Carol e o cãozinho que morreu na Rodoviária, ruína viva de Brasília
Pela Rodoviária do Plano passam diariamente 700 mil pessoas. São 700 mil dores, 700 mil pelejas diárias
atualizado
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É a mais sofisticada obra de urbanismo, arquitetura e engenharia de Brasília. É também a mais democrática, a que articula as Brasílias tão apartadas pela desigualdade social e pelas distâncias entre as cidades-satélites e o Plano Piloto.
A Rodoviária do Plano é um templo urbano em ruínas. Por agora, está em obras, o que reforça a impressão de destroços rejuntados. É uma grandeza soterrada pelo caos, pelo desprezo com que sempre foi tratada – os governos não costumam estar onde o povo está.
É preciso alargar os olhos para reconhecer naquela babel os sinais da genialidade brasileira, de Lucio Costa e de todos quantos desenvolveram o projeto e o puseram de pé e também deitado, porque a Rodô é um conjunto de vias em três níveis diferentes, é um centro comercial, um terminal de ônibus e uma estação de metrô. É uma praça e um lugar de trabalhar e de morar para quem não tem trabalho nem moradia.
É também o lugar onde dona Margarida vigia carros há mais de duas décadas. Ela diz ter 87 anos, o que dá pra conferir no rosto plissado, na boca sem dentes, no corpo frágil como um galho seco. Dona Margarida é flanelinha do estacionamento leste da plataforma superior da Rodoviária. Passa as tardes, de segunda a sexta, pairando num duplo mirante: de um lado, a Esplanada; de outro, a Torre. “Eu e aquele doido ali, meu filho”, diz, com sorriso de mãe.
Mora na Ceilândia Norte e, quando pergunto há quanto tempo está em Brasília, responde com uma lembrança: “Conheci Juscelino. Era alto, magro e tinha um riso triste”. Não reclama de nada e também não me pede nada. Aponta o guarda-chuva fechado para o carro que se aproxima, sinalizando que há uma vaga ali perto.
A Rodoviária tem tristezas de cortar o asfalto. Sentada no meio-fio, Carol padece da impotência diante da morte que se avizinha. Bolinha está deitado ao lado dela, coberto com um pano que parece ser uma toalha de mesa. Só o focinho preto está de fora. Geme baixinho e respira com dificuldade. Os olhos estão esbugalhados, como que antevendo o fim.
Carol me diz (os olhos estão secos, mas a voz chora fundo): “Ele está morrendo. Trouxe comigo. Não podia deixar ele sozinho lá”. Pensa em o que fazer com o corpo do cãozinho vira-lata. “Vou pedir pro policial me deixar levar ele no ônibus.” Ofereço uma sacola; vou ao carro buscar. Não demoro 10 minutos.
“Ele morreu”, ela me diz, de pé, com o corpo preto agora todo coberto com a toalha de mesa. Colocamos Bolinha na sacola e Carol segue na direção do ponto de ônibus do Paranoá. Antes me diz um “obrigada” que sai fininho e doído.
Pela Rodoviária do Plano passam diariamente 700 mil pessoas, mais do que a população de Ceilândia (480 mil) e Taguatinga (207 mil) juntas. São 700 mil dores, nem sempre lancinantes como as de Carol. São também 700 mil pelejas diárias, como a de dona Margarida, embora a maioria dos que vivem e passam pela Rodô não tenham mais de 30 anos.
Às seis da tarde de terça-feira passada (2/4), o Bolinha morria, a Carol levava o corpo numa sacola até o Paranoá, dona Margarida voltava para Ceilândia Norte e eu me perguntava por que é tão difícil.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.