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Lula e o máximo que podemos desejar

O máximo é que façam o certo por motivos errados, como no caso da votação da Câmara que sustou mudanças no novo marco do saneamento

atualizado

José Cruz/ Agência Brasil
Arthur Lira e Lula

Céus, como estou cansado. Do trabalho de colunista, digo. Lula, Bolsonaro, Lira, MST… O que me consola são os escritores (de real talento, ao contrário de mim) que tinham de escrever muito mais linhas. Victor Hugo, por exemplo, viu-se obrigado a tecer uma longa crônica sobre o translado dos restos mortais de Napoleão para o Hôtel des Invalides, em 1840. O livro está em algum lugar insondável da minha estante. É uma joia literária a sua descrição das estátuas feias e desproporcionais, feitas de última hora para enfeitar a esplanada que seria atravessada pela carruagem com o caixão. Mas é uma joia menor. Quanto tempo Victor Hugo consumiu para confecioná-la? Para nós, foi ótimo; para ele, talvez nem tanto. Felizmente, a televisão e o telefone celular encurtaram a pena (nos dois sentidos) dos colunistas com ou sem talento.

Se até Machado de Assis pôde dizer o quão este trabalho é maçante, por que não eu? No igualmente longínquo 26 de outubro de1885, ele acordou desmotivado e imortalizou o seguinte comentário:

Além de outras diferenças que se podem notar notar entre o sol e a chuva, há esta — que o sol, quando nasce, é para todos, como diziam as tabuletas de charutaria de outro tempo, e a chuva é só para alguns.

Hoje, por exemplo, levanto-me com chuva, e fico logo aborrecido, desejando não sair de casa, não ler, não escrever, não pensar — não fazer nada. A mesma coisa acontece ao leitor, com a diferença que ele faz ou não faz nada se quer, e eu hei de pegar do papel e da tinta, e escrever para aí alguma coisa, tenha ou não vontade e assunto.

Já me lamentei o suficiente. Sem vontade e assunto que não seja repetitivo no seu âmago, vou falar da mais recente derrota de Lula na Câmara. Deixo o cartão de vacinação falso de Jair Bolsonaro para lá. Muita gente falando no assunto, e os meus queridos detratores me chamarão de bolsonarista de qualquer jeito. Que vá preso, se for culpado.

A derrota começou assim: para favorecer as companhias estatais, mantendo-as como cabides de empregos de apaniguados políticos, Lula decretou mudanças no novo marco do saneamento.

Aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, o novo marco permite que a iniciativa privada providencie água e esgoto a 100 milhões de cidadãos desprovidos desse serviço básico do século XX. Por quê? Porque o Estado brasileiro mais uma vez falhou miseravelmente em mais uma das suas missões, nesse misto de fisiologismo, corrupção incompetência que o agiganta. Um clássico nacional.

Na semana que termina, a Câmara derrubou parte das mudanças de Lula. A verdade sem tratamento de esgoto é que grande parcela dos deputados que votaram por sustar o decreto lulista o fez, principalmente, para mandar recado ao governo. Há demora em liberar os bilhões de reais de emendas parlamentares que dependem do Palácio do Planalto — e também malemolência em distribuir cargos para afilhados de deputados na máquina federal.

É disto que se trata: os deputados fizeram o certo por motivos errados, outro clássico inzoneiro. A fisiologia, meus poucos amigos e inúmeros inimigos, pode dar frutos que não o da jabuticabeira. Ao fim e ao cabo, é o máximo que podemos desejar desde antes de Machado de Assis acordar sem disposição para escrever e de Victor Hugo obrigar-se a descrever o translado do corpo de Napoleão.

Lula agora vai assumir diretamente a articulação política com a Câmara, eufemismo para a distribuição farta de dinheiro público a quem vota com o governo. Água e esgoto sairão ainda mais caro para os brasileiros. Quem mandou Lula mexer com o marco? Fez o errado por motivos errados.






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