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A noite em que Bishop e Huxley passearam pela Cidade Livre

Aventuras da poeta Elizabeth Bishop e dos escritores Aldous Huxley e Antonio Callado numa estranha cidade-faroeste brasileira

atualizado

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Moisés Dias/Metrópoles
Elisabeth Bishop
1 de 1 Elisabeth Bishop - Foto: Moisés Dias/Metrópoles

Numa noite de agosto de 1958, a convite de Juscelino, um inesperado trio do mundo da ficção afundou os pés na grossa camada de poeira do Núcleo Bandeirante, tomou suco de laranja num hotel de madeira, passeou pelas ruas da Avenida Central, fez compras e ficou sabendo que, naquele Brasil e naquele tempo, as senhoras e as senhoritas não podiam ver cenas de sexo no único cinema da cidade.

“Escurecia quando chegamos à Cidade Livre, mas não estava tão escuro que não pudéssemos vê-la”, conta Elizabeth Bishop. A poetisa comparou o lugar “àquela velha cidadezinha de fronteira dos filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, só que no mundo real, e muito maior”. As ruas eram de terra, sem calçada (“imagine como deve ser quando chove!”), e as casas de madeira, “com telhados de cumeeira, algumas com frontões, foram construídas bem próximas umas das outras, de todas as formas, tamanhos e cores”.

O tráfego, anotou Bishop com seu olhar de repórter, era “basicamente de caminhões, de todas as marcas e idades, e jipes, jipes e mais jipes, americanos, ingleses e brasileiros, alguns carros velhos e até mesmo alguns homens a cavalo, todos levantando nuvens espessas de poeira”.

Uma ex-refugiada polonesa, a condessa Tarnovskaia, dona do único cinema da Cidade Livre, juntou-se ao grupo de visitantes no salão do Hotel Santos Dumont. Lá dentro, prossegue a poeta, “nos sentimos transportados para uma dessas novas e pequenas boates ou cafés de Greenwich Village – novas porque todas as cores eram bem vivas, praticamente as únicas cores vivas que vi em toda Brasília”. (E a terra vermelha, poeta, não conta?)

O balcão era de bambu, as tolhas de mesa, vermelhas, as cortinas “de tons vivos de verde e amarelo”. Elizabeth Bishop observou que ao lado da vitrola havia discos de Villa-Lobos, Stravinsky e Bartok. “O Santos Dumont estava modestamente fazendo o possível para ser um lugar chique e alegre, e creio que todos nós lhe fizemos os melhores votos de sucesso”.

Talvez intimidados pelo quase sisudo Aldous Huxley, que antes havia comentado sobre o excesso de consumo de álcool e fumo nos Estados Unidos, o grupo preferiu suco de laranja, “que misteriosamente estava no cardápio” (Bishop sabia que, para a laranja chegar àquela lonjura, era preciso trazê-la de avião ou em longas viagens desde Anápolis ou Goiânia).

Arquivo Público
Elizabeth Bishop e Aldous Huxley passearam pela Cidade Livre a convite de Juscelino Kubitschek

A condessa era a mais falante do grupo – e Huxley, o mais calado. Tarnovskaia contou como eram as projeções de filmes na Cidade Livre. Naqueles dias, por exemplo, estava em cartaz E Deus Criou a Mulher. Bishop relata o que ouviu da polonesa: “A plateia, em que os homens eram muito mais numerosos que as mulheres, assistiu em silêncio, pensando só Deus sabe em quê, até que chegou a cena da nudez. Assim que Brigitte Bardot desabotoou o primeiro botão, a projeção foi interrompida de repente, e as luzes se acenderam. O projecionista, que sem dúvida já vira o filme, disse: ‘As senhoras e senhoritas queiram por favor sair e esperar lá fora’. E elas saíram, sem reclamar, e ficaram esperando na rua poeirenta, formando um pequeno grupo à frente do cinema. As luzes se apagaram, e os homens assistiram à cena de sexo que se seguiu. Mais uma vez a projeção foi interrompida, as luzes se acenderam, e as mulheres foram convidadas a voltar para ver o resto do filme ao lado dos homens”.

Depois de ouvir a incrível história das cenas de sexo proibidas para mulheres, o grupo saiu para comprar cigarro, fósforo e dropes para presentear os índios a quem, no dia seguinte, iriam visitar no Xingu. “Antonio Callado, que no nosso grupo era quem mais tinha experiência com os índios, entrou numa loja cheia de botas, chapéus de feltro, facões e armas e nela comprou anzóis e linhas de náilon para pescar. E comprou também salsichas.”

Em seguida, pararam num bar de esquina, e a poeta reparou numa “moça bonita, rechonchuda, de cara amarrada, cabelos oxigenados e suéter muito decotada”. Laura Huxley, mulher do escritor, fazia fotos com sua inacreditável e mágica máquina Polaroid, sob a iluminação dos faróis da Kombi.

Finda a aventura na Cidade Livre, o grupo entrou na Kombi para voltar ao Brasília Palace Hotel, uma viagem de 25 km, numa estrada de terra sem nada ao redor. Só eles no mundo. Alguém trazia consigo um exemplar de As Portas da Percepção, de Huxley.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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