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Crônica cabotina sobre dois atos de vandalismo e uma tarde eterna

Brasília é uma cidade meio Betta, mas do aquário de solidões saltam brasilienses solidários e afetivos. De onde saiu tanto afeto?

atualizado

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Conceição Freitas/Metrópoles
banca 308 sul
1 de 1 banca 308 sul - Foto: Conceição Freitas/Metrópoles

Quem já visitou um abrigo de crianças ou de idosos, um presidiário, um doente, sabe o quanto qualquer mínimo gesto de atenção tem o efeito de uma retumbante declaração de amor.

Assim é Brasília, uma cidade-solidão, cidade-prisioneira de si mesma, que se comove com um leve soprar de afeto. Embora sem muros, aberta para o infinito, entremeada de vazios e verdes, é tão atavicamente solitária quanto o Betta, gênero de peixinho de aquário que só vive bem sozinho. O peixe-beta é belíssimo, mas não suporta companhia. Não dá nem bom-dia. E, quando convocado a uma conversa cordial no elevador, responde com certa má vontade.

Por isso, qualquer soma de bons-dias e boas-tardes é um acontecimento nesta cidade-beta.

A banquinha nunca esteve tão feliz como no sábado (09/11/2019). E nunca esteve tão lírica, tão chorosamente brasileira. E pude conhecer um fagote! (Conhecia tanto que escrevi “fogote”, mas o Word me protegeu do vexame). Um fagote na calçada da 308 Sul.

No sábado eterno, 09/11, Ilka Teodoro contou à banquinha que o avô é dessas lonjuras goianas desde o tempo em que se caçava onça. Brasiliense de nascimento, essa moça tão jovem, afetuosa e bem-articulada é administradora do Plano Piloto.

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(Quem me conhece sabe que entre os meus muitos defeitos não está a sabujice ao poder. Tenho com o poder uma relação quase de gratuita antipatia. O que é, no mínimo, uma infantilidade, mas, como dizia Clarice Lispector (com outras palavras), há defeitos que nos compõem como a perna de uma mesa, impossível existir sem eles.)

Dois amigos, Carlos Marcelo e Cláudio Ferreira, não perderam a piada: “E se as câmaras pegaram você, com uma máscara de Coringa, cortando o painel como estratégia de marketing?”.
Com tanto maluco por aí, é bem capaz de alguém acender a luzinha: “E se…?”.

Pois foi um bem enorme que se sucedeu ao vandalismo no painel da Anna Mendes na banquinha da 308 Sul. Gente que eu tinha certeza que não gostava de mim, sei lá por que razão, apareceu para se solidarizar no campo virtual. Talvez nem gostem exatamente de mim, mas da banquinha, o que está de boníssimo tamanho…

Amigos dos quais eu não tinha notícia havia muito tempo, amigos virtuais e amigos reais, amigos da cidade, amigos da democracia e da civilidade, um encontro de amigos com uma singular diferença: emprestaram o corpo, a tarde de sábado, o tempo tão curto, para responder a um gesto de vandalismo.

A música do delicado e ao mesmo tempo sofisticado Regional Marangone, grupo de choro da cidade, aquietou até os passarinhos. De cachê, pediram apenas a cerveja pra refrescar a goela, como diria Zeca Pagodinho.

O incansável Daniel Júnior dedicou o dia à banquinha. Tocou e cantou bossa nova e sambinha leve e sereno, pelo mesmo cachê do chorinho.

Já era noite quando um morador do Bloco B, de seus 35 anos, desceu, se aproximou dos poucos amigos que ainda conversavam e disse: “Moro nesse bloco. Vim aqui só para agradecer pela belíssima música”. Curvou-se num gesto namastê e foi embora.

E assim foi a manhã, a tarde e o início da noite do sábado eterno.

(Os músicos do Regional Marangone que tocaram na banquinha, graciosamente, foram: Cristina Porto (no fagote!), Henrique Borgato (cavaquinho), Davi Muniz (pandeiro), Sidnei Maia (flauta). E os convidados: Lenora Vieira (violão, flauta e voz), Reinaldo Rios (violão) e Daniel Júnior (contrabaixo). E a cantora foi Jandira Siqueira.)

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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