Lula e o máximo que podemos desejar
O máximo é que façam o certo por motivos errados, como no caso da votação da Câmara que sustou mudanças no novo marco do saneamento
atualizado

Céus, como estou cansado. Do trabalho de colunista, digo. Lula, Bolsonaro, Lira, MST… O que me consola são os escritores (de real talento, ao contrário de mim) que tinham de escrever muito mais linhas. Victor Hugo, por exemplo, viu-se obrigado a tecer uma longa crônica sobre o translado dos restos mortais de Napoleão para o Hôtel des Invalides, em 1840. O livro está em algum lugar insondável da minha estante. É uma joia literária a sua descrição das estátuas feias e desproporcionais, feitas de última hora para enfeitar a esplanada que seria atravessada pela carruagem com o caixão. Mas é uma joia menor. Quanto tempo Victor Hugo consumiu para confecioná-la? Para nós, foi ótimo; para ele, talvez nem tanto. Felizmente, a televisão e o telefone celular encurtaram a pena (nos dois sentidos) dos colunistas com ou sem talento.
Se até Machado de Assis pôde dizer o quão este trabalho é maçante, por que não eu? No igualmente longínquo 26 de outubro de1885, ele acordou desmotivado e imortalizou o seguinte comentário:
Além de outras diferenças que se podem notar notar entre o sol e a chuva, há esta — que o sol, quando nasce, é para todos, como diziam as tabuletas de charutaria de outro tempo, e a chuva é só para alguns.
Hoje, por exemplo, levanto-me com chuva, e fico logo aborrecido, desejando não sair de casa, não ler, não escrever, não pensar — não fazer nada. A mesma coisa acontece ao leitor, com a diferença que ele faz ou não faz nada se quer, e eu hei de pegar do papel e da tinta, e escrever para aí alguma coisa, tenha ou não vontade e assunto.
Já me lamentei o suficiente. Sem vontade e assunto que não seja repetitivo no seu âmago, vou falar da mais recente derrota de Lula na Câmara. Deixo o cartão de vacinação falso de Jair Bolsonaro para lá. Muita gente falando no assunto, e os meus queridos detratores me chamarão de bolsonarista de qualquer jeito. Que vá preso, se for culpado.
A derrota começou assim: para favorecer as companhias estatais, mantendo-as como cabides de empregos de apaniguados políticos, Lula decretou mudanças no novo marco do saneamento.
Aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, o novo marco permite que a iniciativa privada providencie água e esgoto a 100 milhões de cidadãos desprovidos desse serviço básico do século XX. Por quê? Porque o Estado brasileiro mais uma vez falhou miseravelmente em mais uma das suas missões, nesse misto de fisiologismo, corrupção incompetência que o agiganta. Um clássico nacional.
Na semana que termina, a Câmara derrubou parte das mudanças de Lula. A verdade sem tratamento de esgoto é que grande parcela dos deputados que votaram por sustar o decreto lulista o fez, principalmente, para mandar recado ao governo. Há demora em liberar os bilhões de reais de emendas parlamentares que dependem do Palácio do Planalto — e também malemolência em distribuir cargos para afilhados de deputados na máquina federal.
É disto que se trata: os deputados fizeram o certo por motivos errados, outro clássico inzoneiro. A fisiologia, meus poucos amigos e inúmeros inimigos, pode dar frutos que não o da jabuticabeira. Ao fim e ao cabo, é o máximo que podemos desejar desde antes de Machado de Assis acordar sem disposição para escrever e de Victor Hugo obrigar-se a descrever o translado do corpo de Napoleão.
Lula agora vai assumir diretamente a articulação política com a Câmara, eufemismo para a distribuição farta de dinheiro público a quem vota com o governo. Água e esgoto sairão ainda mais caro para os brasileiros. Quem mandou Lula mexer com o marco? Fez o errado por motivos errados.