atordoa. Que aprisiona e liberta.

 Aos leitores e leitoras que têm um pouco mais de rigor com a língua culta, aviso que esta cronista não obedece à regra gramatical do uso do pronome oblíquo. Escrevo como falo, pra ficar mais perto de quem me lê.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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